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Angela

Isis Valverde revive a intensa história de fogo e paixão da socialite Ângela Diniz, vítima de famoso caso de feminicídio nos anos 1970

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Downtown Filmes/Divulgação

Noite de 15 de julho de 2011. Uma menina, de 4 anos, perambula sozinha na rua de casa, em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Encontra uma mulher e bate nas costas dela: “tia, minha mãe está morta”. Em cima da cama, a polícia encontra o corpo de Carine Andréia dos Santos do Carmo, executada com dois tiros na cabeça. Suspeito: o marido, foragido. Lembro até hoje o rosto da menina deixando a casa onde vivia há apenas dois meses, de mãos dadas com os conselheiros tutelares e as cenas da tragédia cravadas na memória. Sem mãe, nem pai.

30 de dezembro de 1976. Às vésperas do réveillon, a socialite mineira Ângela Maria Fernandes Diniz é executada com quatro tiros, três no rosto e um na nuca, pelo então companheiro Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. “Se você não for minha, não será de ninguém”, disse o assassino, antes de disparar à queima-roupa. 

O crime ocorreu na casa onde os dois moravam, na Praia dos Ossos, município de Búzios, litoral do Rio de Janeiro. Ossos do homicídio. Raul fugiu, foi preso e, no primeiro julgamento, em 1979, seus advogados alegaram a tese de legítima defesa da honra, desabonando a conduta de Ângela, na famosa estratégia de culpar a vítima, que muitos advogados ainda sustentam hoje, um traço característico da cultura machista. Durante o júri, ela foi descrita como a mulher fatal, capaz de levar o homem à loucura.

Doca, o homem que havia “matado por amor”, recebeu a condenação de dois anos de prisão, que nem chegou a cumprir. O absurdo dessa pena “simbólica” deixou a sociedade perplexa e fez até o poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestar: “estão matando essa moça todos os dias”, escreveu na época.

Os movimentos feministas logo se organizaram e criaram o slogan “Quem ama não mata”. Em 1981, Street foi levado a segundo julgamento e pegou 15 anos de prisão por homicídio doloso qualificado. Cumpriu quatro anos em regime fechado até progredir para o semiaberto. Antes de morrer, em 18 de dezembro de 2020, aos 86 anos, ele chegou a publicar um livro de memórias chamado Mea Culpa.

A história desse feminicídio, amplamente divulgado na mídia na época, agora está nas telas dos cinemas com direção de Hugo Prata. O cineasta, aliás, vem se tornando um especialista em cinebiografias de artistas e celebridades, sobretudo personagens femininas marcantes, como fez com Elis e agora Ângela. 

Angela (Brasil, 2023 – Downtown), o filme que traz Ísis Valverde na pele da protagonista e Gabriel Braga Nunes como Doca Street, estreia no país, no dia da Independência, 7 de setembro, e no ano em que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra, usada em casos de feminicídio ou agressão contra as mulheres para justificar o comportamento do acusado. 

Num bate-papo pós pré-estreia no Cine Passeio, em Curitiba, comandado pelos curadores, Marden Machado, jornalista e crítico de cinema, e pelo diretor Marcos Jorge, Prata conversou com os espectadores e revelou detalhes de como o filme foi idealizado: “Achei que tinha perdido o timing. Porque quando comecei a rodar, logo veio o movimento #metoo. Depois, o caso ainda foi repercutido no podcast Praia dos Ossos”, lembrou. Portanto, foram sete anos até o lançamento do longa, prazo de expiração para muito casamento. Mas seu timing não poderia ser mais preciso, por causa da decisão histórica do STF.

Bonita, elegante e à frente do seu tempo, Ângela Diniz casou-se ainda adolescente com o engenheiro Milton Villas-Boas, quatrocentão da sociedade paulistana. Aos 21 anos, já tinha três filhos para criar. Na época em que conheceu Doca Street (que, então, era casado com outra socialite, Adelita Scarpa), Ângela estava fragilizada por causa do desquite, já que a lei do divórcio só seria aprovada no país em 1977, ano posterior ao homicídio.

