Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

>> Volte aqui nesta segunda, quando será incluído o oitavo motivo desta matéria.

Music

Lollapalooza Brasil 2022 – ao vivo

Oito motivos para celebrar o retorno do festival cantando os versos “olê olê olá! Lolla! Lolla!”

Planet Hemp

Textos por Abonico Smith

Fotos: Lolla BR/Camila Cara/Divulgação

Enfim, a música está definitivamente de volta aos palcos no Brasil. E os festivais de música também. Depois de dois anos de muito isolamento, distanciamento e congelamento de eventos artísticos provocados pela pandemia, com os números em queda e o gradativo relaxamento das regras sociais, a grade de grandes eventos pode ser retomada em 2022. No terreno da música pop, tudo começou no último final de semana, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, com os quatro palcos e três dias do Lollapalooza Brasil, que, entre 25 e 27 de março, retomou um pouco daquela programação que estava sendo esperada para 2020, mas com várias alterações sendo feitas a cada cancelamento, até mesmo nas últimas semanas com a desistência de duas bandas internacionais por conta de gente diagnosticada com a covid-19. Surpresas que se prolongaram até a véspera do domingo, com o mundo sendo pego de surpresa pela notícia da inesperada morte de Taylor Hawkins, o carismático baterista do Foo Fighters, o último dos três headliners, horas antes de um show em outro festival na Colômbia.

Mondo Bacana lista oito motivos que vão fazer você se lembrar para sempre desta edição um tanto confusa e atabalhoada mas extremamente importante para ajudar a recolocar os grandes festivais e eventos musicais no eixo em território brasileiro.

Wombats

Este trio liverpludiano de nome de marsupial australiano e carreira sólida no circuito indie rock europeu merecia ter sorte melhor em sua primeira vinda (tardia, já que a discografia aponta cinco trabalhos em 15 anos) ao Brasil. Mal havia começado seu set e do nada veio um toró danado, com muitos raios e ventos, o que forçou a organização a cancelar tudo imediatamente e evacuar palco e plateia pelo risco de acidentes próximos a instalações metálicas. Foram só cinco músicas, mas o suficiente para ver que o vocalista Matthew Murphy e seus comparsas tinham muita lenha para queimar naquela tarde de sexta-feira. Misturando guitarras e grooves e com hits poderosos como “Moving To New York” e “Techno Fan”, lá do início da carreira, estrategicamente colocados no pontapé inicial para incendiar tudo. Só que aí veio o inesperado. A chuvarada veio impiedosamente para apagar todo o fogo da banda. Pelo menos restou a suspeita de que ano que vem eles deverão estar de volta por aí para compensar o “pocket show forçado”.

Strokes

Muita gente pode achar sem sentido a escalação do Strokes como headliner de um grande festival, justificando que o quinteto nova-iorquino está longe de seu auge criativo. Pura bobagem! Se bandas como Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses vivem desembarcando aqui no Brasil com o mesmo status, porque a trupe de Julian Casablancas não poderia também? OK, as vendagens podem não ter sido tão grandiosas se comparadas a estes nomes, mas a importância e a significância para tal ponto. Afinal, ajudaram a consolidar uma nova linguagem do rock, tão suja e underground quanto seus antecessores que consolidaram o punk e o alternativo no subsolo norte-americano. E, bem, musicalmente continuam muito bons. Simples, direto ao ponto, sem firulas (até mesmo nos solos). Julian Casablancas continua cantando cinicamente desanimado, como um “tô nem aí para nada”, agarrado no pedestal, de óculos escuros e na maior pose antipopstar. Aliás o foda-se desta vez estendeu-se também à escolha do repertório. O grupo ousou ao eliminar escolhas óbvias para festivais como de hits (como “Someday” e sobretudo “Last Nite”), pegar lados B dos dois primeiros álbuns (“Under Control”, “Trying Your Luck”, “Take It Or Leave It”, “New York City Cops”) e bancar um terço do set list (cinco de quinze) com faixas do álbum mais recente, lançado logo depois do lockdown mundial provocado pelo decreto da pandemia. Gran finale da primeira noite!

