Music

Roger Waters – ao vivo

Última turnê do baixista equilibra o repertório de seu comando cerebral do Pink Floyd, sua eterna veia politizada e momentos mais sentimentais

Texto por Abonico Smith e Frederico di Lullo

Foto: Reprodução

Depois de uma breve contagem contagem regressiva, o telão mandou o aviso final (e em alto e bom português!): “Senhoras e senhores, por favor, ocupem seus lugares. O espetáculo está prestes a começar. Antes de começar, duas mensagens públicas. Primeiro, em consideração aos demais espectadores, desliguem seus celulares. Em segundo lugar, se você é daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

Assim começa o show de This Is Not a Drill, a nova turnê de Roger Waters. No biênio 2022-2023 ele vem rodando o mundo com este espetáculo, adiado por conta da pandemia da covid-19. O recado, apesar do idioma traduzido, não foi uma exclusividade do Brasil, por onde passou as últimas semanas. Só que a observação, curta e direta, cai como uma luva para o nosso país. Afinal, em outubro de 2018, no giro antecessor por algumas capitais, o inglês foi protagonista de um dos maiores momentos de vergonha alheia já presenciados no showbiz em solo nacional. Não por culpa dele, claro. Mas por conta da horda de milhares de eleitores do hoje inelegível. Fãs de rock e do Pink Floyd, muitos deles pagaram um ingresso de preço salgado para ficar em um grande embate verbal e ideológico com o seu ídolo. Muitos xingamentos, vaias, gritos contínuos de “mito” e – o mais vergonhoso – diversos “cala a boca e canta!”. Como se fosse possível separar a pessoa do artista, o discurso da performance. Ainda mais no caso de Waters. O paradoxal, no entanto, foi ver a turba de apoiadores do inominável cantar verso por verso de canções como “Money”, “Us And Them”, “Welcome To The Machine”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Comfortably Numb” e as partes 2 e 3 de “Another Brick On The Wall”. Ainda mais durante o show realizado em Curitiba, terra da Lava-Jato, na véspera da eleição do segundo turno presidencial (clique aqui para ler a resenha deste concerto).

Cinco anos se passaram e Roger Waters retornou ao Brasil para trazer This Is Not a Drill a seis cidades (Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e… de novo Curitiba, na última noite de 4 de novembro). Muito, meia década antes, foi especulado se o artista voltaria ou não ao nosso país, tamanha fora a falta de educação, elegância e cortesia de boa parte de seus fãs. Só que agora, entretanto, os tempos são outros. A extrema-direita já se encontra devidamente fora do Palácio do Planalto e em queda na popularidade. Muitos de seus ícones estão começando a encarar, judicialmente, as consequências de seus desmandos. O golpe articulado fracassou. Lula cumpre seu terceiro mandato executivo em Brasília. E Roger Waters também está um pouco mais velho – acaba de entrar para o grupo dos octogenários e anunciar que não deverá mais excursionar pelo mundo.

Roger continua incisivamente político e disso nunca vai abrir mão. Mas reserva espaço maior na tour para diálogos mais sentimentais com a plateia. Mais revivalista em sua relação sua vida, não fica só acusando comandantes de estado de criminosos de guerra (Reagan, Putin, Bolsonaro): entre falas ao microfone e telão com imagens e frases, homenageia o ídolo Bob Dylan, o amigo Syd Barrett, a mulher e o irmão. E também equilibra mais o repertório entre os discos mais significativos (para ele, lógico) de sua trajetória no Pink Floyd. Isto é, a fase em que o processo criativo do grupo era comandado cerebralmente por ele no decorrer dos anos 1970, compreendida pelos álbuns The Dark Side Of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). Bem pouca coisa do repertório vem pinçada de sua carreira solo pós-banda. Para os fãs, isso nem importa tanto. O bom mesmo é vibrar com os infláveis voadores de ovelha e porco durante “Sheep” e “In The Flesh”. Emocionar-se com as lembranças históricas do companheirismo de Syd na trinca “Have a Cigar”, “WIsh You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond”. Viajar na reprodução o integral do lado B de The Dark Side…, inclusive com lasers tridimensionais revivendo ali, no palco, o famoso prisma da capa do disco – há quem diga que assistir chapado a este momento ainda melhora bastante o impacto. Ser atropelado pelos martelos fascistas de “Run Like Hell” ou o toque sombrio de uma “Comfortably Numb” de novo arranjo mais lento e soturno para servir como abertura da noite.

Ainda há na atual turnê um brinde exclusivo aos fãs: a inédita e recentemente composta canção “The Bar”, inspirada na luta do advogado de direitos humanos Steve Donziger contra a contaminação tóxica feita por quase trinta anos pela gigante petrolífera Chevron (antiga Texaco) na Amazônia equatoriana e seus consequentes esforços para escapar da responsabilidade pelo escandaloso crime ambiental. É justamente esta a grande novidade incluída no roteiro de This Is Not a Drill, em relação aos espetáculos anteriores (Us + ThemThe Wall): uma música até então não lançada em disco. Carinhosamente revivida ao final do espetáculo em performance acústica e intimista com Waters cercado pelos seus instrumentistas de apoio, aliás, a reprise de “The Bar, colada com “Outside The Wall” é a representação do adeus do ídolo perante seus fãs. De alguém que cultiva a solidez do passado sem deixar de olhar para a frente e contestar as coisas que sempre o deixam insatisfeito. De um cara que nunca quis ser apenas mais um tijolo encaixado na parede.

Set list: Parte 1 – “Comfortably Numb”, “The Happiest Days of Our Lives”,  “Another Brick In The Wall Part 2”, “Another Brick In The Wall Part 3”, “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range”, “The Bar”, “Have a Cigar”, “Wish You Were Here”, “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, 
e “Sheep”.
 Parte 2 – “In the Flesh”, “Run Like Hell”, “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise)”, “Is This The Life We Really Want?”, “Money”, “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage”, “Eclipse”, “Two Suns In The Sunset, “The Bar (Reprise)” e “Outside The Wall”.