Por isso, ao contrário do que muito se divulga, ela teve de renunciar à guarda dos filhos pequenos em prol de sua liberdade, de sua independência. Ao contrário dela, muitas mulheres permaneciam casadas para manter as aparências. Ficar longe das crianças foi o primeiro preço alto que teve de pagar, como mostra o filme. Prata contou que, desde o início, a ideia foi desmitificar nas telas a imagem da socialite como sendo a “mulher fatal”, a “pantera de Minas” que participava de festas ao lado do colunista social Ibrahim Sued, seu namorado antes da paixão avassaladora por Doca.

Durante seu processo de pesquisa, o cineasta entrou em contato com os filhos da vítima. Soube que um deles morreu num acidente. O outro tem uma doença que o paralisou e, por isso, é assistido pela irmã Cristiana Maria Villas-Boas Viana, sua tutora. Prata chegou a conversar pessoalmente com a filha de Ângela depois de encontrá-la nas redes sociais, mas não conseguiu muito subsídio para construir a história. Afinal, a dor ainda é grande. E, ao contrário do que muita gente pensa, há poucas imagens de Ângela em público porque ela não podia se expor.

“Ao falar da morte ficam dizendo que ela era rica, que ela era bonita, muito sedutora. Tudo aquilo que foi colocado no julgamento permeou a imagem da Ângela. Então, a gente descartou a tese de que não importa o que ela viveu antes de conhecer o Raul e antes dele matá-la. Ângela tinha o direito de viver a vida do jeito que ela quisesse. Então, o filme começa no dia em que eles se conheceram, evento fatídico da vida dela”, contou. Ou seja, Prata e a roteirista Duda de Almeida recriaram a protagonista livre de julgamentos, a partir do momento em que ela conhece seu assassino, numa festa, até a sua morte.

Foram quatro meses de fogo e paixão. Por isso, há muitas cenas de sexo (até demais!) no longa, que traz três atos bem marcados. O primeiro é quando ela conhece Doca, um homem que já dava indícios de índole violenta, habilidoso com armas e amante de safaris africanos. Numa cena, o playboy se gaba por ter enfrentado um elefante e ter matado uma presa mais forte que ele. No segundo, no meio do filme, ocorre a primeira agressão. No terceiro, a vítima passa a ser agredida frequentemente até acontecer o homicídio. Quando Ângela decide por um fim na relação, o orgulho ferido do caçador entra em ação. “Aliás, nós decidimos chamar Raul pelo nome e não pelo apelido”, contou o diretor, que esbanjou dos big close-ups, sobretudo por conta da intensidade de interpretação de Ísis Valverde, procurando manter um estilo narrativo de filmes feitos para televisão. E como se trata de uma cinebiografia, o público já sabe como é o final, desenhado aqui de forma potente como se todas as mulheres fossem atingidas pelos disparos de pistola no rosto.

O que, logo depois, leva à seguinte conclusão: se toda mulher é meio Leila Diniz, muitas ainda são Ângela Diniz.

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Ela Disse

Diretora Maria Schrader leva às telas a recente história que revelou a série de abusos e estupros cometidos por um figurão de Hollywood

Texto por Taís Zago

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Esta é a história de como as duas jornalistas do New York Times, Megan Twohey (Carey Mulligan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan), pesquisaram e publicaram a primeira matéria sobre os crimes de estupro e abuso do figurão do cinema hollywoodiano Harvey Weinstein. Em Ela Disse (She Said, EUA, 2022 – Universal Pictures) Megan e Jodi passaram um sufoco enorme para conseguir penetrar no mundo dos acordos de silêncio pago, legiões de advogados, vitimas acuadas e amedrontadas, um infinito blacklisting e a cooperação de toda uma indústria com abusadores como Harvey.

Weinstein, como já é sabido pelo escopo do movimento global #metoo, foi apenas a ponta do iceberg de um machismo institucional e de uma cultura de assédio a atrizes, atores e funcionários de diversos setores da indústria norte-americana de entretenimento. O que Jodi e Megan iniciaram foi o estopim para uma avalanche de denúncias que transbordaram a fronteira cultural que deu início às denúncias. Nos meses e anos que se seguiram, milhares de mulheres se sentiram encorajadas e empoderadas o suficiente para reivindicar, em diversos setores e em diversos países, modificações de leis trabalhistas, fim da disparidade salarial entre homens e mulheres, melhores códigos de conduta nas empresas e políticas de repressão do assédio e do abuso em ambientes de trabalho. 