Emicida

Há muito tempo que, em se tratando de peso e atitude, o rap é o novo rock aqui no Brasil. Depois de uma série de discos acachapantes, Emicida veio para este Lollapalooza disposto a provar que, sim, pelo menos em se tratando de festivais de música a revolução pode ser televisionada em nosso país. AmarElo, o show, é uma porrada na cara, um soco no estômago, um tapa do Will Smith em todos os sentidos. Banda afiada, com duas guitarras poderosas, baixista-maestro, percussão dando peso às batidas do DJ. Com versos de forte conteúdo racial, social, político e (por quê não?) de relacionamentos pessoais – a ponto de levar a um festival pop o pastor Henrique Vieira para mandar um sermão contagiante no final com “Principia”. Antes, porém, uma trinca matadora com participações especiais: Rael em “Levanta e Anda”, Drik Barbosa em “Luz” e Majur em “AmarElo”(aquela na qual o sample com o refrão gravado originalmente na voz de Belchor vira transe coletivo).

Miley Cyrus

Às vésperas de completar 30 anos de idade, a ex-Hannah Montana libertou-se de todas as amarras imagéticas que ainda poderiam estar assombrando seus trabalhos anteriores. Sonoramente, lançou-se fundo no rock, com muitas timbragens e elementos oitentistas sem abandonar a veia pop dos arranjos. Visualmente, toda de preto e cabelo platinado no melhor estilo femme fatale eternizado por Madonna também nos anos 1980. De quebra, ainda chamou a amiga Anitta ao palco para celebrar “a brasileira número um mundial do Spotify” e mandar – rebolando bastante, claro – um feat do novo hit dela “Boys Don’t Cry”. Só que nem tudo é perfeito. Para os millennials, Miley pde ser o máximo, impactante, de causar arrepios. Só que quem tem mais idade e já viu muito mais coisa no rock’n’roll sabe que tudo nao passa de um pastiche. Bem produzido mas um pastiche. Rola um déjà-vu atrás do outro, com lembranças que vão de Bon Jovi a… Madonna! Isso sem falar no amontoado de covers sem sentido (já que ela é uma headliner com carreira já longa e consolidada) que deformam Pixies (“Where Is My Mind?”), Blondie (“Heart Of Glass”) e Nancy Sinatra (“Bang Bang”). Ah, sim, teve toda a encenação do choro pela morte do grande amigo pessoal Taylor Hawkins no meio do show (quando ela cantou “Angles Like You” sentada em uma cadeira agarrada a uma bolsa de grife da qual tirou um lencinho para enxugar as lágrimas sem borrar o make). Por falar em grife, o que dizer do enorme casaco de inverno verde que ela teve de vestir e cantar por uns dois minutos usando durante a primeira música. Contratos de parceira publicitária? Muito rock’n’roll isso, né? No telão ao fundo, a frase “sell out to sell out”(em bom português, “vender-se para se vender”). Pose dez, atitude duvidosa no fim das contas. Será que é disso que o mundo necessita mesmo?

Idles

Já faz alguns anos que as terras britânicas vem exportando ao mundo uma série de novas bandas excitantes. Muitas delas, inclusive, com inspiração clara nos bons sons alternativos norte-americanos dos anos 1990. O Idles é um destes exemplos. Formado na cidade de Bristol, o quinteto vem concebendo álbuns maravilhosos em série (foram quatro desde 2017) e é nos concertos em grande escala que vem fazendo sua fama expandir ainda mais. Se a sonoridade já era brutal em pequenos espaços, quando o palco ganha proporções gigantescas – como é o caso dos festivais a céu aberto – parece que a banda também se agiganta com facilidade extrema. Aqui no Brasil, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Com um pezinho naquela mistura entre o punk rock, o hardcore e o industrial e lembrando bandas clássicas de selos como Touch and Go (de Chicago) e Alternative Tentacles (criado por Jello Biafra em San Francisco). O quinteto insano jorrou em pouco menos de uma hora treze músicas praticamente coladas uma na outra – com claro destaque para o segundo álbum, Joy As An Act Of Resistance, de onde vieram sete delas). Ao vivo, parece que cada músico dispara para um lugar separado, tanto nas notas musicais como na performance cênica individual. A somatória desta coisa toda aparentemente difusa acaba atordoando, formando um conjunto monolítico com altos graus de ironia e sarcasmo – nas danças ora patéticas ora intensas dos músicos, na verborragia cuspida pelo vocalista Joe Talbot, na pancadaria rítmica da e bateria, nas distorções e microfonias incessantes formadas por toneladas de pedais ligados ao baixo e às duas guitarras. Nunca um fim de tarde de domingo soou tão longe de ser modorrento.