>> PS: Dias após o encerramento da turnê pelo Brasil, Roger Waters teve suas estadias em Buenos Aires e Montevidéo negadas por alguns hotéis destes países. O motivo: as recentes declarações feitas pelo artista contra a violência extrema utilizada por Israel para responder ao atentado coordenado pelo Hamas no último dia 7 de outubro, contra civis e militares do país. Waters, então, optou por continuar hospedado em São Paulo e se deslocar às duas cidades nos dias de cada apresentação.

Music

Lollapalooza Brasil 2022 – ao vivo

Oito motivos para celebrar o retorno do festival cantando os versos “olê olê olá! Lolla! Lolla!”

Planet Hemp

Textos por Abonico Smith

Fotos: Lolla BR/Camila Cara/Divulgação

Enfim, a música está definitivamente de volta aos palcos no Brasil. E os festivais de música também. Depois de dois anos de muito isolamento, distanciamento e congelamento de eventos artísticos provocados pela pandemia, com os números em queda e o gradativo relaxamento das regras sociais, a grade de grandes eventos pode ser retomada em 2022. No terreno da música pop, tudo começou no último final de semana, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, com os quatro palcos e três dias do Lollapalooza Brasil, que, entre 25 e 27 de março, retomou um pouco daquela programação que estava sendo esperada para 2020, mas com várias alterações sendo feitas a cada cancelamento, até mesmo nas últimas semanas com a desistência de duas bandas internacionais por conta de gente diagnosticada com a covid-19. Surpresas que se prolongaram até a véspera do domingo, com o mundo sendo pego de surpresa pela notícia da inesperada morte de Taylor Hawkins, o carismático baterista do Foo Fighters, o último dos três headliners, horas antes de um show em outro festival na Colômbia.

Mondo Bacana lista oito motivos que vão fazer você se lembrar para sempre desta edição um tanto confusa e atabalhoada mas extremamente importante para ajudar a recolocar os grandes festivais e eventos musicais no eixo em território brasileiro.

Wombats

Este trio liverpludiano de nome de marsupial australiano e carreira sólida no circuito indie rock europeu merecia ter sorte melhor em sua primeira vinda (tardia, já que a discografia aponta cinco trabalhos em 15 anos) ao Brasil. Mal havia começado seu set e do nada veio um toró danado, com muitos raios e ventos, o que forçou a organização a cancelar tudo imediatamente e evacuar palco e plateia pelo risco de acidentes próximos a instalações metálicas. Foram só cinco músicas, mas o suficiente para ver que o vocalista Matthew Murphy e seus comparsas tinham muita lenha para queimar naquela tarde de sexta-feira. Misturando guitarras e grooves e com hits poderosos como “Moving To New York” e “Techno Fan”, lá do início da carreira, estrategicamente colocados no pontapé inicial para incendiar tudo. Só que aí veio o inesperado. A chuvarada veio impiedosamente para apagar todo o fogo da banda. Pelo menos restou a suspeita de que ano que vem eles deverão estar de volta por aí para compensar o “pocket show forçado”.

Strokes

Muita gente pode achar sem sentido a escalação do Strokes como headliner de um grande festival, justificando que o quinteto nova-iorquino está longe de seu auge criativo. Pura bobagem! Se bandas como Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses vivem desembarcando aqui no Brasil com o mesmo status, porque a trupe de Julian Casablancas não poderia também? OK, as vendagens podem não ter sido tão grandiosas se comparadas a estes nomes, mas a importância e a significância para tal ponto. Afinal, ajudaram a consolidar uma nova linguagem do rock, tão suja e underground quanto seus antecessores que consolidaram o punk e o alternativo no subsolo norte-americano. E, bem, musicalmente continuam muito bons. Simples, direto ao ponto, sem firulas (até mesmo nos solos). Julian Casablancas continua cantando cinicamente desanimado, como um “tô nem aí para nada”, agarrado no pedestal, de óculos escuros e na maior pose antipopstar. Aliás o foda-se desta vez estendeu-se também à escolha do repertório. O grupo ousou ao eliminar escolhas óbvias para festivais como de hits (como “Someday” e sobretudo “Last Nite”), pegar lados B dos dois primeiros álbuns (“Under Control”, “Trying Your Luck”, “Take It Or Leave It”, “New York City Cops”) e bancar um terço do set list (cinco de quinze) com faixas do álbum mais recente, lançado logo depois do lockdown mundial provocado pelo decreto da pandemia. Gran finale da primeira noite!

Emicida

Há muito tempo que, em se tratando de peso e atitude, o rap é o novo rock aqui no Brasil. Depois de uma série de discos acachapantes, Emicida veio para este Lollapalooza disposto a provar que, sim, pelo menos em se tratando de festivais de música a revolução pode ser televisionada em nosso país. AmarElo, o show, é uma porrada na cara, um soco no estômago, um tapa do Will Smith em todos os sentidos. Banda afiada, com duas guitarras poderosas, baixista-maestro, percussão dando peso às batidas do DJ. Com versos de forte conteúdo racial, social, político e (por quê não?) de relacionamentos pessoais – a ponto de levar a um festival pop o pastor Henrique Vieira para mandar um sermão contagiante no final com “Principia”. Antes, porém, uma trinca matadora com participações especiais: Rael em “Levanta e Anda”, Drik Barbosa em “Luz” e Majur em “AmarElo”(aquela na qual o sample com o refrão gravado originalmente na voz de Belchor vira transe coletivo).

