Books, Movies

Ficção Americana

Escritor, professor e intelectual se vê confrontado pela realidade macabra da fetichização de estereótipos do negro na literatura dos EUA

Texto por Tais Zago

Foto: Amazon Prime/Divulgação  

Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright) é um intelectual, professor e escritor. Vindo de família com recursos, ele obteve a melhor criação e educação acadêmica. Porém, todos os livros que publica não lhe geram renda, não recebem muita atenção e são confinados às prateleiras escondidas das livrarias. Monk vive frustrado com a pouca repercussão de seu dedicado trabalho e isso o faz estar sempre de mau humor e ruminando ressentimentos contra o mundo literário estadunidense. Um belo dia, ao assistir à um sarau em uma livraria, ele descobre o que “faz de errado”. A escritora em questão, Sintara Golden (Issa Rae), escreve sobre as dificuldades de mulheres pretas na sociedade e suas histórias de tristeza e superação. 

Ellison se dá conta, nesse momento, que está preso na estrutura dos editores, vendedores e leitores, que procuram em obras de autores negros apenas histórias que mostram pobreza, crime e dificuldades familiares. A repulsa de Monk é tão grande que ele decide tirar um tempo da vida acadêmica e visitar a família, a qual não via há mais de dez anos. Logo ao chegar é devastado por duas tragédias que o levam a precisar urgentemente de dinheiro. Em uma noite, regada a muito álcool, escreve os primeiros capítulos de um livro, onde oferece, de forma irônica e ácida, o que imagina que o público espere dele – um homem negro do gueto mergulhado no mundo do crime – e submete o resultado, em tom de brincadeira e sob pseudônimo, ao seu agente literário. Qual não é a sua surpresa quando a maior editora do ramo resolve publicar sua obra e pagar antecipadamente para tanto. Estimulado pelo seu empresário e por um desejo quase masoquista de ver até onde vai o racismo velado e institucional dos EUA, o professor leva a sua “brincadeira” adiante. Cria um pseudônimo e uma persona para o autor do dito livro – um fugitivo, procurado pela polícia e que se esconde de entrevistas e de aparições públicas.

Ficção Americana (American Fiction, EUA, 2023 – Amazon Prime) é dirigido e roteirizado por Cord Jefferson, que adaptou para as telas o livro Erasure (2001) do escritor Percival Everett. Mais conhecido por séries como Watchmen e Master Of None, Jefferson não poupa em humor e critica social ao mostrar a hipocrisia da branquitude no universo literário. Toda hora sentimos uma vergonha alheia (ou pessoal mesmo) das atitudes dos personagens caucasianos em cena. Temos um espelho diante de nós e do pseudo “bom branco” que mimetiza uma preocupação dita legitima com povos oprimidos, mas que no final está apenas em busca de blaxploitation como uma forma de representação de um sadismo profundamente enraizado e de um complexo de herói a ser alimentado com histórias trágicas. 

O premiado e sensacional Jeffrey Wright espreme com sua atuação até a última gota a hipocrisia e o comportamento artificial de mercado (e público) em forma de falsa condescendência. Sua atuação é lacônica, precisa e pontual e até por isso – e pelo contraste com os personagens ao seu redor – é hilária, muitas vezes absurda e comovente. Monk tem seus problemas familiares. São dramas de uma família de classe média alta, composta por médicos e intelectuais. A irmã Lisa Ellison (Tracee Ellis Ross) é responsável por quebrar, logo no início, a pose sisuda de Monk, com piadas e reminiscências de infância. O irmão Clifford “Cliff” Ellison (o excelente Sterling K. Brown, de This Is Us), no meio de uma crise de meia idade e descoberta da orientação sexual, é responsável por algumas das interações mais engraçadas mas também mais comoventes da trama. A química entre os atores é um ponto alto do filme: Wright, Brown e a namorada de Monk, Coraline (Erika Alexander), é a força-motriz da trama.

