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O Doutrinador

Personagem de sucesso da HQ independente brasileira ganha os cinemas para combater a corrupção na política e fazer justiça com as próprias mãos

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Downtown/Divulgação

Doutrina é um conjunto de princípios que servem de base a um sistema filosófico, religioso, político, social ou econômico. Estas ideias devem ser difundidas e ensinadas disciplinarmente, de modo que elas se propaguem e se mantenham ao longo do tempo.

Para o policial de elite Miguel, só existe saída em uma única doutrina: atirar para matar, sem dó nem piedade, políticos corruptos brasileiros. Para vingar todo o sentimento de desgosto e impotência diante de dois fatores fundamentais: a morte da filha pequena por uma bala perdida no meio da rua e o fato de os esforços de sua força-tarefa para prender os criminosos de colarinho branco serem praticamente em vão diante da justiça comprada e das sabotagens de seu superior imediato. A partir desta sequência de infortúnios, ele se transforma em um obstinado justiceiro, que caça implacavelmente os envolvidos em um complexo sistema de corrupção para acabar com suas vidas a sangue frio. Na bala e também na quando, se possível. Transforma-se no Doutrinador, uma figura que leva o terror a seus alvos através de uma máscara antigás com olhos vermelhos de raiva, habilidades físicas com imenso potencial e uma aliança entre rapidez e estratégia para se infiltrar nos lugares mais impossíveis.

O ilustrador carioca Luciano Cunha criou o personagem em 2008, como uma válvula de escape para suas frustrações diante do inicio da enxurrada de notícias a respeito do Mensalão e outros casos iniciais que alardeavam a corrupção alastrada nas entranhas do meio político nacional. Depois de vários contatos com editoras, que mostraram-se receosas de publicar os quadrinhos do Doutrinador, Cunha decidiu pelo do it yourself. Disponibilizou em março de 2013 na internet a obra, que rapidamente arrebatou milhares de fãs com os protestos nas ruas de todo o país naquele mês de junho. Três edições impressas bancadas pelo próprio autor esgotaram-se rapidamente. Críticas positivas também vieram de outros países. Até que o cinema e a televisão também se atraíram pela HQ.

O longa-metragem O Doutrinador (Brasil, 2018 – Downtown Filmes) chega ao circuito nacional de salas de cinema nesta semana, já como uma espécie de piloto para o seriado que ganhará a telinha no inicio do ano que vem, na programação do canal por assinatura Space. O próprio Cunha, ao lado do roteirista Gabriel Wainer, assina a transposição dos quadrinhos tanto para o filme e quanto para os episódios. O longa tem a direção de Gustavo Bonafé (que está nos cinemas com outro filme, Legalize Já) e uma trilha sonora de primeira assinada pelo coletivo paulistano Instituto – com músicas interpretadas por Karol Conká, Rincón Sapiência e Far From Alaska, por exemplo.

Nem dá para perceber que o protagonista foi ligeiramente suavizado em sua sede por vingança e justiça pelas próprias mãos. O que poderia ser um ponto negativo para os fãs trazidos do universo das HQs. Outro ponto positivo do filme é a maestria para driblar qualquer procura por tendência político-partidária ou relações entre os personagens corruptos e os figurões da vida real. Luciano e Gabriel foram bem felizes ao não deixar rastros que possam ligar à esquerda ou à direita ou as turmas do fora-isso ou do aquilo-não.

Em recente passagem por Curitiba, quando participaram do evento Geek City, Cunha e Wainer defenderam a isenção de vínculos com ideologias que andam inflamando nosso país. “Ainda não estamos acostumados, no entretenimento brasileiro, a ter inimigos que conversem com a gente, uma narrativa que está conectada com a nossa realidade. O lema que sempre carregamos é que para termos um universo de heróis nosso, eles têm que falar das nossas cidades e dos nossos problemas”, afirmou Luciano. Gabriel ainda salientou que o filme foi criado para que não surgisse um Doutrinador na vida real.  “Não é uma apologia à violência. É uma ficção que criei para externar meu descontentamento com a classe política. Sempre digo que temos que matar os políticos na urna, não os elegendo. Os corruptos, é claro”, completou Cunha.

Para interpretar o protagonista, Kiko Pissolato dispensou o uso de dublês e encarou ele mesmo a tarefa de rodar todas as cenas de ação como o Doutrinador. No elenco ainda estão Tainá Medina (a hacker nerd que dá suporte ao justiceiro em suas ações), Eduardo Moscovis (o governador corrupto que dá início às caças particulares de Miguel), Tuca Andrada (o chefe de Miguel na Divisão de Ações Especiais), Marília Gabriela (como a ministra do STF envolvida nos esquemas dos políticos e empresários), Helena Ranaldi (a opositora do debate que também concorre às eleições), Samuel de Assis (o policial amigo de Miguel) e Natália Lage (a ex-mulher de Miguel).