Miley Cyrus

Às vésperas de completar 30 anos de idade, a ex-Hannah Montana libertou-se de todas as amarras imagéticas que ainda poderiam estar assombrando seus trabalhos anteriores. Sonoramente, lançou-se fundo no rock, com muitas timbragens e elementos oitentistas sem abandonar a veia pop dos arranjos. Visualmente, toda de preto e cabelo platinado no melhor estilo femme fatale eternizado por Madonna também nos anos 1980. De quebra, ainda chamou a amiga Anitta ao palco para celebrar “a brasileira número um mundial do Spotify” e mandar – rebolando bastante, claro – um feat do novo hit dela “Boys Don’t Cry”. Só que nem tudo é perfeito. Para os millennials, Miley pde ser o máximo, impactante, de causar arrepios. Só que quem tem mais idade e já viu muito mais coisa no rock’n’roll sabe que tudo nao passa de um pastiche. Bem produzido mas um pastiche. Rola um déjà-vu atrás do outro, com lembranças que vão de Bon Jovi a… Madonna! Isso sem falar no amontoado de covers sem sentido (já que ela é uma headliner com carreira já longa e consolidada) que deformam Pixies (“Where Is My Mind?”), Blondie (“Heart Of Glass”) e Nancy Sinatra (“Bang Bang”). Ah, sim, teve toda a encenação do choro pela morte do grande amigo pessoal Taylor Hawkins no meio do show (quando ela cantou “Angles Like You” sentada em uma cadeira agarrada a uma bolsa de grife da qual tirou um lencinho para enxugar as lágrimas sem borrar o make). Por falar em grife, o que dizer do enorme casaco de inverno verde que ela teve de vestir e cantar por uns dois minutos usando durante a primeira música. Contratos de parceira publicitária? Muito rock’n’roll isso, né? No telão ao fundo, a frase “sell out to sell out”(em bom português, “vender-se para se vender”). Pose dez, atitude duvidosa no fim das contas. Será que é disso que o mundo necessita mesmo?

Idles

Já faz alguns anos que as terras britânicas vem exportando ao mundo uma série de novas bandas excitantes. Muitas delas, inclusive, com inspiração clara nos bons sons alternativos norte-americanos dos anos 1990. O Idles é um destes exemplos. Formado na cidade de Bristol, o quinteto vem concebendo álbuns maravilhosos em série (foram quatro desde 2017) e é nos concertos em grande escala que vem fazendo sua fama expandir ainda mais. Se a sonoridade já era brutal em pequenos espaços, quando o palco ganha proporções gigantescas – como é o caso dos festivais a céu aberto – parece que a banda também se agiganta com facilidade extrema. Aqui no Brasil, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Com um pezinho naquela mistura entre o punk rock, o hardcore e o industrial e lembrando bandas clássicas de selos como Touch and Go (de Chicago) e Alternative Tentacles (criado por Jello Biafra em San Francisco). O quinteto insano jorrou em pouco menos de uma hora treze músicas praticamente coladas uma na outra – com claro destaque para o segundo álbum, Joy As An Act Of Resistance, de onde vieram sete delas). Ao vivo, parece que cada músico dispara para um lugar separado, tanto nas notas musicais como na performance cênica individual. A somatória desta coisa toda aparentemente difusa acaba atordoando, formando um conjunto monolítico com altos graus de ironia e sarcasmo – nas danças ora patéticas ora intensas dos músicos, na verborragia cuspida pelo vocalista Joe Talbot, na pancadaria rítmica da e bateria, nas distorções e microfonias incessantes formadas por toneladas de pedais ligados ao baixo e às duas guitarras. Nunca um fim de tarde de domingo soou tão longe de ser modorrento.

Libertines

Depois do Idles, no mesmo palco principal do Lolla vieram os Libertines, atração praticamente acertada de última hora, já que duas semanas antes do festival o Jane’s Addiction cancelou a vinda por conta de casos de covid em sua equipe. E, olha, nunca uma escolha poderia ter sido tão acertada e oportuna quanto esta. Afinal, lá atrás, quando estiveram pela primeira vez no país também em um grande festival, a banda estava no seu auge mas se encontrava temporariamente sem um de seus frontmen, o guitarrista e vocalista Pete Doherty estava temporariamente afastado de suas funções em virtude de uma sentença judicial que o levou à cadeia. E Carl Bârat sem Pete é como Piu-Piu sem Frajola, Buchecha sem Claudinho. Agora, Pete e Carl ficaram lado a lado, alternando-se nos vocais no típico repertório “banda de bar” que fez a fama do quarteto lá na primeira metade dos anos 2000 – o set list contou com treze faixas extraídas dos dois primeiros e mais famosos álbuns. Com a poderosa ajuda do experiente baterista Gary Powell (que, dez anos mais velho que os dois e negro, ainda insere com extrema competência elementos de jazzblues e soul nos arranjos). Tudo bem que a idade já começa a pesar nos ombros. Com 43 anos de idade, não são mais aqueles likely lads que promoviam performances anárquicas em pequenos palcos nas gigs em Londres e arredores. Pelo menos estão vivos e esperneando, sempre prontos para mandar clássicos do indie rock do século 21 como “What Became Of The Likely Lads”, “What Katie Did”, “Boys In The Band”, “Time For Heroes” e “Can’t Stand Me Now”. Sorte nossa, mesmo que muita gente mais jovem que estava in loco no Lolla não tenha dado a mínima por achar que rock é o que menos importa na música de um festival.