As atrizes Ashley Judd e Rose McGowan, junto a ex-funcionárias do estúdio Miramax, encabeçaram essa primeira onda de denúncias, apoiadas apenas no suporte do NYT e das mídias que repercutiram as reportagens. Perseguidas por advogados e cobradas por terem assinado um NDA (Non-Disclosure Agreement), essas mulheres foram achacadas e coagidas aos seus limites. Mesmo assim, não desistiram e seguiram contando os episódios horrendos que vivenciaram na mão daquele que se considerava acima da lei, e que em 2020 foi condenado a cumprir a pena de 23 anos de prisão por estupro e assédio (outros processos em Londres e na Califórnia ainda estão em andamento e podem aumentar a sentença inicial).

As ondas causadas pelo #metoo chegaram até mesmo ao Brasil, reverberando na cena cultural nacional e encorajando mulheres a falarem sobre os abusos que sofreram fora e dentro do meio artístico brasileiro. Um destes casos é o do ator e humorista Marcius Melhem, que, após a denúncia da então colega de Rede Globo Dani Calabresa, responde hoje por mais 12 casos de mulheres que o acusam de assédio. 

Seriam todas as denuncias ilibadas e corretas? Certamente não. Mas estamos exatamente diante de um assunto onde a exceção confirma a regra – no Brasil, um dos países campeões mundiais de violência contra as mulheres e comunidade LGBTQIA+, o medo de sofrer retaliações após denunciar agressores ainda é muito grande. A isso ainda juntamos a ineficiência de alguns órgãos de repressão à violência e a leniência legislativa e judiciária. A lei Maria da Penha foi uma grande conquista, mas ainda não dá conta de tapar todos os buracos cavados pelo patriarcado brasileiro.

O filme da diretora e atriz alemã Maria Schrader leva em consideração a seriedade do assunto. Com boas atuações de Mulligan e Kazan, o dia a dia tenso do jornalismo investigativo das duas nos captura. O filme é escuro, o humor soturno. Os diálogos englobam todo o cuidado e a delicadeza necessária ao tema sem apelação ou pathosexagerado. Não se esperaria algo diferente de Schrader: seu trabalho como atriz já era impecável e como diretora ela segue esse mesmo rumo.

Ela Disse é real, documental e honesto. Nos coloca diante de um espelho da masculinidade tóxica e de seus mecanismos de normalização do abuso. Um filme importante sobre um momento crucial na história do feminismo norte-americano contemporâneo.

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Meu Policial

Harry Styles encabeça elenco de triângulo amoroso que enfrenta o tabu dos relacionamentos gays que havia até 1967 no Reino Unido 

Texto por Taís Zago

Foto: Amazon Prime/Divulgação

Filme dirigido por Michael Grandage, Meu Policial (My Policeman, Reino Unido/EUA, 2022 – Amazon Prime) é baseado no romance de Bethan Roberts publicado em 2012, que, por sua vez, foi, fortemente influenciado pela história real do relacionamento de 40 anos entre o autor britânico EM Forster e um policial casado chamado Robert Buckingham. O triângulo amoroso entre Forster, Buckingham e sua esposa May, uma enfermeira, inspirou tanto a obra de Roberts que fica difícil separar a realidade da ficção. Pessoalmente, acho que o certo seria até mesmo categorizar a obra como semibiográfica – claro que sem tirar o mérito criativo de Roberts no processo.  O roteiro ficou a cargo de Ron Nyswaner, que, assim como Grandage, tem uma forte queda por dramas de época.

Em O Mestre dos Gênios (2016), Grandage já havia abordado o tema dos tabus sociais britânicos em torno de relações homossexuais. Até 1967, a homossexualidade era considerada crime no Reino Unido: os grupos LGBT+ eram alvo de verdadeiras caças às bruxas, com penas de prisão severas e desproporcionais, além de assédio, ataques violentos e maus tratos mesmo sob a tutela do Estado.