Em uma das cenas mais simbólicas, uma jurada branca de um prêmio literário afirma, com uma falsa comoção na voz, em meio a uma reunião do grupo de jurados que “deveríamos estar ouvindo às vozes negras nesse momento”, ao mesmo tempo em que ela ignora completamente a avaliação dos colegas jurados pretos presentes na sala. Indicado a cinco categorias do Oscar, Ficção Americana é repleto de momentos assim, onde o discurso não corrobora as atitudes no mundo real, e abre uma enorme discussão, muito necessária, sobre hipocrisia e o racismo velado que parece sempre descobrir novas formas de se manifestar na sociedade. O que deveríamos, entre outras tantas coisas, era exaltar obras como esta, que esfregam em nossa cara preconceitos que ainda se mantém em pleno 2024.

Music

Titãs – ao vivo

Formação clássica da banda se reúne em Curitiba para duas horas e meia de som, fúria e resgate nostálgico da juventude do passado de seus fãs

Texto por Filipe Silva

Fotos: Vitor Augusto/Divulgação

“Brasileiro é o caralho”, gritou Arnaldo Antunes, envolto em uma nuvem de barulho produzido pelos Titãs nos últimos instantes de “Lugar Nenhum”, segunda música do show da turnê Titãs Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora em Curitiba. Na imensidão monumental da Pedreira Paulo Leminski lotada, neste último dia 10 de junho, a música pareceu soar ainda mais pesada do que quando foi lançada, em 1987, no álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. O grito, quase ao final de uma música que questiona os conceitos de nacionalidade, fronteiras e patriotismo, ecoou pela pedreira como provocação a uma cidade que, nos últimos anos, transformou-se no centro político de um jeito no mínimo questionável de se considerar amor à pátria. “Nenhuma pátria me pariu”, diz a música. Frase gritada com força por todos os quatro vocalistas da banda. 

Dita por um senhor de quase 63 anos de idade, de vida confortável conquistada com próprio trabalho (na banda e em carreira solo), filho da classe média alta paulistana intelectual, pode soar algo patético. Protesto pasteurizado, como disse alguém um dia depois do show. Parece que Arnaldo não está nem aí, como diz a letra da mesma música, assim como Nando Reis, que não deixou escapar oportunidades de chamar os quatro anos de governo Bolsonaro de inferno – foi mais aplaudido do que vaiado por isso, fez o L para as câmeras que exibiam a imagem da banda nos telões do palco e disparou “esse país pirou e tá na hora da gente botar o pé de novo”. Ele meteu o nome de Bolsonaro na lista de patifes e facínoras de “Nome aos Bois”. E, sem querer, instigou parte da plateia ao coro “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”. 

Por uma excursão de 24 concertos – a tour se encerrará em Lisboa, Portugal, no dia 3 de novembro – os Titãs voltaram a ser os Titãs que durante um bom tempo foram a maior banda de rock do país. Sem Marcelo Fromer, morto em 2001, Arnaldo, Nando, Charles Gavin, Paulo Miklos, Branco Mello, Tony Bellotto e Sérgio Britto (o produtor Liminha assume no palco a guitarra de Fromer), o grupo visita boa parte da carreira, com foco nos álbuns gravados antes da saída de Antunes, em 1992, mais algumas faixas de sucesso absoluto registradas após a primeira baixa do grupo. 

Nove das 31 músicas executadas em quase duas horas e meia de show são de Cabeça Dinossauro (1986), disco que flertou com o punk e o pós-punk de Clash e Gang Of Four e botou a banda no andar de cima do rock nacional. “Estado Violência”, “Igreja”, “Polícia”, “Porrada”, “Homem Primata”, “Bichos Escrotos”, cutucadas em instituições, se não deixam de soar como revolta juvenil de garotos bem criados de 20 e poucos anos na década de 1980, transmitem também certa dose de raiva que passou a fazer sentido. É a tal da “hora de botar o pé de novo” de Nando.  

Paulo Miklos e Sérgio Britto

Se em dezembro do ano passado, os Titãs atuais – compostos por Branco, Bellotto e Britto mais Beto Lee (guitarra) e Mario Fabre (bateria) – se arrastaram no palco da mesma Pedreira durante cerca de 50 minutos de apresentação no Prime Rock Brasil Curitiba em uma apresentação constrangedora, a de 10 de junho vingou o fracasso. É como se a volta temporária de Arnaldo, Nando, Miklos e Charles revigorasse o núcleo que ainda insiste em manter o nome na ativa. 