Libertines

Depois do Idles, no mesmo palco principal do Lolla vieram os Libertines, atração praticamente acertada de última hora, já que duas semanas antes do festival o Jane’s Addiction cancelou a vinda por conta de casos de covid em sua equipe. E, olha, nunca uma escolha poderia ter sido tão acertada e oportuna quanto esta. Afinal, lá atrás, quando estiveram pela primeira vez no país também em um grande festival, a banda estava no seu auge mas se encontrava temporariamente sem um de seus frontmen, o guitarrista e vocalista Pete Doherty estava temporariamente afastado de suas funções em virtude de uma sentença judicial que o levou à cadeia. E Carl Bârat sem Pete é como Piu-Piu sem Frajola, Buchecha sem Claudinho. Agora, Pete e Carl ficaram lado a lado, alternando-se nos vocais no típico repertório “banda de bar” que fez a fama do quarteto lá na primeira metade dos anos 2000 – o set list contou com treze faixas extraídas dos dois primeiros e mais famosos álbuns. Com a poderosa ajuda do experiente baterista Gary Powell (que, dez anos mais velho que os dois e negro, ainda insere com extrema competência elementos de jazzblues e soul nos arranjos). Tudo bem que a idade já começa a pesar nos ombros. Com 43 anos de idade, não são mais aqueles likely lads que promoviam performances anárquicas em pequenos palcos nas gigs em Londres e arredores. Pelo menos estão vivos e esperneando, sempre prontos para mandar clássicos do indie rock do século 21 como “What Became Of The Likely Lads”, “What Katie Did”, “Boys In The Band”, “Time For Heroes” e “Can’t Stand Me Now”. Sorte nossa, mesmo que muita gente mais jovem que estava in loco no Lolla não tenha dado a mínima por achar que rock é o que menos importa na música de um festival.

Mano Brown

O rap é o novo rock

Perto da meia-noite de sexta para sábado (horário de Brasília) chega a notícia bombástica: horas antes de se apresentar em um festival na Colômbia, o baterista do Foo Fighters Taylor Hawkins morre no hotel. Mais um problema – e que problemão – de última hora para a escalação do festival: como resolver em questão de menos de dois dias a substituição da banda para encerrar a programação do palco principal no domingo? A solução estava bem perto e, de certa forma, vinda de um lado inesperado para muita gente: ela respondia por Emicida. Admirador da banda de Dave Grohl, assim como a guitarrista de sua banda, Michele Cordeiro, ele recorreu a um punhado de amigos rappers e resolveu prontamente o problema de logística: montou um show tão longo quanto, juntando um monte de artista que nas últimas três décadas ajudou a cristalizar o hip hop como um dos gêneros musicais mais populares do país. Deste jeito, o concerto improvisado – anunciado como uma homenagem a Taylor Hawkins sem, contudo, prender-se ao modelo chato de tributo de execução das principais músicas gravadas pelo homenageado – foi dividido em duas partes. Na primeira, os DJs Nyack e KL Jay deram o suporte soltando as bases para nomes como Emicida, Rael, Criolo, Bivolt, Drik Barbosa, Djonga, Ice Blue e Mano Brown mandarem algumas das principais composições de suas carreiras (…). A metralhadora verborrágica da turma revelou-se tudo aquilo que anda em falta nas bandas mais tradicionais de rock: sagacidade, rebeldia e periculosidade intelectual. Na segunda, os DJs e MCs individuais cederam o palco ao Planet Hemp, que veio do Rio de Janeiro para mostrar que a produção do festival cometeu um grande erro ao não escalá-lo. Com a banda afiadíssima e misturando hardcore, psicodelia, samba e jazz ao canto falado de Marcelo D2 e BNegão, o PH é uma das poucas bandas brasileiras de rock realmente avassaladoras ao vivo hoje em dia. Peso, contundência e, claro, aquela chama capaz de nunca se apagar. Tanto uma metade quanto a outra pode ser definida como uma oportunidade para celebrar o amor, a música e a possibilidade de se estar junto àquelas pessoas que amamos. E não bastasse esses lados A e B do novo concerto, houve ainda um “prefácio” tocante com Michele e Mônica Agena dedilhando lentamente suas guitarras e tornando “My Hero” ainda mais emocionante. No fim, depois do Planet Hemp, mais uma homenagem direta a Hawkins. O Ego Kill Talent, banda brasileira escalada para abrir a última turnê brasileira do FF em 2018, encerrou as atividades com duas músicas: uma autoral mais “Everlong”, a primeira cover tocada pelo quinteto durante toda a sua trajetória de shows. Se em um primeiro momento tudo parecia triste, perdido e arrasado para o encerramento de domingo do Lolla, depois dessa turma toda ninguém mais teve dúvida de que valeu muito a pena ter ido ao Autódromo ou ficar vendo pela TV toda aquela competente gambiarra improvisada horas antes.

