Music

Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

Music

Jethro Tull

Oito motivos para não perder a apresentação da icônica banda liderada por Ian Anderson em sua nova passagem pelo Brasil

Texto por Daniela Farah

Foto: Divulgação

Seven Decades é o nome oficial da nova turnê. Pode parecer muito. E, de fato, é. Pode parecer erro de cálculo, já que o vocalista e fundador, o escocês Ian Anderson, vai completar 77 anos de vida no próximo mês de agosto. Mas, de fato, não é. O Jethro Tull foi fundado em 1967, quando o músico ainda estava saindo da adolescência. Portanto, o período em atividade compreende justamente sete décadas, dos anos 1960 aos anos 2020. Mesmo com alguns pequenos períodos de pausa, provocada por afastamento entre os principais integrantes e remanescentes, certo é que a carreira permanece seguindo em frente.

A boa notícia para os fãs brasileiros é que esta turnê volta a trazer Anderson e seus músicos para o Brasil. Serão quatro apresentações nesta semana e a rota de escalas compreende Belo Horizonte (dia 9 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Porto Alegre (dia 10 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Curitiba (dia 12 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui) e São Paulo (dia 13 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui). O repertório trará grandes sucessos espalhados pela longeva trajetória com a adição de faixas do mais recente álbum de estúdio, RökFlöte, lançado há exatamente um ano.

Para celebrar a nova vinda de Anderson e seus asseclas para cá, o Mondo Bacana discorre sobre oito motivos para você não deixar de ver a banda em ação novamente aqui.

Raiz folk

Ainda que Ian Anderson tenha passado boa parte da sua vida na Inglaterra (mudou-se aos 12 anos), ele nunca deixou de lado suas raízes escocesas. Isso reverberou na sonoridade do Jethro Tull. Anderson achava que faltava algo que desse uma cara mais europeia para o seu som e foi buscar isso em suas raízes inglesas e escocesas. Vem daí, dessa vontade de ter seu ambiente representado na sua arte, que surgiu a pitada celta que faltava para completar o Jethro Tull. Diga-se de passagem, aliás, que essa proposta bucólica até combina muito bem com o nome, inspirado em um agricultor famoso. A banda ficou conhecida por levar essa representatividade da musicalidade celta para o mundo. Ou seja, é a possibilidade de assistir cara a cara o folk britânico em sua mais pura raiz criativa. E de uma maneira bem divertida!

Performance de palco

Ian Anderson é, por si só, uma figura controversa. Um escocês, apaixonado por blues, que resolveu fazer rock tocando flauta. E fez isso tão bem que em 1989, o Jethro Tull abocanhou o Grammy de Melhor Performance Hard Rock/Metal, tirando-o das mãos do Metallica e seu aclamado álbum … And Justice For All. Ian tem uma presença de palco cativante. Entrega tudo e um pouco mais, seja através de seus olhos que parecem interpretar cada nota da flauta, por suas danças peculiares, tocando em uma perna só ou dando pequenos pulos enquanto canta.

Idade avançada

Para os fãs é sempre uma benção ter a oportunidade de seguir acompanhando seus ídolos lançando novidades e realizando concertos e turnês. Entretanto, também chega a ser cruel pensar que a cada temporada que se vai, menos tempo resta para aproveitar as suas presenças neste plano. Para quem mora no Brasil, então, chega a ser pior quando o assunto são os grandes deuses do rock de todos os tempos. Já são bem menores as chances de todas as turnês chegarem à América do Sul por questões financeiras, de logística e de maior percurso territorial a ser enfrentando sobretudo para quem mora longe dos grandes centros urbanos para onde as datas dos concertos acabam sendo marcadas. Ian Anderson está com 76 anos e é um poucos pilares do rock dos anos 1960 e 1970 ainda em plena atividade, compondo, criando, gravando, tocando ao vivo, correndo o mundo.

Confusão de gêneros

É hard rock, heavy metal ou rock progressivo? Qualquer fórum de discussão sobre música na internet (os melhores!) possui um tópico sobre a sonoridade do Jethro Tull. A diversidade é tanta que fica difícil encaixar em uma só gavetinha. Mesmo que os mais xiitas (ou troo) concordem que o grupo não entra na categoria metal, é uníssono que o Jethro Tull é uma das bandas que exerceu uma influência muito forte nas principais bandas do gênero que vieram depois. A experimentação foi tanta (hard rock, blues, folk, clássico, etc) e deu tudo tão certo que estamos aqui falando deles em pleno ano de 2024. A questão é que vale a pena sair de casa por uma lenda como essa, que transformou, inspirou tantos músicos (dos quais você provavelmente é muito fã!) a seguir suas carreiras. Inclusive, Ian Anderson participa em quatro músicas do novo álbum do Opeth. Então, nada como beber diretamente da fonte, não é mesmo?

