Contraste socioeconômico promove questionamentos entre ações e intenções dos personagens em vibrante história sul-coreana
Textos por Andrizy Bento e Janaina Monteiro
Fotos: Pandora Filmes/Divulgação
“É por isso que as pessoas não deveriam fazer planos. Sem plano, nada pode dar errado. E se algo sair do controle, não importa”.
Drama sul-coreano, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2019, Parasita (Gisaengchung, Coreia do Sul, 2019 – Pandora Filmes) é brilhante, surpreendente e um verdadeiro soco no estômago. O título do longa não poderia ser mais oportuno. É como parasita que uma família, cujos membros estão todos desempregados, infiltra-se na rica e abastada mansão do clã Park, lançando mão de sua sagacidade, ardis e de um impressionante dom para a vigarice. Mas, ao abordar os vínculos de dependência e dominação e a total ausência de gratidão da família Park por aqueles que os servem, o diretor Bong Joon-ho propõe um questionamento: quem são os verdadeiros parasitas nessa história?
O motorista desempregado Kim Ki-taek (Song Kang-ho) e sua esposa Choong-sook (Jang Hye-jin) vivem com seus dois filhos, Ki-woo (Choi Woo-shik) e Ki-jeong (Park So-dam), em condições precárias, em um apartamento sujo e claustrofóbico situado no subsolo de um prédio na área mais pobre de Seul. A família atravessa uma situação financeira lastimável, exercendo alguns trabalhos esporádicos a fim de pagar as contas, mas sem perspectiva de empregos efetivos. Quando o filme tem início, os integrantes da família estão se virando como podem, lutando para encontrar um lugar da casa em que possam conectar seus smartphones à rede wi-fi de algum vizinho. É então que recebem a visita de Min-hyuk (Park Seo-joon), um amigo de Ki-woo, que lhes traz um presente – uma rocha que o rapaz alega ser capaz de trazer grande fortuna e saúde para a família – e uma oportunidade irrecusável para o primogênito dos Kim: dar aulas particulares de inglês para Da-hye (Jung Ji-so), a filha de um rico empresário do ramo da tecnologia que vive em uma luxuosa mansão.
Desde o momento em que coloca os pés na residência dos Park, ele se mostra bastante entusiasmado com sua sofisticação, não escondendo o fascínio que a elegante construção, projetada por um renomado arquiteto, exerce sobre si. Munido de currículo e certificados falsos, Ki-woo não demora a conquistar a confiança da Sra. Park e se torna efetivamente o tutor de sua filha adolescente. Ao perceber que o filho caçula da família, Da-song (Jung Hyun-joon), é hiperativo e tem uma imaginação profícua, ele convence a madame Park a dar uma oportunidade de emprego para sua irmã como professora de arte do garoto, sem revelar, no entanto, o grau de parentesco que possui com ela. Ki-jeong chega à mansão se apresentando como Jessica, uma brilhante profissional, dona de um currículo invejável. Já na primeira noite, ela arma uma cilada para o motorista da família ser despedido e seu pai ocupar a função. Removendo empecilho por empecilho do caminho, resta apenas se livrar da funcionária mais antiga, que trabalha na residência desde antes de a família Park adquirir a propriedade: a governanta Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun). Aproveitando-se de uma informação revelada acidentalmente por Da-hye, eles utilizam a fraqueza da governanta contra ela mesma e, enfim, conseguem fazer com que seja despejada e substituída por Choong-sook. Desse modo, toda a família acaba empregada na mansão.
Eles mantêm a farsa, omitindo seus laços sanguíneos e reais identidades. Apesar de soar como um plano engenhoso e elaborado com minúcia, na verdade, cada integrante da família apenas se vale do senso de oportunidade perfeito. É quase orgânico como tudo ocorre; o timing é que parece estar sempre a favor deles. A primeira grande reviravolta da trama, no entanto, ocorre quando Moon-gwang retorna à mansão em uma noite em que os ex-patrões encontram-se fora, e revela que seu marido tem morado secretamente há quatro anos no porão da casa dos Park, escondendo-se de agiotas. A antiga governanta, eventualmente, acaba descobrindo a verdade sobre a família de Kim e, a partir daí, se inicia um jogo de coerção entre eles que aponta para um desfecho violento e catastrófico.
Com um roteiro bem engendrado e direção de atores cuidadosa, Parasita é bem-sucedido em todos os requisitos, tanto estéticos quanto narrativos. A cinematografia é eficiente e primorosa ao explorar a arquitetura da requintada mansão, tornando o local um personagem na história, tamanha a importância que o cenário desempenha para a trama. Versando sobre os extremos da pobreza e da riqueza e o choque resultante disso, direção de fotografia e roteiro se empenham em explorar os contrastes entre o ambiente espaçoso e ostentatório dos Park e o local claustrofóbico e humilde dos Kim, e essa compreende a simbologia elementar do longa.