Apesar do roteiro se perder para algumas obviedades no final, O Doutrinador– que carrega claras inspiração e influência estética do Batman – ainda revela-se um bom filme de ação, gênero pouco explorado no cinema nacional. Justamente por seu maior trunfo ser o fato de dispensar o uso de efeitos especiais pirotécnicos e tecnológicos (algo que hoje em dia parece indispensável em obras deste filão) para apostar no fator humano.

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Roger Waters – ao vivo

Resistir com amor é o ensinamento que o ex-baixista do Pink Floyd passou à plateia sob vaias, xingamentos e aplausos na terra da Lava-Jato

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Textos de Janaina Monteiro e Abonico Smith

Foto: Priscila Oliveira (CWB Live)

Quem esperava ouvir um inflamado discurso político escutou palavras de amor por parte de George Roger Waters no show histórico que apresentou no sábado à noite em Curitiba, às vésperas de uma eleição conturbada para presidente da República. Como a lei eleitoral não permitia manifestações públicas após as 22h (e um juiz local fez questão de enfatizar isso ao artista), Waters se calou e usou o gigantesco telão para se posicionar contra as ideias do candidato Jair Bolsonaro, agora presidente do Brasil. E diante de uma plateia polarizada, entre vaias, aplausos, gritos de “#EleNão” e “Fora PT”, o britânico, de 75 anos, disparou atenuando os ânimos exaltados. Declarava “I love you” e “This show is about love”. Abria os braços para a multidão que lotou o estádio Major Antônio Couto Pereira.

Isso porque em shows anteriores da turnê Us + Them pelo país, o 28º músico mais bem pago do mundo (segundo a revista Forbes, ele faturou 68 milhões de dólares em 2018), causou polêmica ao criticar enfaticamente – inclusive com uso de palavrão – o então candidato do PSL e representantes de regimes de extrema-direita que crescem no mundo. Em Curitiba, numa noite estrelada e enluarada, o cara que ficou conhecido como o cabeça da banda de rock psicodélico/progressivo Pink Floyd teve meia hora para se expressar antes que a lei entrasse em vigor.

Quem chegava ao estádio já se deparava com o enorme telão que mostrava uma mulher, sentada de frente para o mar, olhando para o horizonte. De repente, o céu ficou vermelho. O mundo acabou e o show começou para as 41 mil pessoas presentes. Roger Waters entrou britanicamente às 21h30 no palco e, já no início da primeira parte, nos lembrou o quão pequenos somos diante da vastidão do universo.

A banda começou com “Breathe” e a grande lua e seu lado negro (“the dark side of the moon”) pairou sobre a Terra e se perdeu na infinitude das estrelas. A viagem teve início e era preciso respirar fundo para testemunhar a sequência do show. Seriam quase três horas de história: a trágica História da humanidade, o lado negro do ser humano.

O show de Waters não é para dançar ou se divertir (apesar que haver quem consiga). É um show pesado, para refletir, para protestar. Essa é a sua marca: o músico, que perdeu o pai para o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e o avô na Primeira, usa sua arte para criticar a desigualdade social. Assisti-lo lúcido, sem nada para entorpecer – como uma gota de álcool ou uma tragada de cigarro – é como levar um soco na cara. Após uma sucessão de imagens violentas, de guerras, pessoas amputadas, minorias, palestinos, muçulmanos, africanos; armas, muitas armas; e crianças diante de tanques de guerra é difícil não se emocionar, não entrar em transe, comover-se. E pensar o quanto ainda precisamos evoluir como seres humanos.

O Pink Floyd lançou o emblemático The Wall, seu décimo primeiro álbum, em 1979, dez anos depois que o homem “supostamente” chegou à lua e da eclosão da chamada terceira revolução industrial, que marcava o início da era da informatização. As tarefas mecânicas e repetitivas das fábricas passaram a ser automatizadas. Com a virada do século, os computadores pessoais e a internet transformaram as relações interpessoais, o modo como nos manifestamos. Hoje presenciamos a quarta revolução industrial: big data, inteligência artificial e afusão dos mundos físico, digital e biológico. Tudo parece estar muito perto, muito fácil, a um clique. Ainda assim, os discursos continuam os mesmos.

Nessas quase quatro décadas desde o lançamento de The Wall, guerras, desigualdade, pobreza, porcos capitalistas, regimes totalitários, muros e chaminés de indústrias continuam a poluir nossas vidas. O show de Waters seguia reflexivo a respeito disso tudo: “One Of These days”, “Time”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”. Até que Waters nos convidou a resistir.

Cantor e banda se calaram sob sirenes e o telão explicou. “Temos 30 segundos. É a nossa última chance de resistir ao fascismo antes de domingo. #EleNão! São 10:00. Obedeçam a (sic) lei” A plateia reagiu: uns gritavam “#EleNão”. Outros vaiavam e xingavam o artista. Muitos diziam “fora PT”. Houve quem tapasse os ouvidos.