“Aqualung” (a música)

Se você acha que não conhece Jethro Tull, pare tudo o que está fazendo neste momento e coloque os primeiros minutos da música “Aqualung”. Ela soa familiar? A indústria do entretenimento usou e abusou bastante dessa introdução dos Simpsons aos Sopranos. E com razão: ela é genial. “Aqualung” fazia parte do álbum homônimo lançado pelo Jethro Tull em 1971. Nada convencional, como tudo que remete à banda. A letra, repleta de realismo, fala de um homem que é morador de rua e observa o mundo a partir de um banco de parque. “Aqualung”, tocada e cantada pelo próprio Ian Anderson, é o tipo de coisa que faz a gente querer sair de casa. Sempre.

“Locomotive Breath”

“Locomotive Breath” também faz parte do histórico álbum Aqualung e que também faz parte do repertório da atual turnê. A letra é pura loucura filosófica. Segundo Ian, lá em 1971, estávamos num trem de crescimento populacional e ninguém sabia onde ele iria parar. Mas a sonoridade, essa é para aplaudir de pé. As guitarras criadas de Martin Barre são um espetáculo à parte, provavelmente para descrever a velocidade do trem e a pressão contidas na narrativa. Não é à toa que bandas de metal como WASP e Helloween lançaram suas versões para essa música.

RökFlöte

Após ficar anos e anos  sem lançar material novo, Jethro Tull tem um novo álbum, seu 23º. Ian Anderson criou a sua versão sobre o Ragnarok, da mitologia nórdica, em RökFlöte. Desta vez ele contou com David Goodier (baixo), John O’Hara (teclados), Scott Hammond (bateria) and Joe Parrish James (guitarra). Mesma banda que vem com ele ao Brasil, exceto o guitarrista Joe, substituído por Jack Clark. E, sim, eles vão tocar músicas do novo trabalho ao vivo.

Sete décadas em um concerto

Sete é rico em simbolismos. Sete são as notas musicais e as figuras de tempo na música. O número também é o símbolo da vida eterna no Antigo Egito; e, se a numerologia considera um número divino, a aritmética o considera feliz. Mas sete décadas é um número absurdo. Chega a ser até impensável o quanto o mundo mudou nesse tempo. Só para citar os suportes do mercado fonográfico: vinil, fita cassete, compact disc, DVD, MP3 player, pendrive, streaming… E o Jethro Tull tem a árdua missão de trazer um pouco dessas décadas de criação e ação em um só show. A vantagem é que suas músicas continuam a fazer sentido mesmo com toda a passagem de tempo. Por isso é excepcional quando uma banda que atravessou todo este período se apresenta nos dias de hoje. Não é só música, é História.

Movies, Music

Meu Nome é Gal

Cinebiografia de Gal Costa acerta com o desabrochar da tímida cantora em furacão dos palcos no período de antes, durante e depois da Tropicália

Texto por Abonico Smith

Fotos: Paris Filmes/Divulgação

A notícia da morte de Gal Maria da Graça Costa Penna Burgos, na manhã de 9 de novembro de 2022, aos 75 anos de idade, não pegou quase todo mundo de surpresa como também causou profunda consternação em quem é fã da música popular brasileira. Afinal, um ataque fulminante do coração (causa mortis que não fora anunciada publicamente pela viúva e sócia, embora confirmada depois pela divulgação de um atestado médico) calava a maior voz feminina que já cantou por aqui. Estava saindo do forno uma cinebiografia sobre ela. Dirigido por Dandara Ferreira e Lo Politti (que também assina o roteiro), o filme acabou tendo sua estreia marcada para este ano. Infelizmente, Gal Costa não teve tempo de assistir à obra, embora tenha dado sinal verde para a escolha da protagonista que iria revivê-la.