set acústico soou protocolar. É aquela necessidade de agradar aos diversos públicos; há quem prefira baladas, pra acender aa lanternas dos celulares e cantar junto. Mas também pode ser o momento de respiro que senhores, já todos na casa dos 60, precisam pra segurar mais de duas horas na mesma energia de quando tinham 30 anos. O palco é remontado e a banda se posta no formato da gravação do Acústico MTV (1997). Alice Fromer, filha de Marcelo, foi introduzida ao público por Arnaldo. Juntos, cantaram “Toda Cor” e “Não Vou Me Adaptar”, dos dois primeiros álbuns. O público se emociona, como também se emociona ao ouvir Branco informar, rouco, que está curado de um tumor na garganta, dizer que está feliz ao estar na turnê ao lado de “amigos de uma vida toda” e cantar “Cabeça Dinossauro”, “Tô Cansado”, “32 Dentes”, “Flores” e mais os backing vocals nas outras faixas – ele ainda tocou baixo nas músicas acústicas. 

“Diversão”, que abriu a noite, “Comida”, “Miséria” e “Sonífera Ilha”, que fechou, empolgaram. “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” soou com fúria maior do que no álbum homônimo. “Eu Não Sei Fazer Música”, também cantada por Branco, foi a única de Tudo Ao Mesmo Tempo Agora, disco de 1991 que, deu o trocadilho para o subtítulo da tour (batizada Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora). Não veio nenhuma de Titanomaquia, o disco grunge, de 1993, o primeiro sem Arnaldo. Das mais pesadas, “Lugar Nenhum”, “Cabeça Dinossauro”, “Porrada” e “Bichos Escrotos” estiveram entre as melhores da noite. “Televisão” foi como uma cápsula do tempo, quando os Titãs substituíam o brega por um jeito próprio de fazer new wave.

Na área vip, as atrizes Malu Mader e Ângela Figueiredo (respectivas esposas de Tony e Branco, dançavam) registravam trechos do show com o celular e trocavam ideias com Alice Fromer (que depois de cantar, desceu do palco para ver a performance) e Ana Cristina Martinelli (mãe de Alice e viúva de Fromer). Na Pedreira, homens e mulheres acima dos 40 anos, alguns casais com filhos adolescentes, encontraram o que procuravam: duas horas e meia de um retorno à juventude, entregues com a mesma fúria dos tempos em que o rock brasileiro ainda sustentava a relevância que deixou pelo caminho nas últimas duas décadas. Nostalgia e cultura pop andam de mãos dadas. Os Titãs sabem disso.

Set list: “Diversão”, “Lugar Nenhum”, “Desordem”, “Tô Cansado”, “Igreja”, “Homem Primata”, “Estado Violência”, “O Pulso”, “Comida”, “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, “Nome Aos Bois”, “Eu Não Sei Fazer Música” e “Cabeça Dinossauro”, “Epitáfio”, “Os Cegos do Castelo”, “Pra Dizer Adeus”, “Toda Cor”, “Não Vou Me Adaptar”, “Família”, “Go Back”, “É Preciso Saber Viver”, “32 Dentes”, “Flores”, “Televisão”, “Porrada”, “Polícia”, “AA UU” e “Bichos Escrotos”. Bis: “Miséria”, “Marvin” e “Sonífera Ilha”.

Music

Lollapalooza Brasil 2022 – ao vivo

Oito motivos para celebrar o retorno do festival cantando os versos “olê olê olá! Lolla! Lolla!”

Planet Hemp

Textos por Abonico Smith

Fotos: Lolla BR/Camila Cara/Divulgação

Enfim, a música está definitivamente de volta aos palcos no Brasil. E os festivais de música também. Depois de dois anos de muito isolamento, distanciamento e congelamento de eventos artísticos provocados pela pandemia, com os números em queda e o gradativo relaxamento das regras sociais, a grade de grandes eventos pode ser retomada em 2022. No terreno da música pop, tudo começou no último final de semana, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, com os quatro palcos e três dias do Lollapalooza Brasil, que, entre 25 e 27 de março, retomou um pouco daquela programação que estava sendo esperada para 2020, mas com várias alterações sendo feitas a cada cancelamento, até mesmo nas últimas semanas com a desistência de duas bandas internacionais por conta de gente diagnosticada com a covid-19. Surpresas que se prolongaram até a véspera do domingo, com o mundo sendo pego de surpresa pela notícia da inesperada morte de Taylor Hawkins, o carismático baterista do Foo Fighters, o último dos três headliners, horas antes de um show em outro festival na Colômbia.