Waters ressurgiu com “Wish You Were here” e reuniu o coro novamente numa mesma direção até o grande momento do show com sua banda impecável e o clássico “Another Brick In The Wall (partes 2 e 3)”. Quatorze jovens encapuzados entraram no palco vestidos com uniformes de presidiário, de cor laranja e números gravados no peito. O verbo resist apareceu em vermelho no telão e estampado em branco na camiseta preta dos adolescentes, que se despiam do uniforme da prisão e se libertavam. É preciso perfurar esse muro, que, como diria o filósofo Michel Foucault, diz “NÃO” mais alto do que qualquer voz que você ouvirá.

Pausa? Mas que pausa? O “intervalo” começou mas as mensagens no telão não deixavam ninguém relaxar. Vinha um bombardeio de mensagens sobre o poder das guerras, dos porcos capitalistas. A primeira críticas foi diretamente a Mark Zuckerberg, dono de um império avaliado em 81,6 bilhões de dólares. A mensagem do baixista era clara: “resista ao neofascismo”. E ela permearia todo o segundo ato do show, que começou com “Dogs”.

“Resist what? Resist who?”, mostrava o telão. Mas a pergunta que deve ser feita é “resistir como”? Com discursos de ódio ou com uma comunicação não-violenta, empática, aquela que se aproxima do que o líder espiritual Gandhi buscava? A capacidade de se expressar sem usar julgamentos, o maniqueísmo, que divide o mundo em bom e o mau.

Uma imensa usina – a mesma estampada na capa de Animals, de 1977 – tomou conta do telão, por trás de onde emergiam quatro imensas chaminés e um porquinho cinzento inflável. E Waters cantou “Pigs”, do mesmo álbum, numa crítica debochada a Donald Trump. “Big man, pig man, haha, charade you are”. Ora o presidente americano aparecia num corpo de prostituta, ora no corpo de um porco. E o famoso balão alegórico do porco capitalista entrou em cena, passeando pelo gramado, carregando as frases “seja humano” e “permaneça humano”. Com as máscaras do animal, a banda deu um tempo na música preparou um brinde com taças de champanhe em pleno palco. Cheers!

Na sequência, Roger cantou “Money” (“Money, so they say, is the root of all evil today”) enquanto o telão exibia imagens de outros líderes políticos como Kim Jong-Un, da Coreia do Norte, e do russo Vladimir Putin. E depois de tanta desgraça, tanta miséria, tanta guerra, uma mensagem mais positiva foi lançada por Waters. Ao anunciar a canção “Wait For Her”, do seu álbum mais novo (Is This The Life We Really Want?, de 2017, o primeiro de inéditas depois de 25 anos) ele voltou a discorrer sobre a transcendência do amor, que pode, enfim, unir as pessoas e vencer a intolerância. Uma mulher, dançarina de flamenco, com cicatrizes, chora ao telão. Ela representava a força da vida, sofrida mas que segue em frente.

Perto de meia noite e meia, o show terminou. A mesma mulher lá do início permanecia olhando para o infinito. O mundo renasceu e sua filha surgiu da areia e lhe deu um abraço. Esperança em meio ao caos. (JM)

Set list: “Breathe”, “One Of These Days”, “Time”, “Breathe (Reprise)”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà Vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”, “Wish You Were Here”, “The Happiest Days Of Our Lives”, “Another Brick In The Wall (Part 2)”, “Another Brick In The Wall (Part 3)”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Money”, “Us + Them”, “Smell The Roses”, “Brain Damage” e “Eclipse”. Bis: “Wait For Her”, “Oceans Apart”, “Part Of Me Died” e “Comfortably Numb”.

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Oito coisas que muita gente não percebeu durante o show de Roger Waters

Nome da turnê

“Us + Them” , faixa de The Dark Side Of The Moon, batizou a atual turnê. A origem de expressão “nós e eles” remete a conceitos sociológicos de inclusão e exclusão. Entretanto, o nome da canção é grafado, com o sinal de adição em vez da subliminar divisão. Os versos escritos por Waters, que teve pai e avô mortos respectivamente na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, questionam quais são os verdadeiros custos de um conflito armado. Nas entrelinhas, ele diz que todos, os dois lados da oposição, tanto “nós” quanto “eles”, acabam pagando tudo isso. Parece que muita gente que estava ali no Couto Pereira, vaiando e xingando sem parar o artista, nunca compreendeu e nem compreenderá tal questão.

Battersea Power Station

Se na turnê anterior Waters fazia referências visuais a The Wall, Animals, álbum lançado em 1977, que critica a decadência sócio-econômica do Reino Unido durante os anos 1970, foi a bola da vez para ter sua capa parcialmente produzida no palco de Us + Them. As quatro chaminés da Battersea Power Station (Estação Termoelétrica de Battersea, situada ao lado do Rio Tâmisa, ao sul de Londres, construída nos anos 1930 com um design grandioso e para demonstrar poder, transformada hoje em um complexo de lojas, restaurantes, escritórios, apartamentos e um grande espaço público interno ao ar livre) subiram lentamente por trás do telão logo ao início de Dogs, para soltar fumaça (poluição) sem parar. Ao mesmo tempo, um porco inflável passou a voar entre as duas primeiras. Este disco, com letras politicamente mais incisivas inspiradas nonos animais do livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell,marcou também a tomada integral do controle artístico da banda por Waters, que antes dividia a condição de líder do Pink Floyd com o guitarrista Dave Gilmour.