#ForaBolsonaro

Sabe aquele tiro que sai pela culatra? Pois foi bem o que aconteceu neste Lollapalooza. Na sexta-feira, um fã deu a Pabllo Vittar uma bandeira com a cara e o nome de Lula e ela saiu correndo com o objeto, tremulando-o ao vento, em disparada pelo corredor que separa uma metade da outra do público. A foto saiu estampada em todos os portais de notícias. Em outro palco, a cantora galesa Marina Diamandis mandou, em alto e bom português, um “#ForaBolsonaro”. Os Strokes saíram do palco usando o microfone para falar a mesma coisa. Foi o que bastou para Jair Bolsonaro ficar nervosinho e, disfarçando sob a assinatura de seu novo partido, pedir judicialmente a reativaçãoo da censura a artistas, proibindo-os de expressar suas opiniões travestidas de, segundo suas palavras, “campanha para presidente antes do período determinado pela lei”. Só que ele pode e sempre faz isso. E o pior: o mesmo ministro do TSE Raul Araújo que endossou o pedido e faz voltar a valer a censura neste país foi aquele que, semanas antes negara pedido de retirada de outdoors irregulares fazendo campanha para Bolsonaro em uma cidade de Mato Grosso do Sul. Mas de nada adiantou esse passo rumo ao retrocesso. Depois de sábado, quando a notícia estourou pelos bastidores, foi um tal de “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” (como disse Lulu Santos ao adentrar o palco do Fresno para uma participação especial). No mesmo dia, Silva puxou o coro do incentivo para que jovens entre 16 e 18 anos (faixa etária para a qual o voto é facultativo) tirassem seu título de eleitor para poderem ir às urnas em outubro próximo. O grupo gaúcho também mandou um #ForaBolsonaro no telão. Logo depois, Gloria Groove entrou com uma blusa semelhante a um uniforme de time de futebol, tendo escrito atrás seu nome e o número 13. Emicida, tanto no sábado quanto no domingo, reforçou que o amor vale mais que o ódio e também mandou a hashtag mais famosa destes últimos quatro anos no país. Criolo não disse nada, apenas vestiu uma camiseta com a urna eletrônica na frente, mais um título de eleitor atrás. Bivolt demonstrou toda a sua insatsifação com o atual desgoverno federal no rap freestyle. Mas, claro, a maior vociferação contra a absurda ação autocrata veio de Marcelo D2. “Não, hoje #EleNão. Hoje #EleNão vai fazer a narrativa. A gente vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor. É sobre Taylor Hawkins. Sobre Chorão. Sobre Chico Science. Sobre Sabotage. Sobre Speedfreaks e Skunk.”, mandou logo ao entrar com o Planet Hemp, lembrando os nomes de amigos e ídolos já falecidos, sendo os dois últimos um ex-colaborador e um dos fundadores do PH. Aí mandou a letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”, manifesto antinarrativa de direita da Nação Zumbi. Depois emendou “Distopia”, música inédita “sobre esperança” com base jazzy que estará no disco da banda que será lançado do próximo semestre. O refrão trazia um jogo de palavras hipnótico (“Desobedeço o obedeça/ Obedeço o desobedeça”) enquanto o telão repetia outra parte da letra (“Repense Reflita Resista Recuse”). Em “Dig Dig Dig” reviveu o canto de Zumbi eternizado por Jorge Ben (“Zumbi é o Senhor das Guerras/ Zumbi é o Senhor das Demandas/ Quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda”). Antes de “queimar tudo até a últimaponta”, aproveitou para xingar diretamente Bolsonaro. Depois, lembrou que a musica “Zerovinteum”, há quase trinta anos, já falava sobre o problema das milícias no Rio de Janeiro – e ainda atestou estarem presentes sempre os assassinados Marielle e Anderson. Também levou um improvável hino do Ratos de Porão ao palco do grande festival mainstream com a cover de “Crise Geral” e antecipou a execução de “Contexto” dizedo que de nada adianta acreditar em um salvador da pátria e só fazer algo ao ir lá votar no dia da eleição. Ah, sim: não deixou de entoar a famosa musiquinha adaptando-a para homenagear o festival: “olê olê olá! Lolla, Lolla!”. Os artistas sambaram bonito em cima da cara do “é melhor Jair embora de uma vez”. Em tempo: o festival não foi notificado pela justiça porque o pedido de censura foi tão incompetente que nenhum dos dois CNPJs informados ali batiam com os responsáveis pelo evento. Em tempo 2: na segunda-feira, quando não adiantava mais nada porque tudo já acabara no domingo, Araújo suspendeu as manifestações políticas no Lolla afirmando que o texto da solicitação do PL o havia induzido a erro. A emenda ficou, de vez, pior que o soneto…