Meu Policial começa em uma Brighton dos anos 1990, com a chegada de Patrick (Rupert Everett) à casa de seus amigos Marion (Gina McKee) e Tom (Linus Roache). Patrick se recupera de um AVC que o deixou praticamente incomunicável e sem autonomia. Por isso, Marion decide assumir os cuidados com sua saúde, aparentemente, a contragosto de Tom. O clima entre os três não poderia ser mais gélido e protocolar. Tom nem sequer aparece para receber Patrick: ele passa seus dias fora de casa passeando com o cachorro na praia. Ao ler antigos diários de Patrick, Marion começa a relembrar o passado doloroso que envolve os três. É nessa hora que voltamos no tempo para 1957, quando Patrick conhece Tom e Tom se envolve com ele e com Marion, criando um triângulo amoroso cheio de mentiras e ressentimentos.

O jovem Tom é interpretado por Harry Styles, em sua segunda atuação em 2022 como protagonista. O papel de Marion é incorporado por Emma Corrin e David Dawson faz o jovem Patrick. Corrin e Dawson são espetaculares, mesmo nos pequenos detalhes de suas atuações – um olhar, um gesto, uma lágrima nos comunicam mundos inteiros de sentimentos encapsulados pelas palavras. Isso, novamente, não favorece Styles. Apesar de sua aparente entrega a esse papel, o cantor pop ainda não consegue atingir o nível de excelência dos seus coprotagonistas.

Harry já estreia em papeis importantes no cinema rodeado de excelentes atores, produções milionárias e um assédio midiático contínuo. Para ser possível se sobressair nessas circunstâncias, teria de ser um talento nato, muito acima da média. Não é o que ocorre. Principalmente nas cenas com mais diálogos, a sua inexperiência fica evidente, e, por fim, acaba prejudicando o resultado final. Corrin, entretanto, é excepcional como Marion. Sentimos na personagem todo o desgosto, o recalque e o sofrimento de quem não desiste de lutar por uma batalha perdida. Dawson, por sua vez, entrega um Patrick comovente, resignado aos limites do seu amor proibido por Tom.

Visualmente opulento, Meu Policial peca na montagem. Os flashbacks frequentes entre os anos 1950 e 1990 acabam por se tornar um banho de água fria. Quando começamos a nos envolver de verdade no drama do passado, o “presente” dos personagens surge nos inundando com uma monotonia desnecessária. Enquanto em 1958 o trio vive intensamente, em 1990 as cenas se repetem – Tom passeia na praia, Marion fuma olhando pela janela e Patrick segue imóvel (por questões óbvias). Bastaria apenas iniciar e encerrar o filme com os desdobramentos do presente e deixar todo o miolo para o drama do passado, para que a dinâmica mudasse completamente e a monotonia fosse em boa parte espantada dessa produção.

Outra questão muito levantada pela crítica e pelo público (principalmente LGBTQIA+) é a necessidade, de mais uma vez, contar a história macabra dos maus tratos, preconceitos e finais trágicos dos relacionamentos amorosos homossexuais de outrora. Um assunto já bastante abordado em diversas produções das últimas décadas. Por outro lado, me pergunto: existem limites para relembrarmos o passado como um cautionary tale daquilo que não queremos que se repita no presente ou no futuro? Pessoalmente, acho que não.

A questão aqui, entretanto, seria mais a qualidade do resultado do que a repetição do tema. Meu Policial falha, principalmente com Styles, no quesito credibilidade e profundidade, mas acerta no objetivo de nos levar a refletir, mais uma vez, sobre injustiça e preconceito. Por fim, vale acrescentar: o triângulo real de Forster, Buckingham e May não teve um final tão trágico quanto o das suas representações nesta película.

