Responde pra mim: quantas vezes você assistiu a um filme com um sorriso permanentemente plantado na cara? Qual a última vez que você terminou um filme se sentindo leve, de alma lavada, acreditando que o mundo pode ser um lugar melhor? E quanto você acha que 2020 precisava de um filme assim?
Pois isso é A Festa de Formatura (The Prom, EUA, 2020 – Netflix). O musical dirigido pelo man-of-the-hour da Netflix Ryan Murphy que conta a história de uma garota lésbica que, impedida de ir ao baile de formatura da escola, recebe uma ajuda inesperada de astros decadentes da Broadway.
O filme, adaptado de uma peça da Broadway (sinta a ironia!) é estrelado com força, presença e de forma espetacular pela novata Jo Ellen Pellman, estreando em longas metragens como Emma, uma garota simples de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos que vê seu sonho de felicidade no high school ir abaixo quando a preconceituosa presidente da Associação de Pais e Mestres decide que é melhor proibir a festa a deixar a garota levar a namorada como acompanhante. Enquanto isso, em Nova York, um grupo de atores da Broadway se depara com críticas nada enaltecedoras e decide que precisa de um “ato de bondade” para melhorar a imagem. Questão de minutos para que eles se deparem com a história de Emma e decidam que ajudá-la pode ser um ótimo ato de publicidade.
Precisamos lembrar que ainda estamos falando de Ryan Murphy. Então tudo em A Festa de Formatura é brega até a medula. Ou camp como se diz hoje. Números musicais ao mesmo tempo absurdos e encantadores, brilho por todos os lados, dança, coreografias… tudo absurdamente brega. Como o amor.
Claro que as performances de Meryl Streep e Nicole Kidman são um presente à parte. À vontade como poucas vezes, Nicole se deixa brincar em cada cena e Meryl Streep se mostra mais versátil do que nunca. Mas os holofotes mesmo são de James Corden e Jo Ellen.
A Festa de Formatura é o filme para lavar a alma do pesadíssimo 2020 que tivemos. Quando ele acaba, com suas superações, alfinetadas (e aí vai uma estrelinha a mais para o número musical sobre as regras da Bíblia), dramas e lágrimas, nos sentimos leves, felizes, acreditando que mesmo depois de tanta merda, o mundo pode sim ser um lugar melhor. Onde as pessoas podem se tornar seres humanos melhores, onde mães perdoam filhos, onde o preconceito é derrubado com um número musical, onde “a resposta para nossos problemas é sair cantando uma canção”, como diz uma das músicas do filme.
Além disso, o filme faz homenagens a outros longas e espetáculos musicais ou não. A cena com O Casamento do Meu Melhor Amigo e o número musical em homenagem a Chicago fazem a alegria dos fãs de cinema. Deixe-se levar, entre na onda, cante, dance, chore e se comova. A gente está precisando disso. E A Festa de Formatura veio pra nos ajudar a acreditar em um mundo melhor.
Oito filmes para lembrar sempre o ator escocês que fez o primeiro 007 dos cinemas e morreu há alguns dias aos 90 anos de idade
Texto por Janaina Monteiro
Fotos: Divulgação (filmes) e reprodução (Sean Connery)
O primeiro James Bond a gente nunca esquece. Thomas Sean Connery, que derrotou tantos arqui-inimigos no papel do agente secreto 007, travou uma guerra fria contra um câncer no rim em 2006, quando decidiu se aposentar de vez. Nascido em berço humilde escocês, Sir Connery, nomeado cavaleiro pela rainha da Inglaterra, morreu dormindo no último dia de outubro, aos 90 anos, na propriedade à beira-mar situada na ensolarada Nassau, capital das Bahamas. Ao jornal britânico The Guardian, Michele Roquebrune, pintora francesa casada com o ator desde 1975, revelou que o marido sofria de demência.