Banda de apoio

Durante a turnê brasileira muito se falou a respeito do guitarrista californiano Jonathan Wilson, que assumiu os vocais principais em algumas músicas, fazendo as vezes de David Gilmour ao microfone. Durante o show, muitas palmas foram dadas ao saxofonista escocês Ian Ritchie, que solava e passeava pela lateral do palco. Só que havia mais gente não menos talentosa acompanhando o ex-Pink Floyd. Na bateria estava Joey Waronker, músico revelado por Beck nos anos 1990 e que já tocou com R.E.M. e Elliott Smith, além de integrar a banda Atoms For Peace ao lado de Thom Yorke (Radiohead) e Nigel Godrich (que já produziu discos de Radiohead, U2, Paul McCartney e R.E.M., além do próprio Is This The Life We Really Want?, de Waters). A poderosa dupla feminina de backing vocals era formada por Jess Wolfe e Holly Laessig, mais conhecida por formar a linha de frente da banda indie Lucius, formada no Brooklyn nova-iorquino e hoje residente em Los Angeles e com quatro cultuados álbuns na discografia.

Psicodelia visual vintage

Muita gente mais nova pode não ter se tocado mas o vídeo que rolava no telão durante a execução de “Welcome To The Machine” (faixa do álbum Wish You Were Here, de 1975, que fala sobre a dominação das pessoas através do “sistema”) era o mesmo criado por Gerald Scarfe em 1977 para a turnê In The Flesh, do Pink Floyd. A história começa com um gigantesco e robótico axolotl se rastejando em um cenário pós-apocalíptico. Depois aparecem ratos, chaminés, cadáveres, muito sangue e uma torre monolítica surgindo em meio a um deserto estéril. Esta torre se transforma em um monstro que decepa um ser humano. O sangue dele se transforma em milhares de mãos e apenas um edifício sobrevive à multidão até voar, ao final da música, para bem longe, acima das nuvens até se encaixar em uma estrutura flutuante de forma oval. O ilustrador e cartunista inglês Gerald Scarfe é um parceiro de longa data de Roger Waters. Além do vídeo em animação para a música “Welcome To The Machine”, ele também assinou a concepção da arte do disco The Wall e de suas subsequentes turnê e adaptação cinematográfica.

Resist Mark Zuckerberg

A primeira das dezenas de mensagens de resistência mostradas pelo telao durante o intervalo foi para resistir a Mark Zuckerberg, dono do Facebook. Waters fez oito shows por sete capitais brasileiras entre os dias 10 e 30 de outubro. Portanto, viveu in loco todo o clima quente das eleições presidenciais e acompanhou de perto uma acusação, ainda a ser julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral, de que a campanha vencedora teve favorecimento ilegal por caixa 2 que teria possibilitado o disparo, pelo WhatsApp de mensagens com fake news em massa por todo o país. Vale lembrar que o Facebook (e por consequência Zuckerberg) também é dono de aplicativos como o WhatsApp e o Instagram.

Goethe apud Waters

Após a retomada da segunda parte, uma famosa frase do escritor, poeta e dramaturgo alemão Goethe foi rapidamente mostrada na lateral direita do gigantesco telão que se estendia de um lado ao outro do estádio do Coritiba. Ela diz que “ninguém é mais irremediavelmente escravizado do que aqueles que falsamente acreditam que são livres”. A mesma frase foi utilizada pela banda holandesa de metal Epica na letra da canção “Resign To Surrender”.

Orwell apud Waters

Assim como fez com Goethe, Roger Waters também fez questão de enfatizar outra frase impactante de George Orwell. No livro A Revolução dos Bichos, o autor britânico afirma, com muita ironia, que “todos os animais são mais iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Isso foi mostrado no telão durante a suíte formada por “Dogs” e “Pigs”. Caiu como uma luva na terra que deu início à Operação Lava-Jato, onde alguns “animais” parecem ser muito mais iguais que outros.