Mano Brown

O rap é o novo rock

Perto da meia-noite de sexta para sábado (horário de Brasília) chega a notícia bombástica: horas antes de se apresentar em um festival na Colômbia, o baterista do Foo Fighters Taylor Hawkins morre no hotel. Mais um problema – e que problemão – de última hora para a escalação do festival: como resolver em questão de menos de dois dias a substituição da banda para encerrar a programação do palco principal no domingo? A solução estava bem perto e, de certa forma, vinda de um lado inesperado para muita gente: ela respondia por Emicida. Admirador da banda de Dave Grohl, assim como a guitarrista de sua banda, Michele Cordeiro, ele recorreu a um punhado de amigos rappers e resolveu prontamente o problema de logística: montou um show tão longo quanto, juntando um monte de artista que nas últimas três décadas ajudou a cristalizar o hip hop como um dos gêneros musicais mais populares do país. Deste jeito, o concerto improvisado – anunciado como uma homenagem a Taylor Hawkins sem, contudo, prender-se ao modelo chato de tributo de execução das principais músicas gravadas pelo homenageado – foi dividido em duas partes. Na primeira, os DJs Nyack e KL Jay deram o suporte soltando as bases para nomes como Emicida, Rael, Criolo, Bivolt, Drik Barbosa, Djonga, Ice Blue e Mano Brown mandarem algumas das principais composições de suas carreiras (…). A metralhadora verborrágica da turma revelou-se tudo aquilo que anda em falta nas bandas mais tradicionais de rock: sagacidade, rebeldia e periculosidade intelectual. Na segunda, os DJs e MCs individuais cederam o palco ao Planet Hemp, que veio do Rio de Janeiro para mostrar que a produção do festival cometeu um grande erro ao não escalá-lo. Com a banda afiadíssima e misturando hardcore, psicodelia, samba e jazz ao canto falado de Marcelo D2 e BNegão, o PH é uma das poucas bandas brasileiras de rock realmente avassaladoras ao vivo hoje em dia. Peso, contundência e, claro, aquela chama capaz de nunca se apagar. Tanto uma metade quanto a outra pode ser definida como uma oportunidade para celebrar o amor, a música e a possibilidade de se estar junto àquelas pessoas que amamos. E não bastasse esses lados A e B do novo concerto, houve ainda um “prefácio” tocante com Michele e Mônica Agena dedilhando lentamente suas guitarras e tornando “My Hero” ainda mais emocionante. No fim, depois do Planet Hemp, mais uma homenagem direta a Hawkins. O Ego Kill Talent, banda brasileira escalada para abrir a última turnê brasileira do FF em 2018, encerrou as atividades com duas músicas: uma autoral mais “Everlong”, a primeira cover tocada pelo quinteto durante toda a sua trajetória de shows. Se em um primeiro momento tudo parecia triste, perdido e arrasado para o encerramento de domingo do Lolla, depois dessa turma toda ninguém mais teve dúvida de que valeu muito a pena ter ido ao Autódromo ou ficar vendo pela TV toda aquela competente gambiarra improvisada horas antes.

#ForaBolsonaro

Sabe aquele tiro que sai pela culatra? Pois foi bem o que aconteceu neste Lollapalooza. Na sexta-feira, um fã deu a Pabllo Vittar uma bandeira com a cara e o nome de Lula e ela saiu correndo com o objeto, tremulando-o ao vento, em disparada pelo corredor que separa uma metade da outra do público. A foto saiu estampada em todos os portais de notícias. Em outro palco, a cantora galesa Marina Diamandis mandou, em alto e bom português, um “#ForaBolsonaro”. Os Strokes saíram do palco usando o microfone para falar a mesma coisa. Foi o que bastou para Jair Bolsonaro ficar nervosinho e, disfarçando sob a assinatura de seu novo partido, pedir judicialmente a reativaçãoo da censura a artistas, proibindo-os de expressar suas opiniões travestidas de, segundo suas palavras, “campanha para presidente antes do período determinado pela lei”. Só que ele pode e sempre faz isso. E o pior: o mesmo ministro do TSE Raul Araújo que endossou o pedido e faz voltar a valer a censura neste país foi aquele que, semanas antes negara pedido de retirada de outdoors irregulares fazendo campanha para Bolsonaro em uma cidade de Mato Grosso do Sul. Mas de nada adiantou esse passo rumo ao retrocesso. Depois de sábado, quando a notícia estourou pelos bastidores, foi um tal de “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” (como disse Lulu Santos ao adentrar o palco do Fresno para uma participação especial). No mesmo dia, Silva puxou o coro do incentivo para que jovens entre 16 e 18 anos (faixa etária para a qual o voto é facultativo) tirassem seu título de eleitor para poderem ir às urnas em outubro próximo. O grupo gaúcho também mandou um #ForaBolsonaro no telão. Logo depois, Gloria Groove entrou com uma blusa semelhante a um uniforme de time de futebol, tendo escrito atrás seu nome e o número 13. Emicida, tanto no sábado quanto no domingo, reforçou que o amor vale mais que o ódio e também mandou a hashtag mais famosa destes últimos quatro anos no país. Criolo não disse nada, apenas vestiu uma camiseta com a urna eletrônica na frente, mais um título de eleitor atrás. Bivolt demonstrou toda a sua insatsifação com o atual desgoverno federal no rap freestyle. Mas, claro, a maior vociferação contra a absurda ação autocrata veio de Marcelo D2. “Não, hoje #EleNão. Hoje #EleNão vai fazer a narrativa. A gente vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor. É sobre Taylor Hawkins. Sobre Chorão. Sobre Chico Science. Sobre Sabotage. Sobre Speedfreaks e Skunk.”, mandou logo ao entrar com o Planet Hemp, lembrando os nomes de amigos e ídolos já falecidos, sendo os dois últimos um ex-colaborador e um dos fundadores do PH. Aí mandou a letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”, manifesto antinarrativa de direita da Nação Zumbi. Depois emendou “Distopia”, música inédita “sobre esperança” com base jazzy que estará no disco da banda que será lançado do próximo semestre. O refrão trazia um jogo de palavras hipnótico (“Desobedeço o obedeça/ Obedeço o desobedeça”) enquanto o telão repetia outra parte da letra (“Repense Reflita Resista Recuse”). Em “Dig Dig Dig” reviveu o canto de Zumbi eternizado por Jorge Ben (“Zumbi é o Senhor das Guerras/ Zumbi é o Senhor das Demandas/ Quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda”). Antes de “queimar tudo até a últimaponta”, aproveitou para xingar diretamente Bolsonaro. Depois, lembrou que a musica “Zerovinteum”, há quase trinta anos, já falava sobre o problema das milícias no Rio de Janeiro – e ainda atestou estarem presentes sempre os assassinados Marielle e Anderson. Também levou um improvável hino do Ratos de Porão ao palco do grande festival mainstream com a cover de “Crise Geral” e antecipou a execução de “Contexto” dizedo que de nada adianta acreditar em um salvador da pátria e só fazer algo ao ir lá votar no dia da eleição. Ah, sim: não deixou de entoar a famosa musiquinha adaptando-a para homenagear o festival: “olê olê olá! Lolla, Lolla!”. Os artistas sambaram bonito em cima da cara do “é melhor Jair embora de uma vez”. Em tempo: o festival não foi notificado pela justiça porque o pedido de censura foi tão incompetente que nenhum dos dois CNPJs informados ali batiam com os responsáveis pelo evento. Em tempo 2: na segunda-feira, quando não adiantava mais nada porque tudo já acabara no domingo, Araújo suspendeu as manifestações políticas no Lolla afirmando que o texto da solicitação do PL o havia induzido a erro. A emenda ficou, de vez, pior que o soneto…