Desde que se aposentou por conta do tratamento do câncer, seu único trabalho foi dublar a animação britânica Guardian Of The Highland (2012). Em quase 60 anos de carreira, Connery estrelou dezenas de filmes nos quais esbanjava charme e elegância à altura de seus 1,90m, além de não dispensar o sotaque escocês. Por causa da pronúncia indefectível, seja ao interpretar reis ou capitães, o ator ficou em primeiro lugar num ranking, organizado em 2003 pela revista Empire, dos piores sotaques do cinema. A vitória se deu por conta de sua personagem Jim Malone, o policial irlandês de Os Intocáveis, papel que lhe rendeu o Oscar de ator coadjuvante em 1988.
Filho de pai católico e mãe protestante, Connery fez de tudo um pouco antes de entrar para o mundo do cinema: foi leiteiro, motorista de caminhão e modelo vivo para artistas do Colégio Real de Artes de Edimburgo. Mas foi o terceiro lugar em um concurso de Mister Universo que abriu as portas para atuar. Levado por um amigo para participar do teste de um musical, ele foi aprovado e escalado para o coro da peça.
O ator estreou no cinema nos anos 1950, com personagens pequenos, até ser convidado para fazer um vilão no filme A Maior Aventura de Tarzan, de John Guillermin, de 1959. No mesmo ano, ele foi selecionado por Walt Disney em pessoa para participar de A Lenda dos Anões Mágicos. Três anos depois, Connery estrelaria 007 Contra o Satânico Dr. No e daria vida ao lendário agente secreto do serviço de espionagem britânico (o MI6) inspirado na obra literária de Ian Fleming. As histórias de James Bond se transformaram num verdadeiro fenômeno nos Estados Unidos e eram apreciadas até pelo presidente Kennedy. O escritor, na verdade, não queria que o escocês desempenhasse o papel no cinema, por conta do porte físico e o jeitão meio rude. Foi a namorada do autor que o fez mudar de ideia: Connery, afinal, tinha sex appeal.
Dessa forma, o primeiro 007 da telona (já que na telinha, o primeiro a interpretar o agente havia sido o ator Barry Nelson, em uma adaptação de Cassino Royale em 1954) foi sendo dilapidado até se tornar o espião galã, dono de um humor cínico e irresistível e que vivia cercado de femmes fatales. Mas nem todas as críticas à estreia de Bond eram favoráveis. Segundo o jornal The New York Times, o cineasta francês François Truffaut considerou O Satânico Dr. No como o marco de um início de decadência do cinema.
Fato é que, quase sessenta anos depois da estreia nas telas, a franquia de Bond ainda está longe de chegar ao fim (mesmo após a suposta morte do agente). Com a saída de Daniel Craig depois de filmar 007 – Sem Tempo Para Morrer (com estreia mundial remarcada para abril de 2021 por conta da pandemia do coronavírus), a protagonista será uma mulher negra (e lésbica?). Resta saber se a namorada de Fleming e o próprio criador da personagem concordariam com isso.
Ao filmar com diretores reconhecidos como Alfred Hitchcock, John Huston e Sidney Lumet, Connery começou a ser respeitado como ator, até ganhar o Bafta em 1987 por O Nome da Rosa (adaptado por Jean-Jacques Annaud do livro homônimo de Umberto Eco), além do Oscar, na temporada seguinte. O sotaque e a beleza já não eram o principal.
Para homenageá-lo, o Mondo Bacana selecionou oito filmes essenciais do ator, que será lembrado como a música-tema do filme protagonizado pelo personagem que interpretou entre 1962 e 1967, com breves retornos em 1971 e 1983. Tudo porque atores como Sean Connery são eternos como os diamantes.
007 Contra o Satânico Dr. No (1962)
Sean Connery foi escalado para a primeira missão cinematográfica do agente secreto britânico com permissão para matar. Ele tinha de investigar o assassinato de outro integrante do MI6, ocorrido na Jamaica. O antagonista Dr. No é um cientista que pretende atacar o programa espacial dos EUA. O filme, que revelou a eurostarlet Ursula Andress, inaugurou não só a tradição das bond girls como ainda começou a fazer James Bond viajar por lugares “exóticos” e “paradisíacos” mundo afora.