Comfortably Numb

No enredo de The Wall, a musica ilustra a parte em que o rockstar Pink, depois de ser abatido pela depressão, precisa de medicamentos para conseguir fazer um show e, então. passa a ter alucinações no palco que fazem-no acreditar ser um ditador fascista. O refrão diz assim: “Não há dor, você está recuando/ Um navio distante solta fumaça no horizonte/ Você só está chegando através das ondas/ Seus lábios se movem, mas não consigo ouvir o que você está dizendo/ Quando eu era criança, tive febre/ Minhas mãos pareciam apenas dois balões/ Agora eu tenho esse sentimento mais uma vez/ Eu não posso explicar, você não entenderia/ Não é assim que eu sou/ Eu me tornei confortavelmente entorpecido”. Metáfora maior para ilustrar tudo o que aconteceu antes, durante o show de Waters, e neste momento todo das eleições nacionais não há. Então, muita gente saiu ali do Couto Pereira confortavelmente torpe para ir de volta de casa. A pergunta passou a ser: até quando estes medicamentos continuarão fazendo efeito? (ARS)

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Music

Pato Fu – ao vivo

Música de Brinquedo 2 chega aos palcos com hits “nada infantis” nas vozes de Genival Lacerda, Maria Alcina, Jane & Herondy e Eduardo Dussek

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Texto por Abonico R, Smith

Foto de Priscila Oliveira (CWB Live)

Se existe uma expressão que norteou o rock nas suas duas primeiras décadas de vida ela era “se permitir”. Sem regras para serem seguidas (pelo contrário até, o que valia era quebrar tabus e questionar dogmas) e provocando a sensação de liberdade até então não vivida diante da sociedade rígida e controladora, os artistas metiam sem medo o pé na porta do preconceito. Procuravam viver tudo que havia para viver. Até que, em meados dos anos 1970, veio a explosão do superascendente mercado fonográfico e sua consequente derrocada para o corporativismo representado pelo executivo de marketing e sua obsessão em equiparar melodias a cifrões. E assim, amarrado e sufocado, viveu o meio musical até recentemente, quando a internet chegou com tudo para bagunçar o coreto.

E onde se encaixa o Pato Fu no meio disto tudo? O que ele tem a ver com toda essa aparente viagem sintetizada pela trajetória do mercado fonográfico na segunda metade do século passado? Simples. O grupo mineiro sempre teve a sábia noção de que o “se permitir” é a mola-mestra para a sobrevivência a longo prazo. Ritmos e estilos vêm e vão. O crescimento quase sempre induz a certos diálogos para a adaptação ao sistema. Portanto procurar fugir das normas, dos padrões, das convenções e do estabilishment é a grande receita para perdurar sem o risco de cair em armadilhas do tempo e do espaço. Fechar olhos e ouvidos para as interferências do meio e focar a mente para percorrer um caminho próprio, independente de tudo e todos. Foi isso que o Radiohead fez neste mesmo período: transformou-se no gigante que caminha muito bem obrigado sem a ajuda de ninguém (a ponto de dar o xeque-mate na indústria perguntando na internet “quanto vale pagar pelo meu disco?”). Foi isso o que o Pato Fu, de uma maneira semelhante, também fez aqui no Brasil.

Os Fus sempre traçaram o seu próprio caminho, indepentemente das ações da gravadora a que pertenciam até a virada deste século. Nunca se fixaram a fórmulas recentes de sucesso no mercado do rock nacional (mistura com música regional brasileira, letras metidas a engraçadas, guitarras hardcore e vocais berrados). Também estabeleceram desde o início uma bela proposta autoral, a de nunca se repetir – leia-se fazer um disco com sonoridades próximas aos anteriores. E, o que é melhor, nunca sequer manifestaram o interesse de deixar sua Belo Horizonte natal para “tentar a vida” no tal do superestimado eixo Rio-São Paulo. Por tudo isso angariaram um amplo contingente de fãs de ultrapassa qualquer barreira de tribos urbanas e não segue qualquer linha de códigos visuais e comportamentais. Por tudo isso se deram ao luxo de já há alguns anos lançar os últimos trabalhos por conta própria, pelo selo autogerido Rotomusic, sempre tendo o auxílio poderoso de ações realizadas no universo online.

Eis que em 2010 a banda chegou ao seu passo mais ousado em Música de Brinquedo. O Pato Fu criou no estúdio montado na residência da vocalista FernandaTakai e do guitarrista-produtor John Ulhoa um álbum todo especial. Por conta de todo o clima familiar motivado desde o nascimento da filha Nina, em 2004, uma ideia veio junto com todo o envolvimento de Nina com a paixão e a profissão dos pais. “E se…? O Pato Fu sempre levou a sério essa pergunta e sempre pagou pra ver. Dessa vez a pergunta foi: e se gravássemos um disco inteiro só usando instrumentos de brinquedo? Não um disco de música infantil, mas um disco de música ‘normal’ filtrada por essa sonoridade”, escreveu John no site da banda, na época, para justificar de onde veio a ideia. “No entanto, desde o Daqui Pro Futuro (álbum de 2007) começamos a flertar com sons de caixinhas de música, realejos, pianos de brinquedo… Em algumas de minhas produções recentes usei muitos desses instrumentos, muitos comprados como presente à nossa filha, mas que acabavam invariavelmente na frente de um microfone na sala de gravação do estúdio que temos em casa”. Então, miniaturas (como os micro baixo e bateria, tocados de verdade pelo então baterista Xande Tamietti e Ricardo Koctus), tecladinhos casio e bugigangas que produzem os mais diversos tipos de som e barulho acabaram reunidas para dar forma a Música de Brinquedo.