Series, TV

Pam & Tommy

Série sobre casal explosivo da primeira sex tape de famosos viralizada na internet promove um intenso revival de meados dos anos 1990

Texto por Taís Zago

Foto: Hulu/Star+/Divulgação

Série em nove capítulos, Pam & Tommy (EUA, 2022 – Hulu/Star+) remonta, com riqueza de detalhes, o curto e intenso relacionamento entre duas das mais conhecidas – e amadas pelos paparazzi – celebridades dos tabloides norte-americanos dos anos 1990. Porém para Pamela Anderson e Tommy Lee, o verdadeiro ápice da fama só seria atingido ao protagonizarem a primeira sex tape de famosos a vazar e viralizar mundialmente com a ajuda da internet.

Qualquer um que já tenha mais de 40 anos ouviu falar nos escândalos envolvendo, entre 1995 e 1998, o curto casamento de Pamela Anderson, modelo e atriz, e Tommy Lee, o infame baterista. Ambos se conheceram em uma festa, apaixonaram-se à primeira vista e quase que imediatamente casaram. Mas o pouco tempo que ficaram juntos foi uma montanha-russa de emoções, escândalos, traições e abuso doméstico. Os frutos que surgiram dessa mistura explosiva – os filhos Brendan e Dylan – são até hoje testemunha deste relacionamento complicado, que sempre lembrou um puxa e empurra – ou, melhor, um sobe-e-desce. Por mais que repudiassem a perseguição da mídia, ambos claramente curtiam lavar uma roupa bem encardida com a presença de plateia. Em 2008, por um breve período, curiosamente, houve uma reunião dos pombinhos. Mas, claro, com a mesma rapidez que a chama reacendeu, também logo causou uma explosão. A mistura Pam+Tommy era volátil.

Acho interessante falar um pouco dos protagonistas para quem não era nascido e não acompanhou o drama in loco na época. Pamela Anderson construiu no começo dos anos 1990 uma carreira, digamos, “sólida” de sex symbol, tendo como base um número recorde de capas da Playboy e várias temporadas da série Baywatch (no Brasil, S.O.S. Malibu), na qual passava a maior parte do tempo correndo na praia, molhada e com um maiô vermelho. Lee, por sua vez, alcançou a fama ainda nos anos 1980 com sua banda de hair (spraymetal, o Mötley Crüe. Vendeu uma quantidade obscena de álbuns e enriqueceu. Assim como ganhava, também gastava generosamente seus dólares com sexo, luxo, festas e drogas, e um pouco menos com rock’n’roll. Sua fama de “viciado em sexo” e rumores sobre seus atributos íntimos “avantajados” eram amplamente conhecidos pelo público do época. Tommy curtia muito um biscoito e um confete e fazia questão de se comportar da forma mais extravagante possível para não sair da mira das câmeras e das revistas de fofoca. Pra quem se interessar mais pelas “peripécias” de Tommy e sua turminha tudo que o Mötley Crüe aprontou está no livro The Dirt: Confissões da Banda de Rock Mais Infame do Mundo, de 2001, ou de forma condensada no ótimo filme The Dirt (Netflix, 2019). Ambos valem bastante a pena.

Dada a introdução necessária, vamos ao que interessa. O roteiro da série foi criado com base em um artigo escrito pela jornalista Amanda Chicago Lewis para a revista Rolling Stone em 2014, chamado Pam and Tommy: The Untold Story of the World’s Most Infamous Sex Tape. E tem, fora os personagens do título, mais um coprotagonista. Rand Gauthier (Seth Rogen) havia sido contratado como marceneiro – no artigo, ele é descrito como eletricista – por Anderson (Lily James) e Lee (Sebastian Stan), para trabalhar na interminável reforma da mansão do casal em Malibu.

Após alguns desentendimentos com Tommy, que o ameaça com uma arma, Gauthier acaba demitido do projeto sem receber nenhum pagamento. Ressentido, arquiteta minuciosa – e atrapalhadamente um plano para recuperar o dinheiro que o músico devia a ele, e (por que não?) lucrar às custas do rockstar. O plano dá certo e após uma operação caótica e absurda, digna de filme dos irmãos Coen, Rand acaba pondo as mãos em uma sex tape do casal. E isso veio muito a calhar, já que ele tem histórico de ator pornô e amizade com o produtor Uncle Miltie (Nick Offerman). Este se torna seu parceiro perfeito para executar o plano da venda das cópias da fita Hi8 em VHS, enviadas pelo correio e anunciadas na internet. Isso em 1995 quando, sabemos, a internet era só mato, discada, e o browser era o finado Altavista. Infelizmente a alegria dos malandros dura pouco, pois para financiar a empreitada, Rand e Uncle Miltie acabam pegando dinheiro emprestado com um capo da máfia envolvido na indústria pornô. A partir daí, a desgraça está programada.

