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Isis Valverde revive a intensa história de fogo e paixão da socialite Ângela Diniz, vítima de famoso caso de feminicídio nos anos 1970

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Downtown Filmes/Divulgação

Noite de 15 de julho de 2011. Uma menina, de 4 anos, perambula sozinha na rua de casa, em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Encontra uma mulher e bate nas costas dela: “tia, minha mãe está morta”. Em cima da cama, a polícia encontra o corpo de Carine Andréia dos Santos do Carmo, executada com dois tiros na cabeça. Suspeito: o marido, foragido. Lembro até hoje o rosto da menina deixando a casa onde vivia há apenas dois meses, de mãos dadas com os conselheiros tutelares e as cenas da tragédia cravadas na memória. Sem mãe, nem pai.

30 de dezembro de 1976. Às vésperas do réveillon, a socialite mineira Ângela Maria Fernandes Diniz é executada com quatro tiros, três no rosto e um na nuca, pelo então companheiro Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. “Se você não for minha, não será de ninguém”, disse o assassino, antes de disparar à queima-roupa. 

O crime ocorreu na casa onde os dois moravam, na Praia dos Ossos, município de Búzios, litoral do Rio de Janeiro. Ossos do homicídio. Raul fugiu, foi preso e, no primeiro julgamento, em 1979, seus advogados alegaram a tese de legítima defesa da honra, desabonando a conduta de Ângela, na famosa estratégia de culpar a vítima, que muitos advogados ainda sustentam hoje, um traço característico da cultura machista. Durante o júri, ela foi descrita como a mulher fatal, capaz de levar o homem à loucura.

Doca, o homem que havia “matado por amor”, recebeu a condenação de dois anos de prisão, que nem chegou a cumprir. O absurdo dessa pena “simbólica” deixou a sociedade perplexa e fez até o poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestar: “estão matando essa moça todos os dias”, escreveu na época.

Os movimentos feministas logo se organizaram e criaram o slogan “Quem ama não mata”. Em 1981, Street foi levado a segundo julgamento e pegou 15 anos de prisão por homicídio doloso qualificado. Cumpriu quatro anos em regime fechado até progredir para o semiaberto. Antes de morrer, em 18 de dezembro de 2020, aos 86 anos, ele chegou a publicar um livro de memórias chamado Mea Culpa.

A história desse feminicídio, amplamente divulgado na mídia na época, agora está nas telas dos cinemas com direção de Hugo Prata. O cineasta, aliás, vem se tornando um especialista em cinebiografias de artistas e celebridades, sobretudo personagens femininas marcantes, como fez com Elis e agora Ângela. 

Angela (Brasil, 2023 – Downtown), o filme que traz Ísis Valverde na pele da protagonista e Gabriel Braga Nunes como Doca Street, estreia no país, no dia da Independência, 7 de setembro, e no ano em que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra, usada em casos de feminicídio ou agressão contra as mulheres para justificar o comportamento do acusado. 

Num bate-papo pós pré-estreia no Cine Passeio, em Curitiba, comandado pelos curadores, Marden Machado, jornalista e crítico de cinema, e pelo diretor Marcos Jorge, Prata conversou com os espectadores e revelou detalhes de como o filme foi idealizado: “Achei que tinha perdido o timing. Porque quando comecei a rodar, logo veio o movimento #metoo. Depois, o caso ainda foi repercutido no podcast Praia dos Ossos”, lembrou. Portanto, foram sete anos até o lançamento do longa, prazo de expiração para muito casamento. Mas seu timing não poderia ser mais preciso, por causa da decisão histórica do STF.

Bonita, elegante e à frente do seu tempo, Ângela Diniz casou-se ainda adolescente com o engenheiro Milton Villas-Boas, quatrocentão da sociedade paulistana. Aos 21 anos, já tinha três filhos para criar. Na época em que conheceu Doca Street (que, então, era casado com outra socialite, Adelita Scarpa), Ângela estava fragilizada por causa do desquite, já que a lei do divórcio só seria aprovada no país em 1977, ano posterior ao homicídio.

Por isso, ao contrário do que muito se divulga, ela teve de renunciar à guarda dos filhos pequenos em prol de sua liberdade, de sua independência. Ao contrário dela, muitas mulheres permaneciam casadas para manter as aparências. Ficar longe das crianças foi o primeiro preço alto que teve de pagar, como mostra o filme. Prata contou que, desde o início, a ideia foi desmitificar nas telas a imagem da socialite como sendo a “mulher fatal”, a “pantera de Minas” que participava de festas ao lado do colunista social Ibrahim Sued, seu namorado antes da paixão avassaladora por Doca.

Durante seu processo de pesquisa, o cineasta entrou em contato com os filhos da vítima. Soube que um deles morreu num acidente. O outro tem uma doença que o paralisou e, por isso, é assistido pela irmã Cristiana Maria Villas-Boas Viana, sua tutora. Prata chegou a conversar pessoalmente com a filha de Ângela depois de encontrá-la nas redes sociais, mas não conseguiu muito subsídio para construir a história. Afinal, a dor ainda é grande. E, ao contrário do que muita gente pensa, há poucas imagens de Ângela em público porque ela não podia se expor.

“Ao falar da morte ficam dizendo que ela era rica, que ela era bonita, muito sedutora. Tudo aquilo que foi colocado no julgamento permeou a imagem da Ângela. Então, a gente descartou a tese de que não importa o que ela viveu antes de conhecer o Raul e antes dele matá-la. Ângela tinha o direito de viver a vida do jeito que ela quisesse. Então, o filme começa no dia em que eles se conheceram, evento fatídico da vida dela”, contou. Ou seja, Prata e a roteirista Duda de Almeida recriaram a protagonista livre de julgamentos, a partir do momento em que ela conhece seu assassino, numa festa, até a sua morte.

Foram quatro meses de fogo e paixão. Por isso, há muitas cenas de sexo (até demais!) no longa, que traz três atos bem marcados. O primeiro é quando ela conhece Doca, um homem que já dava indícios de índole violenta, habilidoso com armas e amante de safaris africanos. Numa cena, o playboy se gaba por ter enfrentado um elefante e ter matado uma presa mais forte que ele. No segundo, no meio do filme, ocorre a primeira agressão. No terceiro, a vítima passa a ser agredida frequentemente até acontecer o homicídio. Quando Ângela decide por um fim na relação, o orgulho ferido do caçador entra em ação. “Aliás, nós decidimos chamar Raul pelo nome e não pelo apelido”, contou o diretor, que esbanjou dos big close-ups, sobretudo por conta da intensidade de interpretação de Ísis Valverde, procurando manter um estilo narrativo de filmes feitos para televisão. E como se trata de uma cinebiografia, o público já sabe como é o final, desenhado aqui de forma potente como se todas as mulheres fossem atingidas pelos disparos de pistola no rosto.

O que, logo depois, leva à seguinte conclusão: se toda mulher é meio Leila Diniz, muitas ainda são Ângela Diniz.

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