007 Contra Goldfinger (1964)
O terceiro Bond de Connery transformou o Aston Martin DB5 no carro mais icônico do cinema. O carro vinha equipado com uma parafernalha: lançador de óleo traseiro, cortina de fumaça, telefone, radar, escudo à prova de balas, armas. A única coisa que ele não deveria usar era o ejetor do assento. Na aventura, Bond precisa eliminar Goldfinger antes que ele destrua a reserva Fort Knox. O criador do agente secreto morreu em agosto de 1964, semanas antes da produção chegar aos cinemas.
Assassinato no Expresso Oriente (1974)
Na adaptação de Sidney Lumet do romance policial de Agatha Christie, Connery se une a um elenco de estrelas internacionais (como Ingrid Bergman, Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, Anthony Perkins, Vanessa Redgrave e John Gielgud) e encarna o oficial militar britânico Colonel Arbuthnot. Na trama, o famoso detetive Hercule Poirot (Albert Finney) precisa descobrir quem está por trás do assassinato de um passageiro durante uma viagem de trem.
O Nome da Rosa (1986)
Connery interpreta William de Baskerville, um monge franciscano que investiga uma série de assassinatos em um remoto mosteiro italiano com a ajuda do noviço vivido por Christian Slater. Baseado na obra homônima de Umberto Eco, publicada seis anos antes, o filme retrata uma guerra ideológica travada entre os franciscanos e os dominicanos
Os Intocáveis (1987)
Trabalho que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante por seu papel extremamente divertido como Jim Malone, um policial irlandês-americano que arrisca o pescoço para ajudar Eliot Ness (Kevin Costner) a montar uma equipe e levar Al Capone (Robert De Niro) à justiça na Lei Seca.
Indiana Jones e a Última Cruzada (1989)
Inspirando-se no universo 007, Steven Spielberg escolheu o ator escocês para interpretar o pai do protagonista Indiana Jones. Connery e Harrison Ford mostraram aqui uma química espetacular, trazendo um tom mais suave à narrativa em comparação aos demais filmes da franquia.
A Caçada ao Outubro Vermelho (1990)
No primeiro livro de Tom Clancy adaptado para os cinemas, Connery capricha no sotaque russo para interpretar o capitão Markus Ramius, comandante do submarino cujo nome aparece no título e que entra num perigoso jogo de gato e rato com o agente da CIA Jack Ryan (Alec Baldwin). Este tem como objetivo descobrir se Markus pretende desertar para os Estados Unidos.
A Rocha (1996)
Aqui, Connery interpreta John Patrick Mason, o único homem que conseguiu fugir da prisão de Alcatraz. Ele é designado para acabar com um esquema do general Francis X. Hummel (Ed Harris), herói na Guerra do Vietnã que pretende usar mísseis químicos para destruir a cidade de San Francisco caso uma milionária quantia de dinheiro não seja paga. Apesar de ignorado pela crítica, o longa-metragem foi sucesso de bilheteria e se tornou um dos filmes mais vistos daquele ano.
Charlie Kaufman usa e abusa de simbologias e flerta com o surrealismo para abordar temas tão (tristemente) presentes no cotidiano
Texto por Andrizy Bento
Foto: Netflix/Divulgação
No currículo de Charlie Kaufman constam os roteiros de Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Sinédoque, Nova York e Anomalisa também carregam sua assinatura, não apenas no texto como na direção. Os fãs de cinema indie conhecem seu estilo e os que ainda não assistiram a algum destes títulos provavelmente nem ficarão surpresos quando os créditos finais surgirem na tela após uma sessão de cinema no meio de Estou Pensando em Acabar Com Tudo (I’m Thinking Of Ending Things, EUA, 2020 – Netflix). Já os desavisados e não habituados ao trabalho dele, bem como os fãs do livro no qual o longa se baseia, correm o sério risco de se decepcionar. Ou de ficar extremamente confusos com as escolhas narrativas e estéticas (que, por vezes, soam absurdas) adotadas por Kaufman para contar a sua versão da história.
Disponível na plataforma de streaming Netflix desde o dia 4 de setembro, o filme adapta o romance homônimo do autor canadense Iain Reid. Mas como Kaufman é, sobretudo, um criador na acepção da palavra – que gosta de esbanjar originalidade tanto no que concerne a questões de roteiro quanto de visual – obviamente, ele dispensou a fidelidade ao material de origem. Portanto, não se limita – tampouco se contentaria com isso – em contar a mesma história presente nas páginas do livro. Inclusive, mudou completamente o final.