A atriz britânica Lily James está espetacular como Pamela. Ela acerta na voz, nos trejeitos, na mistura de doçura com malícia, até mesmo nos momentos de vulnerabilidade e da confissões dos sonhos frustrados da atriz-modelo. É trabalhada no roteiro uma parte de Anderson menos conhecida pela sua legião de fãs formada quase que inteiramente pelo sexo masculino. Vemos um lado mais humano, muito mais frágil e dependente. Uma imagem muito mais próxima da realidade de muitas mulheres em relacionamentos tóxicos. É importante lembrar que o empoderamento feminino que temos hoje ainda estava em plena construção há quase três décadas. Muitos abusos domésticos eram ocultados, principalmente em se tratando de pessoas famosas.

Sebastian Stan faz um bom trabalho, porém tem uma mão um pouco mais pesada ao incorporar Tommy. Stan recheou exagero com mais uma porção de exagero, deixou o Tommy ainda mais estridente e hiperativo. Não é novidade que o baterista  tem (tinha?) um temperamento explosivo, violento, arrogante e hedonista ao extremo. Porém sejamos honestos, Lee é megalomaníaco com uma forte queda pra um transtorno de personalidade antissocial – coisa que, diga-se de passagem, não é nenhuma raridade universo das (sub)celebridades.

Do outro lado da narrativa temos Seth Rogen sendo Seth Rogen. É fato conhecido que como ator ele não tem muitas facetas e com Rand parece repetir o que fez em Pagando Bem, Que Mal Tem? (de 2008): um geek frustrado, sem dinheiro e a fim de transar. Assim como Nick Offerman nos entrega um cara mal-humorado e sem escrúpulos com fortes pinceladas de seu papel em Parks & Recreation. Com tanto exagero, a série beira perigosamente o caricatural. Ok. Na verdade mergulha e vai ao fundo. E ali fica. Mas o mar é o de Cancun… Então, no conjunto da obra isso não é necessariamente ruim.

Pam &Tommy também é um retrato bem fidedigno da cultura pop da metade dos anos 1990 com direito a muito couro, látex, pelúcia, animal print, maquiagem ruim, mullets, tatuagens tribais e bronzeados artificiais. Mas a cereja do bolo (ou da torta?) fica por conta da trilha sonora, que surge com la creme de la creme da época e nos joga em uma viagem do tempo com Fatboy Slim, Nine Inch Nails, Cardigans, Lenny Kravitz, sucessos do glam metal (Mötley Crüe, Poison) ou ainda com 90s club hits (La Bouche, Beds and Beats) 

Para alguns, essa série com capítulos semanais – até agora apenas três episódios estão disponíveis no Brasil na plataforma de streaming Star+ – vai ser um viagem nova e bizarra, um revival de quase 30 anos atrás, assim como ocorre de forma recorrente a cada nova década que se inicia. Para outros, dos quais faço parte, vai ser um festival de déjà-vu e nostalgia de um tempo que passou em um piscar de olhos.

Music

Roger Waters – ao vivo

Resistir com amor é o ensinamento que o ex-baixista do Pink Floyd passou à plateia sob vaias, xingamentos e aplausos na terra da Lava-Jato

rogerwaters2018c

Textos de Janaina Monteiro e Abonico Smith

Foto: Priscila Oliveira (CWB Live)

Quem esperava ouvir um inflamado discurso político escutou palavras de amor por parte de George Roger Waters no show histórico que apresentou no sábado à noite em Curitiba, às vésperas de uma eleição conturbada para presidente da República. Como a lei eleitoral não permitia manifestações públicas após as 22h (e um juiz local fez questão de enfatizar isso ao artista), Waters se calou e usou o gigantesco telão para se posicionar contra as ideias do candidato Jair Bolsonaro, agora presidente do Brasil. E diante de uma plateia polarizada, entre vaias, aplausos, gritos de “#EleNão” e “Fora PT”, o britânico, de 75 anos, disparou atenuando os ânimos exaltados. Declarava “I love you” e “This show is about love”. Abria os braços para a multidão que lotou o estádio Major Antônio Couto Pereira.

Isso porque em shows anteriores da turnê Us + Them pelo país, o 28º músico mais bem pago do mundo (segundo a revista Forbes, ele faturou 68 milhões de dólares em 2018), causou polêmica ao criticar enfaticamente – inclusive com uso de palavrão – o então candidato do PSL e representantes de regimes de extrema-direita que crescem no mundo. Em Curitiba, numa noite estrelada e enluarada, o cara que ficou conhecido como o cabeça da banda de rock psicodélico/progressivo Pink Floyd teve meia hora para se expressar antes que a lei entrasse em vigor.

Quem chegava ao estádio já se deparava com o enorme telão que mostrava uma mulher, sentada de frente para o mar, olhando para o horizonte. De repente, o céu ficou vermelho. O mundo acabou e o show começou para as 41 mil pessoas presentes. Roger Waters entrou britanicamente às 21h30 no palco e, já no início da primeira parte, nos lembrou o quão pequenos somos diante da vastidão do universo.

A banda começou com “Breathe” e a grande lua e seu lado negro (“the dark side of the moon”) pairou sobre a Terra e se perdeu na infinitude das estrelas. A viagem teve início e era preciso respirar fundo para testemunhar a sequência do show. Seriam quase três horas de história: a trágica História da humanidade, o lado negro do ser humano.

O show de Waters não é para dançar ou se divertir (apesar que haver quem consiga). É um show pesado, para refletir, para protestar. Essa é a sua marca: o músico, que perdeu o pai para o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e o avô na Primeira, usa sua arte para criticar a desigualdade social. Assisti-lo lúcido, sem nada para entorpecer – como uma gota de álcool ou uma tragada de cigarro – é como levar um soco na cara. Após uma sucessão de imagens violentas, de guerras, pessoas amputadas, minorias, palestinos, muçulmanos, africanos; armas, muitas armas; e crianças diante de tanques de guerra é difícil não se emocionar, não entrar em transe, comover-se. E pensar o quanto ainda precisamos evoluir como seres humanos.