Mondo Bacana lista oito motivos que vão fazer você se lembrar para sempre desta edição um tanto confusa e atabalhoada mas extremamente importante para ajudar a recolocar os grandes festivais e eventos musicais no eixo em território brasileiro.

Wombats

Este trio liverpludiano de nome de marsupial australiano e carreira sólida no circuito indie rock europeu merecia ter sorte melhor em sua primeira vinda (tardia, já que a discografia aponta cinco trabalhos em 15 anos) ao Brasil. Mal havia começado seu set e do nada veio um toró danado, com muitos raios e ventos, o que forçou a organização a cancelar tudo imediatamente e evacuar palco e plateia pelo risco de acidentes próximos a instalações metálicas. Foram só cinco músicas, mas o suficiente para ver que o vocalista Matthew Murphy e seus comparsas tinham muita lenha para queimar naquela tarde de sexta-feira. Misturando guitarras e grooves e com hits poderosos como “Moving To New York” e “Techno Fan”, lá do início da carreira, estrategicamente colocados no pontapé inicial para incendiar tudo. Só que aí veio o inesperado. A chuvarada veio impiedosamente para apagar todo o fogo da banda. Pelo menos restou a suspeita de que ano que vem eles deverão estar de volta por aí para compensar o “pocket show forçado”.

Strokes

Muita gente pode achar sem sentido a escalação do Strokes como headliner de um grande festival, justificando que o quinteto nova-iorquino está longe de seu auge criativo. Pura bobagem! Se bandas como Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses vivem desembarcando aqui no Brasil com o mesmo status, porque a trupe de Julian Casablancas não poderia também? OK, as vendagens podem não ter sido tão grandiosas se comparadas a estes nomes, mas a importância e a significância para tal ponto. Afinal, ajudaram a consolidar uma nova linguagem do rock, tão suja e underground quanto seus antecessores que consolidaram o punk e o alternativo no subsolo norte-americano. E, bem, musicalmente continuam muito bons. Simples, direto ao ponto, sem firulas (até mesmo nos solos). Julian Casablancas continua cantando cinicamente desanimado, como um “tô nem aí para nada”, agarrado no pedestal, de óculos escuros e na maior pose antipopstar. Aliás o foda-se desta vez estendeu-se também à escolha do repertório. O grupo ousou ao eliminar escolhas óbvias para festivais como de hits (como “Someday” e sobretudo “Last Nite”), pegar lados B dos dois primeiros álbuns (“Under Control”, “Trying Your Luck”, “Take It Or Leave It”, “New York City Cops”) e bancar um terço do set list (cinco de quinze) com faixas do álbum mais recente, lançado logo depois do lockdown mundial provocado pelo decreto da pandemia. Gran finale da primeira noite!

Emicida

Há muito tempo que, em se tratando de peso e atitude, o rap é o novo rock aqui no Brasil. Depois de uma série de discos acachapantes, Emicida veio para este Lollapalooza disposto a provar que, sim, pelo menos em se tratando de festivais de música a revolução pode ser televisionada em nosso país. AmarElo, o show, é uma porrada na cara, um soco no estômago, um tapa do Will Smith em todos os sentidos. Banda afiada, com duas guitarras poderosas, baixista-maestro, percussão dando peso às batidas do DJ. Com versos de forte conteúdo racial, social, político e (por quê não?) de relacionamentos pessoais – a ponto de levar a um festival pop o pastor Henrique Vieira para mandar um sermão contagiante no final com “Principia”. Antes, porém, uma trinca matadora com participações especiais: Rael em “Levanta e Anda”, Drik Barbosa em “Luz” e Majur em “AmarElo”(aquela na qual o sample com o refrão gravado originalmente na voz de Belchor vira transe coletivo).