>> Clique aqui para ler os oito motivos que fizeram de Gal Costa um nome de suma importância para a história da música popular brasileira

Nesta quinta-feira, enfim, chega aos cinemas de todo país Meu Nome é Gal (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo projeto das diretoras envolvendo a cantora. Dandara e Lo já haviam lançado, há alguns anos, a série documental de quatro episódios O Nome Dela é Gal, exibida no streaming da Amazon Prime. Portanto, realizar em uma obra dramatúrgica retratando um determinado período da vida da baiana foi algo extremamente confortável à dupla, que ainda optou por se restringir à época mais interessante para trabalhar dramaturgicamente: o início de carreira dela. Mais precisamente o período que compreende a saída de Salvador para tentar a sorte na carreira no Rio de Janeiro (1966) até o reconhecimento em larga escala de seu talento (1971). A Gal Costa dos 19 aos 24 anos, desabrochando para a vida adulta enquanto tenta se desvencilhar de toda a timidez inerente à sua personalidade. Sophie Charlotte interpreta Gal do momento em que chega ao Rio em um ônibus vindo de Salvador ao show arrebatador Fa-Tal, cuja temporada no Teatro Tereza Raquel, bem sucedida, disputada e bastante comentada no boca a boca e pela imprensa, garantiu-lhe em definitivo a coroa de musa do desbunde depois da fama de musa das dunas do barato, berço da contracultura carioca no começo dos anos 1970, incrustado na praia de Ipanema de um Rio de Janeiro ainda bastante afetado pela severa repressão social, política e cultural da ditadura do regime militar iniciada logo após o AI-5.

Optando por uma narrativa convencional (só há o uso de dois rápidos flashbacks de quando ainda estava na infância treinando o poder vocal), as diretoras driblam a linearidade com uma fidedigna reconstrução da época em cenários e figurinos e uma impressionante caracterização dos atores. Curiosamente, Sophie é a única que não se parece fisicamente com a sua personagem – o que não deixa de ser um ganho para a atriz, já que ela também canta as músicas e sua voz também está longe de se assemelhar com a de Gal, principalmente na hora de soltar os agudos. Isso a deixa mais livre para incorporar outros ganhos na interpretação, como o jeito doce e comedido no cotidiano. Aliás, o fato da personagem estar sempre lutando para colocar seus demônios para fora e livrar-se das amarras (da mãe, da cidade natal, das performances cênicas e vocais do começo da carreira e até mesmo do guia Caetano, depois dele ser preso e ir para o exílio em Londres) acaba se tornando o maior trunfo do longa-metragem. O desabrochar de uma jovem contida em um grande furacão é a mais bela mensagem deixada nas entrelinhas das cenas e diálogos.

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E ao contrário da relação entre Gal e Sophie, o resto da turma majoritariamente tropicalista, entretanto, está assombrosamente parecido. Rodrigo Lelis não é só Caetano cuspido e escarrado: em muitas das cenas ele baixa o temperamento irrequieto, desbocado e pirracento do anjo da guarda musical da protagonista. Dan Ferreira aparece um pouco menos como Gilberto Gil mas também está igual. George Sauma faz um histriônico Waly Salomão. Dedé Gadelha, esposa de Veloso e melhor amiga de Gal, é outro nome com fiel reconstituição física, por Camila Mardila. Tem ainda Tom Zé, Rogério Duprat (feito pelo sobrinho, o músico e maestro Ruriá Duprat), Rogério Duarte, Maria Bethânia (encarnada pela própria diretora Dandara), Rita Lee e os irmãos Baptista, Torquato Neto, Jards Macalé e até Edu Lobo, que era da turma mais defensora e conservadora da MPB mas convivia com o pessoal no Solar da Fossa ali em meados dos anos 1960. Por sua vez e como já era de se esperar, Luis Lobianco dá um show de humor vivendo o empresário Guilherme Araújo, que criou o nome artístico de Gal, incorporado ao batismo oficial em 2013.

O fato dos atores (Charlotte, Lelis, Ferreira) soltarem a voz durante as canções também evidencia um ótimo trabalho de captação e desenho de som. Os instrumentos são tocados ali mesmo em cena, inclusive na hora dos palcos e estúdios. Por isso, canções como “Baby” e “Divino, Maravilhoso” tornam-se mais brilhantes com o acompanhamento de banda. Para uma cinebiografia que se propõe a retratar um período especial de criação musical tal fator torna-se um belo trunfo para tocar ainda mais fundo do coração tanto dos velhos fãs como dos mais jovens e futuros iniciados que estão ali assistindo a tudo da poltrona do cinema.