O Pink Floyd lançou o emblemático The Wall, seu décimo primeiro álbum, em 1979, dez anos depois que o homem “supostamente” chegou à lua e da eclosão da chamada terceira revolução industrial, que marcava o início da era da informatização. As tarefas mecânicas e repetitivas das fábricas passaram a ser automatizadas. Com a virada do século, os computadores pessoais e a internet transformaram as relações interpessoais, o modo como nos manifestamos. Hoje presenciamos a quarta revolução industrial: big data, inteligência artificial e afusão dos mundos físico, digital e biológico. Tudo parece estar muito perto, muito fácil, a um clique. Ainda assim, os discursos continuam os mesmos.

Nessas quase quatro décadas desde o lançamento de The Wall, guerras, desigualdade, pobreza, porcos capitalistas, regimes totalitários, muros e chaminés de indústrias continuam a poluir nossas vidas. O show de Waters seguia reflexivo a respeito disso tudo: “One Of These days”, “Time”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”. Até que Waters nos convidou a resistir.

Cantor e banda se calaram sob sirenes e o telão explicou. “Temos 30 segundos. É a nossa última chance de resistir ao fascismo antes de domingo. #EleNão! São 10:00. Obedeçam a (sic) lei” A plateia reagiu: uns gritavam “#EleNão”. Outros vaiavam e xingavam o artista. Muitos diziam “fora PT”. Houve quem tapasse os ouvidos.

Waters ressurgiu com “Wish You Were here” e reuniu o coro novamente numa mesma direção até o grande momento do show com sua banda impecável e o clássico “Another Brick In The Wall (partes 2 e 3)”. Quatorze jovens encapuzados entraram no palco vestidos com uniformes de presidiário, de cor laranja e números gravados no peito. O verbo resist apareceu em vermelho no telão e estampado em branco na camiseta preta dos adolescentes, que se despiam do uniforme da prisão e se libertavam. É preciso perfurar esse muro, que, como diria o filósofo Michel Foucault, diz “NÃO” mais alto do que qualquer voz que você ouvirá.

Pausa? Mas que pausa? O “intervalo” começou mas as mensagens no telão não deixavam ninguém relaxar. Vinha um bombardeio de mensagens sobre o poder das guerras, dos porcos capitalistas. A primeira críticas foi diretamente a Mark Zuckerberg, dono de um império avaliado em 81,6 bilhões de dólares. A mensagem do baixista era clara: “resista ao neofascismo”. E ela permearia todo o segundo ato do show, que começou com “Dogs”.

“Resist what? Resist who?”, mostrava o telão. Mas a pergunta que deve ser feita é “resistir como”? Com discursos de ódio ou com uma comunicação não-violenta, empática, aquela que se aproxima do que o líder espiritual Gandhi buscava? A capacidade de se expressar sem usar julgamentos, o maniqueísmo, que divide o mundo em bom e o mau.

Uma imensa usina – a mesma estampada na capa de Animals, de 1977 – tomou conta do telão, por trás de onde emergiam quatro imensas chaminés e um porquinho cinzento inflável. E Waters cantou “Pigs”, do mesmo álbum, numa crítica debochada a Donald Trump. “Big man, pig man, haha, charade you are”. Ora o presidente americano aparecia num corpo de prostituta, ora no corpo de um porco. E o famoso balão alegórico do porco capitalista entrou em cena, passeando pelo gramado, carregando as frases “seja humano” e “permaneça humano”. Com as máscaras do animal, a banda deu um tempo na música preparou um brinde com taças de champanhe em pleno palco. Cheers!

Na sequência, Roger cantou “Money” (“Money, so they say, is the root of all evil today”) enquanto o telão exibia imagens de outros líderes políticos como Kim Jong-Un, da Coreia do Norte, e do russo Vladimir Putin. E depois de tanta desgraça, tanta miséria, tanta guerra, uma mensagem mais positiva foi lançada por Waters. Ao anunciar a canção “Wait For Her”, do seu álbum mais novo (Is This The Life We Really Want?, de 2017, o primeiro de inéditas depois de 25 anos) ele voltou a discorrer sobre a transcendência do amor, que pode, enfim, unir as pessoas e vencer a intolerância. Uma mulher, dançarina de flamenco, com cicatrizes, chora ao telão. Ela representava a força da vida, sofrida mas que segue em frente.

Perto de meia noite e meia, o show terminou. A mesma mulher lá do início permanecia olhando para o infinito. O mundo renasceu e sua filha surgiu da areia e lhe deu um abraço. Esperança em meio ao caos. (JM)

Set list: “Breathe”, “One Of These Days”, “Time”, “Breathe (Reprise)”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà Vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”, “Wish You Were Here”, “The Happiest Days Of Our Lives”, “Another Brick In The Wall (Part 2)”, “Another Brick In The Wall (Part 3)”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Money”, “Us + Them”, “Smell The Roses”, “Brain Damage” e “Eclipse”. Bis: “Wait For Her”, “Oceans Apart”, “Part Of Me Died” e “Comfortably Numb”.

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Oito coisas que muita gente não percebeu durante o show de Roger Waters

Nome da turnê

“Us + Them” , faixa de The Dark Side Of The Moon, batizou a atual turnê. A origem de expressão “nós e eles” remete a conceitos sociológicos de inclusão e exclusão. Entretanto, o nome da canção é grafado, com o sinal de adição em vez da subliminar divisão. Os versos escritos por Waters, que teve pai e avô mortos respectivamente na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, questionam quais são os verdadeiros custos de um conflito armado. Nas entrelinhas, ele diz que todos, os dois lados da oposição, tanto “nós” quanto “eles”, acabam pagando tudo isso. Parece que muita gente que estava ali no Couto Pereira, vaiando e xingando sem parar o artista, nunca compreendeu e nem compreenderá tal questão.