>> Leia aqui a resenha de Não se Preocupe, Querida, o outro filme protagonizado por Harry Styles em 2022

>> Leia aqui oito motivos para não perder um dos concertos da turnê de Harry Styles, que passa pelo Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba) neste início de dezembro

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Argentina, 1985

Ricardo Darin brilha como o procurador que levou a punição a muitos dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura recente no país vizinho

Texto por Tais Zago

Foto: Amazon Prime Video/Divulgação

Sejamos honestos. A Argentina fez o que não fizemos no Brasil. Puniu os crimes (pelo menos de alguns) dos militares responsáveis pelos sumiços, assassinatos, torturas, coações, estupros, ameaças e mordaças aplicados aos seus cidadãos durante a última ditadura civil-militar que levou o país aos joelhos entre os anos de 1976 e 1983. Em um julgamento de magnitude somente vista antes em Nürnberg após a Segunda Guerra Mundial, os crimes atrozes, detalhados em centenas de depoimentos de sobreviventes e familiares de vítimas, chocaram os presentes, os argentinos e o resto do mundo. 

Em 1985, pouco após a queda do regime e durante o governo Alfonsín (1983-1989), onde foi anulada a Lei de Auto-Anistia, foram assinados decretos que possibilitaram o julgamento dos militares pelos crimes de lesa-humanidade cometidos. Queda essa, precisamos lembrar, que ocorreu graças à incansável resistência de agrupamentos do povo – como o das Mães da Praça de Maio, que lutavam pelos seus filhos desaparecidos – greves gerais, denúncias internacionais de violações dos direitos humanos e uma forte crise econômica. Finalmente, após as forças armadas jogarem a batata quente para o âmbito civil, generais das forças armadas sentaram no banco dos réus. Porém, tais figurões, ainda calcados no poder que exerciam sobre boa parte da população e das instituições governamentais, entraram confiantes de um veredito de inocência. 

Mas eles não esperavam encontrar pelo caminho o procurador Julio Strassera (Ricardo Darin), o procurador-adjunto Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani) e um grupo de jovens advogados e servidores públicos que viajaram toda a Argentina e juntaram, em pouco mais de quatro meses de trabalho, uma infinidade de casos e provas contra os militares e seus subordinados. A estimativa é que havia um total de 30 mil pessoas desaparecidas durante o “reinado” do ditador Videla e seus comparsas.

Temos em Argentina, 1985 (Argentina/Reino Unido/EUA, 2022 – Amazon Prime Video) um clássico filme de tribunais. E com as etapas que já conhecemos: investigação, captação de provas e depoimentos, estratégias de advogados, testemunhas acuadas, ameaças constantes de morte e um julgamento que, se não plenamente bem sucedido, serviu como inspiração, impulso e precedente para pelo menos mil outros processos desde então. Vemos aqui a Buenos Aires da metade dos anos 1980, com seus prédios imponentes, orelhões vermelhos, bancas de jornais e pequenos restaurantes de bairro. Apesar de pouco se passar fora da sala do tribunal ou de repartições públicas, há um apreço pelos detalhes na produção. O diretor Santiago Mitre, que já trabalhou diversas vezes com o ícone Darin, mostra-nos um Strassera lacônico e de humor esparso. Um promotor que não perde a cabeça por bobagens, mas que, quando convocado, não retrocede e nem desvia por um minuto sequer do seu objetivo. O ator está espetacular como o funcionário público que, apesar de obediente, não desperdiça uma chance de trazer justiça para as vítimas – e mesmo após o veredito continua trabalhando arduamente. Lanzani, como Moreno Ocampo, um típico jovem criado em família militar mas que nunca tolerou o regime, exagera um pouco na dramatização do papel. Uma pontinha de exagero que destoou um pouco da atuação certeira e pontual de Darin – Strassera era protocolar no trabalho e ao mesmo tempo um pai terno em casa. 

Também não é de se ignorar uma certa pecha hollywoodiana na obra. A presença do filho de Strassera em diversas cenas, transferindo para o olhar infantil o desenrolar dos acontecimentos, poderia ser deixada de lado. No mais, as atuações são comedidas tanto nos momentos mais tensos quanto nos mais leves. É essa dosagem que torna Argentina, 1985 uma obra indispensável, tanto como entretenimento quanto material educacional (principalmente no momento atual brasileiro, onde sentimos na pele o resultado de uma anistia e o esquecimento dos horrores da ditadura). Os argentinos festejam a lembrança das derrotas e vitórias do seu passado. Com respeito, mas também com orgulho. Exatamente para que a sua democracia continue forte e viva.

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Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.