Lucy (ao menos, a princípio, é assim que ela se chama), interpretada por Jessie Buckley, decide pegar a estrada em uma curta viagem com o namorado para visitar os pais dele na fazenda em que vivem, mesmo em meio a uma tempestade de neve. O casal ainda está bem no início do relacionamento, tendo se conhecido há poucos meses. A garota percebe as inúmeras qualidades presentes em Jake (Jesse Plemons), declarando que se trata de um rapaz inteligente, simpático, sensível. Contudo, não consegue evitar pensar que há algo de errado com ele. “Estou pensando em acabar com tudo”, ela repete sistematicamente. Ela está se sentindo sufocada, mas é como se estivesse em processo de perceber isso. No carro, durante a viagem, Jake atinge um novo patamar de manterrupting ao conseguir até mesmo interromper os pensamentos da namorada. Ela gostaria de um pouco de silêncio e espaço durante a viagem, apenas para mergulhar em uma rápida reflexão e tentar colocar as coisas em ordem na sua cabeça, enquanto observa a melancólica paisagem ao redor, tão agredida pelo rigoroso inverno.
O filme acompanha toda a viagem de ida e volta de carro do casal, com uma parada na casa dos pais de Jake na fazenda, outra em uma sorveteria 24 horas e, por fim, no colégio onde ele estudou. Todos esses espaços, em sua maioria claustrofóbicos, são reveladores e corroboram a construção do personagem de Plemons, nos oferecendo mais e mais de sua personalidade confusa e sombria. Expandem tanto a percepção que a protagonista carrega quanto a que o espectador tem sobre ele.
Jake fica desconfortável ao lado da namorada na presença de seus pais (Toni Collette e David Thewlis). Em cenas histriônicas, que quase descambam para a galhofa, percebemos que os pais dele são bastante inconvenientes em diversas colocações e questionam tudo. Mas é como se Jake os culpasse totalmente por sua miséria. A sequência na fazenda já deixa explícita a assinatura de Kaufman, pois é quando os personagens começam a sumir e ressurgir na tela, ora mais velhos, ora mais jovens, como se a protagonista tivesse um vislumbre de todo o passado, presente e futuro do namorado ao lado dos pais. Quando ela, enfim, deixa a casa dos sogros, Jake atribui sua confusão ao excesso de vinho que ela bebeu durante o jantar.
Além da família, outra das instituições com a qual Jake revela uma relação conflituosa (o que é sinalizado por meio de algumas linhas de diálogo) é a escola. Outro dos espaços com os quais sua vida possui uma conexão intrínseca. É ao estacionarem no colégio, que a protagonista, já totalmente atormentada pelo que viu na fazenda, pelos diálogos sufocantes com Jake no carro e pela estranha conversa com a atendente da sorveteria – que expressou verbalmente a preocupação com sua integridade –, começa a se perguntar (ainda que não com todas as letras) se está em um relacionamento abusivo.
Ela diz que Jake nunca bateu nela e que suas interações sexuais foram boas, na maior parte das vezes. Mas está tomada por dúvidas. Afinal, em tentativas contínuas de rebaixá-la intelectualmente, ele insiste em corrigi-la ou citar livros que ele sabe que ela não leu. Durante a viagem, ela avisa repetidas vezes que precisa voltar para casa logo a fim de trabalhar em um artigo, mas ele propositalmente distorce suas palavras, perguntando se ela quer voltar para a fazenda. Por meio de pequenas mas suficientemente nocivas manipulações mentais, ele tenta convencer a garota de que o problema está somente nela.
A obra investe em alegorias para tratar de assuntos sérios e delicados como se toda a narrativa ocorresse em um plano de delírio. Intercala a verborragia dentro do carro (inclusive com um diálogo brilhante sobre o filme Uma Mulher Sob Influência, de John Cassavetes), com cenas altamente nonsense, que emulam musicais e trazem porcos em animação e jingles persuasivos de uma franquia de sorvetes. Desse modo, jamais traindo seu estilo, Kaufman explora a toxicidade das relações, a solidão, o abandono, a perda de identidade, o sexismo tão enraizado na sociedade – que trata de maneira cruel aquelas que têm sua juventude apagada pelos anos e ousam envelhecer. Compõe tanto uma narrativa aterradora com um toque lúdico, quanto uma fantasia com contornos de suspense, garantindo uma experiência inquietante ao espectador.