Battersea Power Station

Se na turnê anterior Waters fazia referências visuais a The Wall, Animals, álbum lançado em 1977, que critica a decadência sócio-econômica do Reino Unido durante os anos 1970, foi a bola da vez para ter sua capa parcialmente produzida no palco de Us + Them. As quatro chaminés da Battersea Power Station (Estação Termoelétrica de Battersea, situada ao lado do Rio Tâmisa, ao sul de Londres, construída nos anos 1930 com um design grandioso e para demonstrar poder, transformada hoje em um complexo de lojas, restaurantes, escritórios, apartamentos e um grande espaço público interno ao ar livre) subiram lentamente por trás do telão logo ao início de Dogs, para soltar fumaça (poluição) sem parar. Ao mesmo tempo, um porco inflável passou a voar entre as duas primeiras. Este disco, com letras politicamente mais incisivas inspiradas nonos animais do livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell,marcou também a tomada integral do controle artístico da banda por Waters, que antes dividia a condição de líder do Pink Floyd com o guitarrista Dave Gilmour.

Banda de apoio

Durante a turnê brasileira muito se falou a respeito do guitarrista californiano Jonathan Wilson, que assumiu os vocais principais em algumas músicas, fazendo as vezes de David Gilmour ao microfone. Durante o show, muitas palmas foram dadas ao saxofonista escocês Ian Ritchie, que solava e passeava pela lateral do palco. Só que havia mais gente não menos talentosa acompanhando o ex-Pink Floyd. Na bateria estava Joey Waronker, músico revelado por Beck nos anos 1990 e que já tocou com R.E.M. e Elliott Smith, além de integrar a banda Atoms For Peace ao lado de Thom Yorke (Radiohead) e Nigel Godrich (que já produziu discos de Radiohead, U2, Paul McCartney e R.E.M., além do próprio Is This The Life We Really Want?, de Waters). A poderosa dupla feminina de backing vocals era formada por Jess Wolfe e Holly Laessig, mais conhecida por formar a linha de frente da banda indie Lucius, formada no Brooklyn nova-iorquino e hoje residente em Los Angeles e com quatro cultuados álbuns na discografia.

Psicodelia visual vintage

Muita gente mais nova pode não ter se tocado mas o vídeo que rolava no telão durante a execução de “Welcome To The Machine” (faixa do álbum Wish You Were Here, de 1975, que fala sobre a dominação das pessoas através do “sistema”) era o mesmo criado por Gerald Scarfe em 1977 para a turnê In The Flesh, do Pink Floyd. A história começa com um gigantesco e robótico axolotl se rastejando em um cenário pós-apocalíptico. Depois aparecem ratos, chaminés, cadáveres, muito sangue e uma torre monolítica surgindo em meio a um deserto estéril. Esta torre se transforma em um monstro que decepa um ser humano. O sangue dele se transforma em milhares de mãos e apenas um edifício sobrevive à multidão até voar, ao final da música, para bem longe, acima das nuvens até se encaixar em uma estrutura flutuante de forma oval. O ilustrador e cartunista inglês Gerald Scarfe é um parceiro de longa data de Roger Waters. Além do vídeo em animação para a música “Welcome To The Machine”, ele também assinou a concepção da arte do disco The Wall e de suas subsequentes turnê e adaptação cinematográfica.

Resist Mark Zuckerberg

A primeira das dezenas de mensagens de resistência mostradas pelo telao durante o intervalo foi para resistir a Mark Zuckerberg, dono do Facebook. Waters fez oito shows por sete capitais brasileiras entre os dias 10 e 30 de outubro. Portanto, viveu in loco todo o clima quente das eleições presidenciais e acompanhou de perto uma acusação, ainda a ser julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral, de que a campanha vencedora teve favorecimento ilegal por caixa 2 que teria possibilitado o disparo, pelo WhatsApp de mensagens com fake news em massa por todo o país. Vale lembrar que o Facebook (e por consequência Zuckerberg) também é dono de aplicativos como o WhatsApp e o Instagram.

Goethe apud Waters

Após a retomada da segunda parte, uma famosa frase do escritor, poeta e dramaturgo alemão Goethe foi rapidamente mostrada na lateral direita do gigantesco telão que se estendia de um lado ao outro do estádio do Coritiba. Ela diz que “ninguém é mais irremediavelmente escravizado do que aqueles que falsamente acreditam que são livres”. A mesma frase foi utilizada pela banda holandesa de metal Epica na letra da canção “Resign To Surrender”.

Orwell apud Waters

Assim como fez com Goethe, Roger Waters também fez questão de enfatizar outra frase impactante de George Orwell. No livro A Revolução dos Bichos, o autor britânico afirma, com muita ironia, que “todos os animais são mais iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Isso foi mostrado no telão durante a suíte formada por “Dogs” e “Pigs”. Caiu como uma luva na terra que deu início à Operação Lava-Jato, onde alguns “animais” parecem ser muito mais iguais que outros.

Comfortably Numb

No enredo de The Wall, a musica ilustra a parte em que o rockstar Pink, depois de ser abatido pela depressão, precisa de medicamentos para conseguir fazer um show e, então. passa a ter alucinações no palco que fazem-no acreditar ser um ditador fascista. O refrão diz assim: “Não há dor, você está recuando/ Um navio distante solta fumaça no horizonte/ Você só está chegando através das ondas/ Seus lábios se movem, mas não consigo ouvir o que você está dizendo/ Quando eu era criança, tive febre/ Minhas mãos pareciam apenas dois balões/ Agora eu tenho esse sentimento mais uma vez/ Eu não posso explicar, você não entenderia/ Não é assim que eu sou/ Eu me tornei confortavelmente entorpecido”. Metáfora maior para ilustrar tudo o que aconteceu antes, durante o show de Waters, e neste momento todo das eleições nacionais não há. Então, muita gente saiu ali do Couto Pereira confortavelmente torpe para ir de volta de casa. A pergunta passou a ser: até quando estes medicamentos continuarão fazendo efeito? (ARS)

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