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Star Wars: A Ascensão Skywalker

Com direção de JJ Abrams, nono filme encerra a saga criada há mais de quatro décadas por George Lucas

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Textos por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop) e Flávio St Jayme (Pausa Dramática)

Fotos: Disney/Divulgação

O último longa de Star Wars, o derradeiro capítulo, o fecho, o encerramento, aquele filme que chega com todas as respostas, soluções e explicações é … mais ou menos. Triste dizer isso, mas qualquer admirador da história criada por George Lucas precisa fazer uma ginástica cognitiva para poder embarcar na proposta de “Ascensão”. Do contrário, ficará buscando explicações e entendimentos ao longo das mais de duas horas de projeção e então será pior. Vai constatar o raso de alguns personagens, o ritmo frenético da narrativa. Enfim, vai sair do cinema com gosto de cabo de guarda-chuva na boca.

Com JJ Abrams de volta à direção, o filme tem a árdua missão de explicar as pontas soltas dos seus dois antecessores (O Despertar da Força e Os Últimos Jedi) tendo em vista que, assim como eles, precisa ter alguma semelhança com os longas da primeira trilogia (A Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi). Até aí, no quesito “livre interpretação da dinâmica e detalhes” destes primeiros longas, Star Wars: A Ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX – The Rise Of Skywalker, EUA, 2019 – Disney) até cumpre seu propósito. O problema maior e definitivo do roteiro é a proposição feita nos primeiros minutos, que se vale de um detalhe no uso da Força, para ser viável. Se você aceitar “de boas” essa proposta, verá o filme com relativo conforto. Do contrário, viverá um crescente desconforto até o fim.

Outro problema é a quase anulação do que aconteceu no ótimo Os Últimos Jedi, quando a Resistência foi reduzida a um punhado de gente e apenas a Millenium Falcon. Aqui tudo começa com os rebeldes organizados, operantes e capazes de receber informações sobre uma nova armada que estaria se incorporando à Primeira Ordem. A partir daí, tem início um verdadeiro rocambole de eventos em velocidade altíssima, quase sem tempo para que possamos perceber o que está acontecendo. O filme se vale da mesma esquizofrenia de efeitos especiais da segunda trilogia, quase sem tempo para o espectador respirar. São cidades, planetas, personagens, subpersonagens, tramas e subtramas que vão correndo em paralelo, dentro de uma caçada a um artefato que pode revelar a origem da tal armada de naves. É tudo mal explicado e rápido demais.

Fica difícil acreditar em algumas soluções que vão surgindo ao longo do caminho, como, por exemplo, a chegada de Lando Calrissian à trama, um personagem importante e clássico, reduzido aqui a quase nada. Também é irritante a ginástica que é feita nos escalões da Primeira Ordem para que possamos entender um dos fios condutores da narrativa. E o grupo de heróis se mostra duro de engolir. Afinal de contas, algo está errado quando as melhores falas até quase a metade do filme são de C-3PO, transformado numa criatura com humor peculiar e aproveitado como um bom alívio cômico diante da pouca capacidade de Poe Dameron (Oscar Isaac) e Finn (John Boyega) de renderem cenas mais dramáticas. Os dois heróis são rasos, uma pena.