Se Kaufman erra a mão em algum ponto, é no fato de, desde o começo, apresentar sua história sob a ótica da personagem de Jessie Buckley – até mesmo contando com a narração desta e deixando inequívoco que se trata de uma visão feminina para os temas que planeja tratar – para, então, transferir o protagonismo da metade em diante a Jake. A namorada passa a ser uma peça ou esquecida de sua memória ou a figura idealizada que fica ao seu lado – à sombra do homem. Sabemos que, infelizmente, não deixa de ser uma realidade com a qual nos deparamos através de décadas e que vem dando passos gradativos (não por falta de empenho, mas de oportunidades e igualdade entre gêneros) em direção a mudanças. Mas, ao final, a história toda parece ter girado em torno de Jake, tendo sua narradora simplesmente como aquela que o coadjuvou.
É particularmente curioso quando alguém diz que os filmes de Kaufman são complexos, comparando-os a labirintos e alegando que o espectador possui a difícil tarefa de montar as peças de seus alucinados quebra-cabeças. Eu, pelo contrário, acho que seus filmes são perfeitamente estruturados e suas metáforas, compreensíveis. Óbvio que há uma coisa ou outra que continua parecendo sem sentido após as sessões de seus longas (mas o quanto disso é realmente simbolismo na tentativa de transmitir uma mensagem e o quanto se trata apenas de conceito, de caprichos e idiossincrasias para corroborar a assinatura do autor?). De qualquer maneira, acredito que a forma é que é insana e absurda; a mensagem, entendível e bastante lúcida.
Como o próprio Kaufman diz lá pelas tantas, por meio de uma das falas da personagem sem nome (ora Lucy, ora Louisa, ora Amy), trata-se de imprimir universalidade ao específico. Nisso, o cineasta continua sendo um especialista.
Geraldo Sarno retoma o espírito do Cinema Novo e mostra os delírios de um jagunço na opressão do sertão no século 21
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Divulgação
Os entusiastas da sétima arte brasileira já, no mínimo, ouviram falar do diretor e roteirista Geraldo Sarno, autor de Viramundo (1968). Sua mais recente obra, Sertânia (Brasil, 2020), figurou na mais recente edição do Festival Ecrã e traz consigo o espírito do Cinema Novo à nova década do Século XXI.
Sarno escreve, com forte experimentalismo, os delírios de um jagunço, Antão, em seu leito de morte. Uma premissa íntima num longa bastante consciente de sua condição – Sertânia é produto e retrato de sua história. É na interseção entre religiosidade, folclore e história que Sertânia brilha, expondo a realidade contida na fantasia nordestina.
No entanto, esse retrato coloca a crueza social em seu segundo plano, enquanto decide explorar tal delírio íntimo de um jagunço de vida dura, que é relembrada na memória que, como imagina-se a confusão de um leito de morte, é despida de coesão espaço-temporal. Desta forma, grande parte do trunfo do filme é originada da (por que não?) delirante montagem. Um descolamento tal que floresce ao longo do tempo, atingindo as camadas mais inconscientes de um protagonista cuja vida não foi mais que sofrimento atrás de sofrimento.
Com uma estética que ecoa o Cinema Novo (que não é nenhum estranho do autor), o filme desenha um sertão cru, contrastado e estourado, muitas vezes em uma câmera na mão. O abuso da superexposição que acaba por prejudicar os quadros – embora haja lindas composições, muitas perdem a profundidade com tanto branco se mesclando. Ainda assim, a ausência de cor contribui em muito ao tom subjetivo que a direção de Sarno toma.
O que vemos, não se pode esquecer, é produto da memória definhante de um personagem – talvez o motivo do enfoque do filme ser, justamente, seus conflitos, em detrimento da abordagem sociológica. Ainda que o contexto de crime e fome tenham forte impacto na solta trama do roteiro, tais elementos só têm força proporcional à impressão que deixam a Antão.