Da janela de sua modesta residência, em um bairro pobre de Seul, tudo o que a família de Kim vê durante a hora do jantar são indivíduos alcoolizados que insistem em urinar bem em frente à sua casa. Já em uma noite que os Park vão acampar em comemoração ao aniversário do filho caçula, a família de Kim se apropria da mansão e desfruta de luxo e conforto – fantasiando com uma vida que não possuem, mas almejam – ao mesmo tempo em que observam a paisagem verdejante e idílica que a enorme janela da mansão lhes proporciona. A chuva, elemento que confere um efeito belo e poético para aquele momento, mais tarde traz desgraça para modesta residência dos Kim. Figura similar possui a escada na narrativa. Reparem como a família Kim está sempre descendo pelas escadas de modo a acessar os porões e mesmo a sua residência no bairro pobre, como se para simbolizar as distinções entre os altos e baixos níveis que compõem uma injusta e desigual estrutura econômica. O presente de Min-hyuk, a rocha, também agrega um valor metafórico à trama. O objeto contundente desempenha um papel fundamental no trágico clímax do filme.
O conflito entre patrões e empregados tem sido um mote bastante trabalhado no cinema atual. O tema foi tratado de maneira mais direta no brasileiro Que Horas Ela Volta?, ganhou contornos mais líricos no mexicano Roma e, agora, no sul-coreano Parasita alcança um simbolismo perfeito. As três obras citadas, apesar das abordagens distintas, carregam pontos em comum. Em todos eles, os patrões veem algo de intrusivo no comportamento daqueles a quem consideram subalternos; mostram um inegável desprezo pelas suas condições humildes; os tratam como mera mão de obra, sem nenhuma individualidade, criados apenas para obedecer cegamente às ordens de seus empregadores. Os burgueses são retratados defendendo uma estrutura vertical de classes, mas também apresentam uma inegável dependência e necessidade dos serviços daqueles a quem julgam inferiores, precisando que estes se responsabilizem com zelo e afinco pelas extensivas e ingratas tarefas domésticas, pela educação de seus filhos e condução de seus automóveis luxuosos. Desde que nunca, logicamente, transcendam os limites e invadam espaços que não lhes dizem respeito, eles são “bem-vindos”. Ao ultrapassarem essa linha, no entanto, são vistos como pragas a infestarem seu habitat. E é exatamente nesse ponto que o texto de Bong Joon-ho alcança uma consistência e brilhantismo inigualáveis, pois, no fim das contas, mais parasitários são os Park dada a forma como exploram seus empregados.
Os recursos encontrados para abordar a velha temática desigualdade social são inventivos, passando longe de qualquer discurso clichê. Impressiona o quão redondo, bem resolvido e arquitetado é o longa. A história mescla drama e thriller temperados com um humor ácido e cruel e converge para as disparidades sociais e econômicas existentes no país. Trafegando com exímia destreza e naturalidade por entre esses elementos dramáticos, Bong Joon-ho reveste sua obra de um tom preciso de denúncia e crítica social, compondo um retrato ímpar da distinção entre classes, com direito a um plot twist surpreendente no ápice da produção.
Outro dos acertos do cineasta é jamais separar seus personagens em bons e maus, em núcleos de mocinhos e vilões, evitando o fácil caminho do maniqueísmo. Os Kim podem ser vistos como vigaristas, trapaceiros, alpinistas sociais, mas não são pintados na tela como vilões ou psicopatas. Isso se estende também à família burguesa ou a ex-governanta e seu marido. Todos acreditam em sua própria verdade, carregam suas próprias convicções e visões deturpadas do mundo e da realidade que os cerca, o que acaba por justificar suas atitudes, ainda que por vias tortas.
Embora todo o elenco esteja muito bem, o destaque do cast é mesmo é Song Kang-ho como o motorista Kim Ki-taek. O ator impressiona em diversos momentos. É doloroso observar a mágoa em seu olhar ao ouvir os comentários inapropriados do Sr. Park a respeito do cheiro peculiar “de metrô” que ele e sua família possuem. A humilhação e o desejo de vingança expressos em sua face na cena da festa, que representa o clímax do filme, são tão palpáveis que não tem como se sentir indiferente.
É inteligente a escolha de Bong Joon-ho em observar o desenrolar dos eventos e as ações de seus personagens com um olhar frio, distante e até mesmo didático, quase como um voyeur durante a maior parte da projeção. Porém, em seus minutos finais, o cineasta faz questão de adentrar os sentimentos e propor um mergulho nas emoções dos personagens, garantindo um tom de maior humanidade e pessoalidade a eles, utilizando o famigerado recurso do voice over de maneira segura, astuta e quase onírica.
Apesar de refletir uma realidade sul-coreana, Parasita é universal. (AB)
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O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um dos poucos pensadores que conseguem traduzir em ideias a sociedade contemporânea, afirma que o capitalismo é um sistema parasitário: “como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento”. Por isso, não é à toa que o sul-coreano Bong Joon-Ho (Okja, Mother, Hospedeiro) tenha batizado seu novo longa de Parasita” (Gisaengchung, Coreia do Sul, 2019 – Pandora Filmes), um filme denso e complexo sobre a exploração resultante da desigualdade social e que leva ao pé da letra a luta de classes entre pobres e ricos. O pano de fundo desse embate é a Coreia do Sul, uma potência econômica e tecnológica, mas que ainda guarda o ranço do subdesenvolvimento.