Miley Cyrus

Às vésperas de completar 30 anos de idade, a ex-Hannah Montana libertou-se de todas as amarras imagéticas que ainda poderiam estar assombrando seus trabalhos anteriores. Sonoramente, lançou-se fundo no rock, com muitas timbragens e elementos oitentistas sem abandonar a veia pop dos arranjos. Visualmente, toda de preto e cabelo platinado no melhor estilo femme fatale eternizado por Madonna também nos anos 1980. De quebra, ainda chamou a amiga Anitta ao palco para celebrar “a brasileira número um mundial do Spotify” e mandar – rebolando bastante, claro – um feat do novo hit dela “Boys Don’t Cry”. Só que nem tudo é perfeito. Para os millennials, Miley pde ser o máximo, impactante, de causar arrepios. Só que quem tem mais idade e já viu muito mais coisa no rock’n’roll sabe que tudo nao passa de um pastiche. Bem produzido mas um pastiche. Rola um déjà-vu atrás do outro, com lembranças que vão de Bon Jovi a… Madonna! Isso sem falar no amontoado de covers sem sentido (já que ela é uma headliner com carreira já longa e consolidada) que deformam Pixies (“Where Is My Mind?”), Blondie (“Heart Of Glass”) e Nancy Sinatra (“Bang Bang”). Ah, sim, teve toda a encenação do choro pela morte do grande amigo pessoal Taylor Hawkins no meio do show (quando ela cantou “Angles Like You” sentada em uma cadeira agarrada a uma bolsa de grife da qual tirou um lencinho para enxugar as lágrimas sem borrar o make). Por falar em grife, o que dizer do enorme casaco de inverno verde que ela teve de vestir e cantar por uns dois minutos usando durante a primeira música. Contratos de parceira publicitária? Muito rock’n’roll isso, né? No telão ao fundo, a frase “sell out to sell out”(em bom português, “vender-se para se vender”). Pose dez, atitude duvidosa no fim das contas. Será que é disso que o mundo necessita mesmo?

Idles

Já faz alguns anos que as terras britânicas vem exportando ao mundo uma série de novas bandas excitantes. Muitas delas, inclusive, com inspiração clara nos bons sons alternativos norte-americanos dos anos 1990. O Idles é um destes exemplos. Formado na cidade de Bristol, o quinteto vem concebendo álbuns maravilhosos em série (foram quatro desde 2017) e é nos concertos em grande escala que vem fazendo sua fama expandir ainda mais. Se a sonoridade já era brutal em pequenos espaços, quando o palco ganha proporções gigantescas – como é o caso dos festivais a céu aberto – parece que a banda também se agiganta com facilidade extrema. Aqui no Brasil, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Com um pezinho naquela mistura entre o punk rock, o hardcore e o industrial e lembrando bandas clássicas de selos como Touch and Go (de Chicago) e Alternative Tentacles (criado por Jello Biafra em San Francisco). O quinteto insano jorrou em pouco menos de uma hora treze músicas praticamente coladas uma na outra – com claro destaque para o segundo álbum, Joy As An Act Of Resistance, de onde vieram sete delas). Ao vivo, parece que cada músico dispara para um lugar separado, tanto nas notas musicais como na performance cênica individual. A somatória desta coisa toda aparentemente difusa acaba atordoando, formando um conjunto monolítico com altos graus de ironia e sarcasmo – nas danças ora patéticas ora intensas dos músicos, na verborragia cuspida pelo vocalista Joe Talbot, na pancadaria rítmica da e bateria, nas distorções e microfonias incessantes formadas por toneladas de pedais ligados ao baixo e às duas guitarras. Nunca um fim de tarde de domingo soou tão longe de ser modorrento.

Libertines

Depois do Idles, no mesmo palco principal do Lolla vieram os Libertines, atração praticamente acertada de última hora, já que duas semanas antes do festival o Jane’s Addiction cancelou a vinda por conta de casos de covid em sua equipe. E, olha, nunca uma escolha poderia ter sido tão acertada e oportuna quanto esta. Afinal, lá atrás, quando estiveram pela primeira vez no país também em um grande festival, a banda estava no seu auge mas se encontrava temporariamente sem um de seus frontmen, o guitarrista e vocalista Pete Doherty estava temporariamente afastado de suas funções em virtude de uma sentença judicial que o levou à cadeia. E Carl Bârat sem Pete é como Piu-Piu sem Frajola, Buchecha sem Claudinho. Agora, Pete e Carl ficaram lado a lado, alternando-se nos vocais no típico repertório “banda de bar” que fez a fama do quarteto lá na primeira metade dos anos 2000 – o set list contou com treze faixas extraídas dos dois primeiros e mais famosos álbuns. Com a poderosa ajuda do experiente baterista Gary Powell (que, dez anos mais velho que os dois e negro, ainda insere com extrema competência elementos de jazzblues e soul nos arranjos). Tudo bem que a idade já começa a pesar nos ombros. Com 43 anos de idade, não são mais aqueles likely lads que promoviam performances anárquicas em pequenos palcos nas gigs em Londres e arredores. Pelo menos estão vivos e esperneando, sempre prontos para mandar clássicos do indie rock do século 21 como “What Became Of The Likely Lads”, “What Katie Did”, “Boys In The Band”, “Time For Heroes” e “Can’t Stand Me Now”. Sorte nossa, mesmo que muita gente mais jovem que estava in loco no Lolla não tenha dado a mínima por achar que rock é o que menos importa na música de um festival.