Mas, e Rey? E Kylo Ren? Bem, eles estão lá. Ela, fortíssima; ele, atormentadíssimo. Vão se comunicar pela Força ao longo da narrativa, vão se enfrentar em bons duelos de sabre de luz em todos os cantos e farão o que muitos esperam que eles façam, lá pro fim das contas, com um triste e desnecessário bônus melodramático. Neste espaço de tempo, aparições banais de Han Solo e Luke Skywalker irão turbinar alguns momentos, sem falar no malabarismo de montagem e inserção das cenas com Leia, uma vez que Carrie Fisher não estava mais presente nas filmagens.

Como filme de ação, A Ascensão Skywalker é ok, no mesmo sentido que um filme de ação em 2019 precisa ser esquizofrênico em sua montagem e roteiro. Como fecho de todas as trilogias, ele é feito para um público específico, criado e gestado nos últimos anos, que frequenta o parque de Star Wars na Disney e que não tem a ideia real da magia grandiosa da primeira trilogia. Aliás, se a série imaginada por George Lucas tem, de fato, algum feito para o cinema, ele está em algum ponto entre o meio de O Império Contra-Ataca e o fim de O Retorno de Jedi. Ali, sim, George Lucas, sem Disney por perto, marcou seu nome na história do Cinema. O resto está abaixo e precisamos conviver com isso. (CEL)

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Faz quatro anos que JJ Abrams trouxe o universo de Star Wars de volta ao mundo dos vivos. Trinta e oito anos depois da estreia do primeiro filme, o diretor provou que, sim, a saga ainda é uma força a ser reconhecida (com o perdão do trocadilho). Agora, em 2019, o mesmo diretor encerra a nova trilogia e uma saga que durou mais de quatro décadas e teve nove filmes e mais dois spin-offs. Abrams consegue, ao mesmo tempo, manter tudo que o público ama em Star Wars e modernizar as histórias e seus personagens. E A Ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX – The Rise Of Skywalker, EUA, 2019 – Disney) comprova isso de forma magistral.

Os novos personagens, apresentados em 2015 no Episódio VII (O Despertar da Força), são as peças principais da nova história. Rey, Poe, Finn, BB-8 e Kylo Ren são o centro das atenções e personagens-chave em longas sobre tradição, família e amizade. Aos poucos, vemos relações sendo construídas e destruídas, vamos nos despedindo de personagens conhecidos e amados e conhecendo este novo grupo de amigos.

E chegou a hora de nos despedirmos de todos eles. E QUE DESPEDIDA! JJ Abrams constrói um dos melhores filmes de todos os nove, entregando emoção, comédia e ação na medida certa. Vemos cada um dos personagens tomar o seu lugar naquela saga que amamos há tanto tempo. Vemos a importância dos novos e dos antigos protagonistas. Aprendemos com eles e nos emocionamos a cada adeus.

Abraçando a representatividade, o diretor coloca como maior protagonista desta história uma mulher: Rey, que entrará em conflito e terá seu passado enfim revelado. Mas vai além. Seus protagonistas são negros, latinos. Numa história que mistura diferentes espécies de seres vivos, por que não mostrar toda a diferença dos seres humanos em seus personagens?

A Ascensão Skywalker encerra a saga de Luke, Leia, Rey, Finn, Poe, Ben e Han Solo de forma épica e bem construída, com uma história relativamente simples e repleta de emoções. Um filme incrível para nenhum fã de Star Wars botar defeito. Uma despedida agridoce, que mostra como vamos sentir saudades destes personagens que fazem parte da nossa vida e da nossa cultura. J.J. Abrams se provou mais uma vez um dos melhores contadores de histórias da atualidade e conseguiu reavivar e manter um dos maiores fenômenos da cultura pop, mesmo mais de 40 anos depois de sua criação pela mente de George Lucas.

Ao final do filme, a grande pergunta que fica é se estamos preparados para dar adeus. (FSJ)

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Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.