O resultado foi um sucesso. O disco foi bastante comentado e rendeu um show com sete músicos no palco mais a presença de bonecos manipulados pelo grupo Giramundo. A turnê, extensa, parecia não acabar mais. Até que veio Música de Brinquedo 2, mais um disco, mais um show nos mesmos moldes do anterior e, previsto para 2019, mais um projeto audiovisual. Novas onze músicas, sucessos pop do passado e do presente, acabaram vertidas para o formato de instrumentos mirins ou inusitados (como apitos inseridos em frangos e pintos de borracha ou tubos de PVC “afinados” em diversas notas). E mais um repertório estrambólico foi montado, com resgates de pérolas de Eduardo Dussek (“Rock da Cachorra”), Maria Alcina (“Kid Cavaquinho”), Rita Pavone (“Datemi Un Martello”), Genival Lacerda (“Severina Xique Xique”), Jane & Herondy (“Não Se Vá”) e Raimundos (“I Saw You Saying”). Letras em inglês nada infantis, como “Every Breath You Take”, do Police, ou “Private Idaho”, do B-52’s, também compõem a graça do projeto. Tudo sempre respeitando o arranjo original, apenas transpondo notas, riffs, backings e batidas para a sonoridade “de brinquedo”.

Neste novo show, os bonecos monstrinhos Ziglo e Groco voltaram aos palcos para substituir os vocais infantis do disco e protagonizar novos esquetes de diálogos entre as músicas. Engrossando o set list, destaques do primeiro Música de Brinquedo (“Live And Let Die”, “Sonífera Ilha”, “Ovelha Negra”), hits cheios de fofura do próprio grupo (“Depois”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”) e ainda um dos temas instrumentais mais populares do mundo dos games (da franquia Super Marios Bros). As crianças – como o que se viu no início da noite do último sábado, 20 de novembro, no Teatro Guaíra, em Curitiba – aprovaram e já saíram dançando e cantando tudo junto com a banda. Pais e parentes que as acompanham, fãs do Pato Fu desde os primeiros álbuns lançados pela banda nos anos 1990, também seguiram os pequenos na cantoria. E todo mundo se diverte. Até na hora em que o improviso toma conta na hora dos diálogos entre a banda quando um erro acidental acontece.

O projeto Música de Brinquedo pode não ser de músicas autorais de John Ulhoa (guitarra e vocais), Ricardo Koctus (baixo e vocais) e Fernanda Takai (violão e vocais), o mesmo trio que começou a banda lá no já longínquo ano de 1992. Mas não deixa de ser uma bela mostra como a criatividade e os desafios pessoais podem andar de braços dados para quem quiser enxergar um pouquinho mais à frente da zona de conforto, do óbvio, do estabelecido. Basta não ter medo de si próprio e, sobretudo, “se permitir”.

Set list: “Palco”, “Livin’ La Vida Loca”, “Kid Cavaquinho”, “I Saw You Saying (That You Say That You Saw)”, “Rock da Cachorra”, “Datemi Un Maretllo”, “Private Idaho”, “Severina Xique Xique”, “Depois”, “Ovelha Negra”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”, “Every Breath You Take” e “Sonífera Ilha”. Bis: “Super Mario Bros Theme”, “Não Se Vá (Tu T’en Vas)” e “Live And Let Die”.

Music

Against Me! – ao vivo

Extenso set list e um largo sorriso estampado no rosto de Laura Jane Grace marcam a estreia da banda em solo brasileiro

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Ela não entendia muita coisa do que a plateia gritava em português ao final de quase todas as músicas que a banda tocava, mas captou a mensagem e também mandou o seu recado, ao microfone, contra a nova onda de fascismo que varre o mundo, em especial o Brasil nos dias atuais. Foi o que bastou para o salão de shows do Jokers, lotado, explodir em êxtase já quase no final do show. Era a coroação de uma noite de glórias, tão esperada havia anos por muitos fãs brasileiros.

Naquela noite de 19 de outubro de 2018 estreavam, tardiamente, Laura Jane Grace e seu Against Me! em solo brasileiro. Depois de mais de vinte anos da formação da banda e do lançamento de sete álbuns, o quarteto, enfim, realizava em Curitiba seu primeiro show no país, abrindo uma turnê brasileira que incluiria passagens em outras duas capitais (São Paulo e Natal) e marcava também o lançamento da edição nacional de sua autobiografia Tranny – Confissões da Anarquista Mais Infame e Vendida do Punk Rock. E claro que tudo isso seria uma noite bastante politizada.

O Against Me! transformou-se em sinônimo de banda política com o passar dessas duas últimas décadas. Não a política partidária ou econômica. Mas a política das coisas pequenas e cotidianas, do comportamento, da sexualidade, do rock’n’roll, do contestamento ao que já está estabelecido. Por isso, Laura Jane Grace é tão reverenciada. Seja pelas letras repletas de sarcasmo e ironia, incluindo um certo tom jocoso de autodepreciação – que sempre funciona para captar a identificação do público. Seja pelas melodias pegajosas, que ajudam a grudar as suas letras no cérebro e fazem todo mundo cantar junto com ela a hora que for. Seja pela questão de gênero, que envolve uma recente transição sexual. Seja pelas atitudes fora dos palcos, que colocam-na como uma das grandes expoentes da música LGBT mundial. Por isso, a turma do #EleNão entoava gritos contra um certo capitão. Aquela noite também era de protesto.