Por falar em velhos fãs, é certo que acompanhar na tela uma história já bastante conhecida e da qual já se sabe quase tudo deixa Meu Nome é Gal um pouco menos impactante. Contudo, este detalhe não tira os méritos do filme que, se não deseja ser ousado nem mostrar coisas novas ou ainda misteriosas sobre Gal Costa, é tão respeitoso com o objeto da biografia que eleva este fascínio ao status de elemento principal de uma nova documentação histórica sobre a cantora, desta vez por meio da dramaturgia. Aqui é só a ascensão. Os períodos de queda na carreira passam longe desta biografia. E, falando a verdade, não fazem qualquer falta.

Music

João Donato

Músico elevou os limites da bossa nova e deixou o legado de uma discografia soberba mas não muito conhecida no Brasil

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Postei nas redes sociais no último dia 17 de julho: quando morre alguém da estatura de João Donato, a gente tem a certeza que a lacuna deixada dificilmente será preenchida. Senão vejamos. Donato, 88 anos, mais de 70 de carreira, ajudou a criar a bossa nova ainda em meados dos anos 1950. Foi um dos expoentes do “lado jazz” da bossa, composto por músicos brasileiros que deram suas próprias versões para o ritmo americano, ajudando a criar uma nova variante, que se casou com as experiências que vieram do lado de Jobim, Gilberto e cia. É correto dizer que a turma de Donato seria uma das responsáveis pelo que se chamou de samba-jazz nos anos 1960. E também é correto dizer que ele encontrou um espaço muito mais interessado e cheio de oportunidades nos Estados Unidos. E foi com Jobim que Donato viria a realizar a sua estreia em disco, Chá Dançante, lançada antes do estouro da bossa nova, em 1956.

João já era pianista profissional desde os 19 anos e liderava o Donato e seu Conjunto quando recebeu a oportunidade. A atuação de Jobim foi como curador do repertório do álbum, que seria lançado pela Odeon. Entre as canções escolhidas estavam No Rancho Fundo” (Lamartine Babo – Ary Barroso), “Carinhoso” (Pixinguinha – João de Barro), “Baião” (Luiz Gonzaga – Humberto Teixeira), “Peguei um Ita no Norte” (Dorival Caymmi). Dali em diante, ele iniciaria uma carreira de sucesso e prestígio, que o levaria para uma temporada nos Estados Unidos, tocando em cassinos e boates. Voltaria em 1962, com a bossa nova já estourada mundialmente. Ficou pouco tempo, regressando para a terra do Tio Sam e mantendo sua trajetória lá fora, já tendo na bagagem discos importantes como A Bossa Muito Moderna (1963) e The New Sound of Brasil (1965).

O trabalho mais surpreendente desta fase da carreira de Donato, que, na verdade, antecipa o momento que viveria na primeira metade da década seguinte, é A Bad Donato, lançado em 1970. É um disco surpreendente e impressionante, que mostra como João se tornara fluente no jazz moderno, quase tangente ao funk, com arranjos que também incorporavam psicodelia, trazendo versões diferentes para canções que, àquela altura, já se tornaram clássicos de sua lavra como “A Rã” e “Cadê Jodel?”. Os arranjos ficaram por conta de Eumir Deodato, uma estrela em ascensão na época , que recrutou gente como Bud Shank, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão e Paulinho Magalhães para participar do álbum.

João voltaria ao Brasil em 1972 e lançaria os dois discos mais representativos de sua música no Brasil: Quem é Quem (1973) e Lugar Comum (1975). O primeiro é o grande trabalho de jazz samba que ele sempre desejou fazer, devidamente turbinado por suas vivências musicais acumuladas em mais de dez anos nos Estados Unidos. É o primeiro trabalho em que Donato canta, com produção de Marcos Valle e alternando clássicos como “A Rã” (cantada pela primeira vez, com letra de Caetano Veloso), “Cadê Jodel?”, “Me Deixa” (que recebeu letra de Geraldo Carneiro), o instrumental “Amazonas” e até uma composição inédita de Dorival Caymmi, feita especialmente para o disco, “Cala Boca Menino”. Em seguida veio o “disco baiano” de João Donato, Lugar Comum, cuja faixa-título já marcava sua parceria com Gilberto Gil. Outras duas faixas também receberam letra de Gil: “A Bruxa de Mentira” e “Emoriô”, esta última bem em sintonia com o momento pelo qual o baiano atravessava, a transição entre os álbuns Refazenda (1975) e Refavela (1976). Os dois ainda assinariam pelo menos uma canção de muito sucesso, cerca de dez anos depois: “A Paz”, que seria gravada por Zizi Possi e, posteriormente, por Gil em seu álbum Em Concerto, de 1987.