E é desta forma que, conduzidos pela direção de Geraldo Sarno, somos convidados a experimentar uma perspectiva alienígena à do Século 21, mas que lida com os mesmos problemas enfrentados por muitos enquanto eu escrevo e você lê: a fome, a opressão, a morte e todos os meandros em que estes convergem. De certa forma, e é uma das mensagens que finalizam o filme, o sertão fantástico de Lampião, Delmiro Gouveia e, agora, Antão Gavião. A nós, meros espectadores, só resta o agradecimento ao cineasta e a reflexão que, inevitavelmente, sua obra nos oferece.
Documentário procura colocar os pingos nos is ao revelar a intimidade e o amadurecimento pessoal da megaestrela da música pop
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Netflix/Divulgação
Ela apareceu para os holofotes em 2006 como uma romântica cantora country. Aos poucos foi se consolidando como a mais nova princesinha da América (branca, loira, alta e de olhos azuis). Em meio a músicas de sucesso, prêmios, namoros públicos e polêmicas muito especulou-se sobre sua verdadeira personalidade. E agora, em Miss Americana (EUA, 2020 – Netflix), Taylor Swift coloca os pingos nos is.
O documentário dirigido por Lana Wilson é o mergulho mais profundo já feito na vida e na mente de uma das personalidades mais famosas no mundo. Embora em suas canções Taylor nunca tenha tido medo de expressar seus sentimentos, pouco se sabia o que acontecia quando as cortinas se fechavam. Conhecida por ser bastante cuidadosa com sua imagem, a popstar passou anos tentando controlar a própria reputação ao se encaixar nos moldes do que os outros queriam que ela fosse.
Logo no início do documentário, a artista afirma que sempre sentiu a necessidade da aprovação de terceiros e isso influenciou para tornar-se a eterna “garota boazinha”. Não reclamar, não se revoltar, ser sempre agradável e jamais falar sobre política. Influenciada pela execração sofrida pela grupo country Dixie Chicks, que viu sua carreira ruir ao posicionar-se contra a Guerra do Iraque, Swift decidiu ainda no início de sua carreira que nunca iria abordar o tema. Mal sabia ela que nesse caso ser uma “garota boazinha” também lhe renderia muito hate.
Uma das missões do filme é abordar o renascimento da popstar para, agora, uma mulher com posicionamentos políticos definidos. Se em 2016 foi criticada por não ter falado sobre as eleições, inclusive foi acusada de ser eleitora de Donald Trump, Taylor deixa claro que agora será diferente. Miss Americana mostra os bastidores da decisão da cantora de quebrar seu silêncio em relação à política. Em um debate acalorado com seu pai e sua equipe, Swift defende que desta vez precisa estar do lado certo da História.
Já repassada milhões de vezes, a briga com Kanye West também tem seu tempo de tela. É admirável vê-la falando de forma tão crua sobre um episódio que poderia ter destruído sua carreira. A mulher que antes sempre procurava evitar o assunto – ou falar apenas por partes – abre-se sobre o que sentiu e o que viveu nos meses em que foi “cancelada” pelo público. Muitos podem achar uma oportunidade para inserir drama (afinal, todo filme precisa de um pouco de drama!), mas a abordagem do assunto no documentário é essencial. Miss Americana provavelmente não existiria sem esse episódio, Swift nunca precisaria se reinventar em 180 graus se não tivesse visto o fim de tudo tão perto.
O melhor e mais surpreendente momento é quando Taylor fala sobre seu transtorno alimentar. Em um carro em movimento, vemos o lado mais vulnerável da megaestrela que, assim como milhões de mulheres do mundo, também sofre para amar seu próprio corpo. A exposição de um assunto delicado como esse mostra um esforço de Swift em dividir mais de quem ela é com seu público, incluindo os lados do qual não se orgulha.
Miss Americana é um documentário sobre o despertar político e o retrato da intimidade de uma personalidade mundialmente famosa. Porém, acima de tudo, revela o amadurecimento de uma garota que queria ser o que os outros pediam para a mulher que a cada dia adquire mais voz.