A celebração ficou por contato do extenso repertório, elaborada especialmente pela banda para sanar a sua ausência até então dos palcos brasileiros. Talvez por isso tenha havido a opção de resgatar, de modo equilibrado, as três distintas fases do Against Me!. Das 26 músicas pinçadas para o set list da noite no Jokers, quase metade representavam os três primeiros álbuns, lançados entre 2002 e 2005, quando a banda iniciava seus passos no circuito do punk rock americano com canções mais juvenis, urgentes, diretas e barulhentas. Da fase que representou o período de contrato por uma grande gravadora (com dois álbuns produzidos por Butch Vig entre 2007 e 2010, singles nas paradas de sucesso, números musicais em cultuados programas de entrevistas e humor na TV, presença no topo das listas dos melhores discos do ano), um belo recheio de sete músicas. Da fase em que Tom Gabel deixou de existir para dar lugar a Laura Jane Grace (mais dois discos entre 2014 e 2016, sendo o primeiro o essencial Transgender Dysphoria Blues, no qual o conceito é justamente a disforia de identidade de gênero da vocalista), outras sete. Então fã nenhum pode sair reclamando. Teve para todos os gostos, teve para todas as fases.

Um show do quarteto também significa que as músicas falam por elas mesmas. Daí a opção de Laura por falar bem pouco entre as canções. Era uma pancadaria atrás da outra. Quase sem interrupção, com uma banda afiadíssima, contando com o esperado retorno do baixista Andrew Seward, que passou os últimos cinco anos tocando outros negócios, e o novo baterista Atom Willard, nome experiente do rock alternativo, que encaixou-se como uma luva na engrenagem motora do ritmo do Against Me!.

Então, por quase duas horas, a plateia curitibana foi levada à loucura. Do início arrasador (com a dobradinha “FuckMyLife666” e “Transgender Dysphoria Blues”) ao final do set, com uma série de clássicos enfileirados (“I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”) foi um festival de punhos erguidos no ar, coro em uníssono durante todas as letras e stage divings celebradíssimos – em especial o de uma garota de apenas dez anos de idade, fanática pela banda e levada pelos pais também fãs assumidos. Ainda deu tempo para um bis longo fuçar o repertório da primeira fase do grupo e entregar canções não tão óbvias como um presente especial para quem esperou por tanto tempo.

Na letra de “True Trans Soul Rebel”, Laura pergunta se Deus abençoaria seu coração transexual. Deus é amor, alegria e energia. E ele, com certeza, estava presente junto aquelas pessoas que se espremiam cantando tudo em alto e bom som no Jokers. Um belo e largo sorriso, estampado em seu rosto frequentemente coberto pelos longos cabelos, entregava o estado de espírito da vocalista. Uma verdadeira alma trans rebelde. Rebelde e muito feliz no Brasil.

Set list: “FuckMyLife666”, “Transgender Dysphoria Blues”, “Pints Of Guinness Make You Strong”, “Cliché Guevara”, “Rice And Bread”, “Pretty Girls (The Mover)”, “Miami”, “From Her Lips To God’s Ears (The Energizer)”, “New Wave”, “Piss And Vinegar”, “Ache With Me”, “Haunting, Haunted, Haunts”, “Walking Is Still Honest”, “Those Anarcho Punks Are Mysterious…”, “Animal”, “Americans Abroad”, “I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”. Bis: “Joy”, “Baby, I’m An Antichrist!”, “We Laugh At Danger (And Break All The Rules)” e “Sink, Florida, Sink”.

Music

Criolo convida Nelson Sargento – ao vivo

Celebração, protesto e muita reverência marcam a fria noite em que a Ópera de Arame se transforma na casa do samba em Curitiba

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Um show de Criolo é sempre mais do que um show. Mesmo quando ele se desnuda do lado rapper e engata um repertório de samba. Mesmo quando ele faz um downsizing na banda de apoio e sobe ao palco acompanhado de apenas três músicos (cavaco, percussão e violão de sete cordas). Mesmo quando ele convida um dos maiores nomes da música brasileira e faz uma solene reverência a ele, inclusive reservando metade do set list para ouvi-lo cantar alguns dos grandes clássicos compostos por ele e amigos de rodas de décadas e décadas atrás.

E foi tudo isso o que aconteceu na Ópera de Arame no último dia 14 de outubro. De volta a Curitiba para uma versão pocket da turnê do mais recente disco, Espiral de Ilusão, Criolo chamou Nelson Sargento para dividir o palco e fazer de uma noite fria e chuvosa na capital paranaense uma calorosa noite de celebração, resistência e protesto. O público lá presente sabe muito bem que Criolo é o seu pastor e, com ele, nada lhes faltará. Sua fala é sempre mansa. O tom da voz, baixo e calmo. De sua boca saem palavras de conforto, carinho e amor, nunca de guerra, violência ou ódio. Mesmo quando o momento é de apreensão ou desespero.