Falando nisso, Donato só regressaria ao disco cerca de vinte anos depois, compondo esporadicamente para outros artistas. Deste período é a nossa canção preferida de sua lavra, “Nasci Para Bailar”, que ganhou interpretação marcante de Nara Leão em 1982. Ele teria um belo álbum instrumental lançado em 1986, Leilíadas, totalmente dedicado à esposa, Leila, mas sua volta efetiva ao mercado fonográfico seria mesmo em 1995, com Coisas Tão Simples, no qual retorna aos clássicos dos anos 1960, gravaria inéditas (como a linda “Gaiolas Abertas”) e reveria canções mais recentes, caso da própria “Nasci Para Bailar”, que ele interpretaria com o filho, Donatinho, ainda bem jovem. Daí pra frente, ele lançaria dezenas de álbuns, entre registros ao vivo, discos de inéditas, colaborações e parcerias. A gente destaca A Blue Donato (2006, com interpretações minimalistas de alguns clássicos perdidos), Água (2011, bela colaboração com a cantora Paula Morelenbaum), Aquarius (2012, em parceria com Joyce Moreno, no qual os dois dividem repertórios), Donato Elétrico (2016, um discaço com canções arranjadas tendo o jazz fusion como linha-mestra) e a trinca mais recente de álbuns: Sintetizamor (2017, em parceria com Donatinho, numa pegada de funk-jazz oitentista), Síntese do Lance (em parceria com Jards Macalé) e o sensacional Serotonina, lançado em 2022, no qual Donato surge atemporal, totalmente sintonizado com novos parceiros, como Anastácia, Céu, Maurício Pereira e Rodrigo Amarante.

João Donato teve uma carreira impressionante e muito influente para a consolidação da música brasileira no exterior. Aqui, como vários outros contemporâneos seus, foi menos conhecido e reconhecido do que deveria. Por essas e outras, é necessário recomendar alguns destaques de sua vastíssima trajetória. Hoje e sempre. Obrigado, João.

Movies

The Flash

Estreia solo de Barry Allen acaba ofuscada pela enxurrada de efeitos especiais e intromissão de mais heróis da DC

Texto por Abonico Smith

Fotos: Warner/Divulgação

“Eu sou o zelador da Liga da Justiça”, diz Barry Allen em determinado momento do início de The Flash (EUA, 2023 – Warner). A reclamação em forma de constatação irônica não é infundada. É bem difícil lutar por um espaço ao sol nas produções cinematográficas de uma casa de super-heróis que mantém em seu panteão de principais figuras Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Por isso não deve ser fácil mesmo encarar a resignação de ficar sempre em segundo plano quando o assunto é o holofote da DC para trabalhar seus personagens na sequência de longas-metragens que chegam anualmente às salas de projeção de todo o planeta. Nos quadrinhos era bem mais fácil ganhar projeção e assim o personagem o fez quando foi criado em 1956, durante o início da Era de Prata dos Quadrinhos. Mas quando o assunto vira um blockbuster do cinema, repleto de segredos, altos cachês, incontáveis efeitos de CGI e expectativa de grandes bilheterias, fica sempre mais difícil que a empresa volte seus olhos para nomes de seu elenco de escalões inferiores, a não ser quanto à reserva da cota de seriados de TV e streaming. Com muito dinheiro envolvido não se brinca em Hollywood.

Barry não foi o primeiro personagem a ser chamado de Flash nas páginas impressas com o selo DC Comics na capa. Mas tornou-se o mais conhecido justamente porque chegou quando se apresentava um momento em que a empresa havia decidido dar um reboot em seus heróis e recomeçá-los do zero, trazendo traços e características para o presente. Assim, editoras como a DC e a rival Marvel começaram a se tornar soberanas ao readequar algumas de suas mais conhecidas criações para a juventude daquele período pós-guerra. Foi assim que Allen conquistou popularidade e ingressou na primeira formação da também recém-criada Liga da Justiça.

Eis que é em torno da Liga da Justiça que começa a história do primeiro filme protagonizado e batizado pelo herói cujo poder é correr em uma velocidade fantástica, quase podendo parar o movimento de rotação do planeta e chegando a paralisar os acontecimentos ao redor para mover-se e fazer o que quiser neste intervalo de milionésimos de segundos. O mordomo Alfred tenta localizar os heróis para uma emergência em um hospital de Gotham City. Allen é o primeiro a ir ao local. Logo depois chegam Batman e Mulher-Maravilha e o espectador logo percebe que o tão esperado primeiro longa-metragem do Flash não será somente com o Flash, centrado tão somente no Flash. Para completar, a subtrama principal – e que dá origem à secundária, que une outros heróis e toma conta da narrativa a partir da metade do filme – envolve dois Flashes.