Mano Brown

O rap é o novo rock

Perto da meia-noite de sexta para sábado (horário de Brasília) chega a notícia bombástica: horas antes de se apresentar em um festival na Colômbia, o baterista do Foo Fighters Taylor Hawkins morre no hotel. Mais um problema – e que problemão – de última hora para a escalação do festival: como resolver em questão de menos de dois dias a substituição da banda para encerrar a programação do palco principal no domingo? A solução estava bem perto e, de certa forma, vinda de um lado inesperado para muita gente: ela respondia por Emicida. Admirador da banda de Dave Grohl, assim como a guitarrista de sua banda, Michele Cordeiro, ele recorreu a um punhado de amigos rappers e resolveu prontamente o problema de logística: montou um show tão longo quanto, juntando um monte de artista que nas últimas três décadas ajudou a cristalizar o hip hop como um dos gêneros musicais mais populares do país. Deste jeito, o concerto improvisado – anunciado como uma homenagem a Taylor Hawkins sem, contudo, prender-se ao modelo chato de tributo de execução das principais músicas gravadas pelo homenageado – foi dividido em duas partes. Na primeira, os DJs Nyack e KL Jay deram o suporte soltando as bases para nomes como Emicida, Rael, Criolo, Bivolt, Drik Barbosa, Djonga, Ice Blue e Mano Brown mandarem algumas das principais composições de suas carreiras (…). A metralhadora verborrágica da turma revelou-se tudo aquilo que anda em falta nas bandas mais tradicionais de rock: sagacidade, rebeldia e periculosidade intelectual. Na segunda, os DJs e MCs individuais cederam o palco ao Planet Hemp, que veio do Rio de Janeiro para mostrar que a produção do festival cometeu um grande erro ao não escalá-lo. Com a banda afiadíssima e misturando hardcore, psicodelia, samba e jazz ao canto falado de Marcelo D2 e BNegão, o PH é uma das poucas bandas brasileiras de rock realmente avassaladoras ao vivo hoje em dia. Peso, contundência e, claro, aquela chama capaz de nunca se apagar. Tanto uma metade quanto a outra pode ser definida como uma oportunidade para celebrar o amor, a música e a possibilidade de se estar junto àquelas pessoas que amamos. E não bastasse esses lados A e B do novo concerto, houve ainda um “prefácio” tocante com Michele e Mônica Agena dedilhando lentamente suas guitarras e tornando “My Hero” ainda mais emocionante. No fim, depois do Planet Hemp, mais uma homenagem direta a Hawkins. O Ego Kill Talent, banda brasileira escalada para abrir a última turnê brasileira do FF em 2018, encerrou as atividades com duas músicas: uma autoral mais “Everlong”, a primeira cover tocada pelo quinteto durante toda a sua trajetória de shows. Se em um primeiro momento tudo parecia triste, perdido e arrasado para o encerramento de domingo do Lolla, depois dessa turma toda ninguém mais teve dúvida de que valeu muito a pena ter ido ao Autódromo ou ficar vendo pela TV toda aquela competente gambiarra improvisada horas antes.