Para uma plateia majoritariamente composta pela turma do #EleNão e que sabia de cor todas as letras dele, o artista estava mais do que em casa. “La Vem Você” foi o abre-alas para uma grande sequência de uníssonos entoando versos que parecem simples e quererem dizer uma coisa, mas que se você analisar bem notará que servem como uma boa metáfora para as duras entrelinhas da vida. Servem como exemplo disso a faixa-título do álbum (“Como você dorme com isso? Com você dorme tranquilo?”), “Boca Fofa” (“Boca fofa é uma tendência assim tão global/ Quando um nào tem verdade boca fofa é fenomenal”), “Hora da Decisão” (“O tempo fechou na favela/ É fera engolindo fera/ Quem não tem proceder já era/ Quero ver uem vai ter coragem/ Ou peito pra interferir/ Se a falange do mal tá pronta/ E a paz teve que sair”) e, claro, “Menino Mimado” ( “Eu não quero viver assim, mastigar desilusão/ Este abismo social requer atençãoo/ Foco, força efé, já falou meu irmão/ Meninos mimados não podem reger a nação”. Como ponte entre uma canção e outra, muita troca de energia entre plateia e artista mais preces a respeito de fé, crianças, professores e guerra. No final, uma canção mais antiga, “Fermento Pra Massa”, sobre greve do transporte coletivo e o reflexo caótico que um movimento como este provoca na grande metrópole.

Para a segunda parte foi reservada toda a majestade do samba clássico dos morros cariocas. Os gritos fervorosos de #EleNão puderam se emudecer para que entrassem emoção, choro e muita entrega. Até uma bandeira da Estação Primeira de Mangueira surgiu do meio da plateia e foi solenemente levada até Criolo, que a estendeu com as mãos por trás de seu convidado, sentado na cadeira de seu praticável sem perder o bom humor e a humildade de agradecer ao rapper paulistano pela oportunidade de estar em Curitiba por mais uma vez e pela experiência enriquecedora de cantarem juntos.

Estavam todos diante de Nelson Sargento, 94 anos de samba “de raiz” correndo pelas veias e pura sabedoria na hora de discursar (“faça exatamente o inverso do contrário”). E compor também, como é o caso de “Falso Amor Sincero” (“O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama e eu finjo que acredito/ O nosso falso amor é tão sincero/ Isso me faz bem feliz. Ela faz tudo que eu quero/ Eu faço tudo o que ela diz/ Aqueles que se amam de verdade/ Invejam a nossa felicidade”), “Agoniza Mas Não Morre” (“Samba, inocente, pé-no-chão/ A fidalguia do salão/ Te abraçou, te envolveu/ Mudaram toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ E você nem percebeu”) e “Sinfonia Imortal” (“Quando o amor desafina/ As notas que predominam/ Saudade e desilusão/ Mas se o maestro é de fato/ Põe na pauta um pizzicato/ Resolve a situação/ O que eu desejo afinal/ É fazer das nossas vidas/ Uma sinfonia Imortal”).

Do parceiro e amigo Cartola – com quem dividiu a autoria de “Sinfonia Imortal”, mandou também “Alvorada no Morro” e as indispensáveis “As Rosas Não Falam” e “O Mundo é um Moinho”. De Nelson Cavaquinho, entoou a também não menos clássica “Folhas Secas”. E tudo, enfim, terminou com “A Voz do Morro”, de Zé Keti mas que pode ser emprestada para ser usada como biografia dos maiores bambas do samba carioca.

Nelson Sargento também é o samba, a voz do morro, o rei dos terreiros. Ele e seu discípulo Criolo fecharam o show com os versos, hoje bastante necessários, que finalizam esta canção (“Mais um samba, queremos samba/ Quem está pedindo é a voz do povo de um país/ Pelo samba, vamos cantando/ É pra melodia de um Brasil feliz”). Com os olhos marejados de lágrimas o público se despediu dos dois artistas. Criolo ainda retornou brevemente ao palco para bisar brevemente o recado de “Menino Mimado” e incendiar mais um coro de #EleNão. Pelo menos, naquela noite de domingo, todos os corações voltaram mais aquecidos e confortados para casa.

Set list: Parte 1: “La Vem Você”, “Boca Fofa”, “Dilúvio de Solidão”, “Menino Mimado”, “Filha do Maneco, “Espiral de Ilusão”, “Hora da Decisão”, “Nas Águas” e “Fermento Pra Massa”. Parte 2: “Falso Amor Sincero”, “Alvorada no Morro”, “Sinfonia Imortal”, “Agoniza Mas Não Morre”. “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Folhas Secas” e “A Voz do Morro”. Bis: “Menino Minado”.