Como é bem comum no cinema de super-herói, aqui a audiência não consegue escapar da inevitável deslizada de quase toda produção do gênero que tenta apresentar um herói para as pessoas mais novas: o flashback contando as origens dele e como foram adquiridos tais poderes que o diferenciam do resto dos humanos. Barry, incomodado com a prisão de seu pai, que alega não ter cometido o assassinato da esposa, descobre como voltar no tempo para consertar a situação e garantir a continuidade da vida da mãe. Nisso, o Barry que veio do futuro ainda se encontra com o Barry do passado quase saindo da adolescência. Antes de se aventurar pelo continuum espaço-tempo, porém, é advertido pelo amigo Bruce Wayne sobre os perigos tenebrosos e irrecuperáveis que a tentativa pode provocar. Claro que, por ser jovem, inexperiente e desastrado, Flash vê a iniciativa dar errado e acaba ficando preso no período onde está, sem poder retornar ao seu tempo.

O maior desafio para Ezra Miller – contratado para viver o herói nos cinemas desde o longa da Liga da Justiça (2017) – é justamente provar ter sido a escolha mais correta para o diretor Andy Muschietti e os produtores executivos do filme. Badalado como uma das grandes promessas de Hollywood no início da década passada, o ator vinha de performances arrasadoras em obras cult como Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012). A entrega ao personagem, que sempre fica ali no limiar entre o histriônico e o intenso – favorece bastante Miller nos alívios cômicos da história do Flash, embora também não o faça comprometer nos momentos de maior drama. Em dose dupla, na pele dos Barries de ontem e de hoje, destaca-se na interpretação, a despeito de todas as confusões e polêmicas recentes (abusos, brigas, acusações, escândalos) na qual se envolveu e acabou manchando a reputação profissional e ganhando a pecha de enfant terrible do século 21.

Se Ezra passa ileso na primeira metade, acaba caindo na armadilha provocada pelo roteiro para o seu personagem logo depois. Ao voltar no tempo e ficar preso, Flash percebe que um perigo imenso ameaça o mundo (quer dizer, mais precisamente Nova York e as cidades de Gotham e Metropolis): a chegada do general Zod, o maior inimigo kryptoniano de Superman, que vem para dominar a Terra, para onde fora mandado Kal-El ainda bebê para escapar da destruição de seu planeta e garantir a preservação de sua raça. Zod ainda vem atrás do herói, mas ninguém sabe por onde ele anda. Para salvar Superman, os Flashes acabam convencendo o Batman daquela época a lhes ajudar e no meio do caminho ainda topam com uma outra figura de grande heroísmo no universo das recentes séries da DC, a prima de Kal-El que atende pela alcunha de SUpergirl (Sasha Calle, atriz americana de origem latino-americana que ainda vai dar muito o que falar nos próximos filmes da casa). O que esperava-se ser um filme do Flash torna-se embolado por outros heróis, sobretudo quando as cenas de ação e lutas tornam-se mais frequentes a ponto de quase dominar o arco final. Sem falar que as atuações ficam quase todas subjugadas à proliferação massiva dos efeitos de CGI, com presença ostensiva aqui.

A transição de Barry Allen de um universo para o outro vem a calhar no timing reservado à questão dos multiversos, elemento que anda se propagando feito febre em Hollywood (filmes e animações de super-herói e até no Oscar) nestas duas últimas temporadas. Isca certeira para atrair bilheteria e o interesse de cinéfilos mais ligados à cultura pop. Só que este detalhe, além de abrir espaço para a maçante torrente de CGI, ainda traz consigo um festival de easter eggs daqueles de levar a turba nerd a múltiplos orgasmos nas poltronas. Outros heróis da Liga da Justiça e até aqueles que estão batalhando contra Zod aparecem constantemente em pequenas referências na tela em todas as suas versões, do passado e do presente, do cinema e da televisão. Superman, Batman, Supergirl, Mulher-Maravilha, Aquaman… Quase todos os atores que os interpretaram – como os icônicos Christopher Reeve e Michael Keaton – também são trazidos de volta neste filme para as novas gerações de fãs.

Pena que a enxurrada de efeitos especiais que toma conta da tela sem parar mais acabe por apagar o brilho da história humana durante o restante da projeção e transforme a tão esperada estreia “solo” do Flash no cinema em uma experiência enfadonha até quase o finalzinho.