#ForaBolsonaro

Sabe aquele tiro que sai pela culatra? Pois foi bem o que aconteceu neste Lollapalooza. Na sexta-feira, um fã deu a Pabllo Vittar uma bandeira com a cara e o nome de Lula e ela saiu correndo com o objeto, tremulando-o ao vento, em disparada pelo corredor que separa uma metade da outra do público. A foto saiu estampada em todos os portais de notícias. Em outro palco, a cantora galesa Marina Diamandis mandou, em alto e bom português, um “#ForaBolsonaro”. Os Strokes saíram do palco usando o microfone para falar a mesma coisa. Foi o que bastou para Jair Bolsonaro ficar nervosinho e, disfarçando sob a assinatura de seu novo partido, pedir judicialmente a reativaçãoo da censura a artistas, proibindo-os de expressar suas opiniões travestidas de, segundo suas palavras, “campanha para presidente antes do período determinado pela lei”. Só que ele pode e sempre faz isso. E o pior: o mesmo ministro do TSE Raul Araújo que endossou o pedido e faz voltar a valer a censura neste país foi aquele que, semanas antes negara pedido de retirada de outdoors irregulares fazendo campanha para Bolsonaro em uma cidade de Mato Grosso do Sul. Mas de nada adiantou esse passo rumo ao retrocesso. Depois de sábado, quando a notícia estourou pelos bastidores, foi um tal de “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” (como disse Lulu Santos ao adentrar o palco do Fresno para uma participação especial). No mesmo dia, Silva puxou o coro do incentivo para que jovens entre 16 e 18 anos (faixa etária para a qual o voto é facultativo) tirassem seu título de eleitor para poderem ir às urnas em outubro próximo. O grupo gaúcho também mandou um #ForaBolsonaro no telão. Logo depois, Gloria Groove entrou com uma blusa semelhante a um uniforme de time de futebol, tendo escrito atrás seu nome e o número 13. Emicida, tanto no sábado quanto no domingo, reforçou que o amor vale mais que o ódio e também mandou a hashtag mais famosa destes últimos quatro anos no país. Criolo não disse nada, apenas vestiu uma camiseta com a urna eletrônica na frente, mais um título de eleitor atrás. Bivolt demonstrou toda a sua insatsifação com o atual desgoverno federal no rap freestyle. Mas, claro, a maior vociferação contra a absurda ação autocrata veio de Marcelo D2. “Não, hoje #EleNão. Hoje #EleNão vai fazer a narrativa. A gente vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor. É sobre Taylor Hawkins. Sobre Chorão. Sobre Chico Science. Sobre Sabotage. Sobre Speedfreaks e Skunk.”, mandou logo ao entrar com o Planet Hemp, lembrando os nomes de amigos e ídolos já falecidos, sendo os dois últimos um ex-colaborador e um dos fundadores do PH. Aí mandou a letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”, manifesto antinarrativa de direita da Nação Zumbi. Depois emendou “Distopia”, música inédita “sobre esperança” com base jazzy que estará no disco da banda que será lançado do próximo semestre. O refrão trazia um jogo de palavras hipnótico (“Desobedeço o obedeça/ Obedeço o desobedeça”) enquanto o telão repetia outra parte da letra (“Repense Reflita Resista Recuse”). Em “Dig Dig Dig” reviveu o canto de Zumbi eternizado por Jorge Ben (“Zumbi é o Senhor das Guerras/ Zumbi é o Senhor das Demandas/ Quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda”). Antes de “queimar tudo até a últimaponta”, aproveitou para xingar diretamente Bolsonaro. Depois, lembrou que a musica “Zerovinteum”, há quase trinta anos, já falava sobre o problema das milícias no Rio de Janeiro – e ainda atestou estarem presentes sempre os assassinados Marielle e Anderson. Também levou um improvável hino do Ratos de Porão ao palco do grande festival mainstream com a cover de “Crise Geral” e antecipou a execução de “Contexto” dizedo que de nada adianta acreditar em um salvador da pátria e só fazer algo ao ir lá votar no dia da eleição. Ah, sim: não deixou de entoar a famosa musiquinha adaptando-a para homenagear o festival: “olê olê olá! Lolla, Lolla!”. Os artistas sambaram bonito em cima da cara do “é melhor Jair embora de uma vez”. Em tempo: o festival não foi notificado pela justiça porque o pedido de censura foi tão incompetente que nenhum dos dois CNPJs informados ali batiam com os responsáveis pelo evento. Em tempo 2: na segunda-feira, quando não adiantava mais nada porque tudo já acabara no domingo, Araújo suspendeu as manifestações políticas no Lolla afirmando que o texto da solicitação do PL o havia induzido a erro. A emenda ficou, de vez, pior que o soneto…