Em cartaz há várias semanas no Cine Passeio, em Curitiba, Parasita é, em sua essência, um suspense com uma carga de tragicomicidade surpreendente e eloquente, que se adequa à proposta de Joon-Ho de retratar a disparidade entre classes no que ele define como um filme-escada: enquanto “o de cima sobe, o de baixo desce”. A cena do início já evidencia essa noção de hierarquia social, mostrando um cabide para varal pendurado com meias em frente à janela de um apartamento emporcalhado, cheio de tranqueira, no subsolo de uma viela. Assim vive a família de Kim Ki-taek (Song Kang-ho). Ele, os filhos e a esposa estão desempregados e sobrevivem fazendo bico, montando caixas de pizza. Vivem no submundo da existência como no porão habitado por ratos. Abaixo do nível da rua, da sociedade e de padrões éticos e morais. Da janela, é possível ver um bêbado mijando na lixeira em contraste com a água da chuva capaz de inundar em segundos toda a propriedade. Chuva que, em vez de lavar o apartamento sujo, faz eclodir o esgoto coreano e que poderia muito bem ser as entranhas de qualquer cidade de terceiro mundo. Dessa mesma janela, é possível ver a neve que congela a alma e os sonhos de um pai que sempre quis ver o filho estudar numa universidade.
No primeiro ato, o espectador é apresentado a essa família peculiar e grotesca, que caiu na pobreza por conta de falências e demissões. O filho de Ki-taek, Ki-woo (Choi Woo-shik), está preocupado em captar o sinal do wi-fi do restaurante para conseguir acessar um vídeo no YouTube: por necessidade e não entretenimento. O humor negro faz o espectador rir, mas com uma dose de melancolia. É aquele riso com culpa da tragédia alheia. E de tanto apanhar da vida, a moral dessa família se confunde com a malandragem. Para quem não tem nada a perder, a fraude e mentira se tornam algo habitual. Passar a perna em quem tem dinheiro é uma atitude condescendente, como se os ricos tivessem culpa pela pobreza alheia e fossem obrigados a pagar por isso.
A reviravolta na vida da família acontece quando Ki-woo aceita a proposta de um amigo abastado para assumir seu lugar como tutor de inglês de uma adolescente rica. Com o pretexto de visitar o amigo e oferecer a oportunidade de emprego, o rapaz lhe presenteia com uma pedra que promete trazer riqueza material. “Isso é tão metafórico”, responde Ki-woo, seu bordão ao longo do filme. A riqueza para quem não a conhece é algo assim, metafórico.
Ki-woo passa, então, a trabalhar para a família Park, uma versão às avessas da família Kim, que ocupa uma mansão modernosa projetada por um arquiteto famoso. O ritmo e os travellings de Joon-Ho mostram a opulência e a sofisticação do ambiente que contrastam com o núcleo suburbano. Ampla, sem um sinal de poeira, a fortaleza é como um museu de porcelana onde vive o casal e seus dois filhos, uma menina adolescente e um garotinho que adora brincar de índio e dar uma de cacique pra cima dos pais. Com o desenrolar da narrativa, Joon-Ho mostra que a diferença entre classes não se prende ao nível dos cifrões: que inteligência, esperteza e sagacidade não se compram com dinheiro. Que o conforto e segurança podem gerar o comodismo e alienação.
O filho de Ki-taek vai encontrando brechas para ludibriar a dona da casa a demitir todos seus criados. Pouco a pouco e com o auxilio do YouTube (por onde aprendem dicas valiosas), ele, a irmã, a mãe e o pai passam a trabalhar para a madame desempenhado funções como motorista, governanta e professora de artes do caçula. Para interpretar esses novos papéis (ou empregos), a família ensaia em conjunto, proporcionando os momentos mais hilários do filme.
E assim, do lixo ao luxo, o plano é “conquistar” a casa dos ricos, lembrando o que Jordan Peele fez em Nós. Porém, a descoberta de um bunker (construído nas casas como proteção contra uma possível ataque da Coréia do Norte) abala o plano da família invasora. No decorrer de 132 minutos, a narrativa, então, vai abrindo espaço para a questão sobre quem são de fato os parasitas: os criados que sustentam a família rica ou a família rica que depende dos criados?
Seja pela direção de fotografia excepcional (como na “cena dos líquidos”, quando os Kim tentam impedir o medindo de fazer xixi jogando um balde de água fria) ou pela edição e montagem (como na sequência em que a sinfonia de Georg Friedrich Händel é a música clássica para representar a sofisticação da família rica e atinge uma sincronia perfeita com a imagem), Parasita é esteticamente sublime, tendo arrebatado a Palma de Ouro em Cannes, o Globo de Ouro como melhor obra em língua estrangeira e levando seis indicações para o Oscar, inclusive para concorrer a filme e diretor.
No final, Joon-Ho escancara a luta entre pobres e ricos de forma cruel e sangrenta e nos leva à conclusão que, por mais que façamos planos (a representação da esperança), sempre seremos, de certa forma, prisioneiros do sistema. (JM)