Books, Movies

A Sociedade da Neve

O drama dos sobreviventes da queda de um avião uruguaio no inferno gelado da Cordilheira dos Andes no começo dos anos 1970

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Divulgação

A jornada hercúlea dos uruguaios sobreviventes desse desastre aéreo foi uma das primeiras histórias a receber simultaneamente atenção global por ter ocorrido, coincidentemente, na época em que foi lançado na atmosfera um dos primeiros satélites de transmissão mundial. Isso e a peculiaridade dos fatos envolvidos (dos 45 passageiros 29 sobreviveram à queda, mas apenas 16 foram resgatados vivos) fez a saga dos passageiros do voo fretado Air Force Fairchild 571 do Uruguai para Santiago no Chile em outubro de 1972, se tornar uma parte do folclore de quedas espetaculares na aviação e de sobrevivência em ambientes inóspitos.

A primeira dramatização da inacreditável história dos jogadores amadores de rugby do time chamado Old Christians Club foi contada em nível hollywoodiano em Alive, dirigido por Frank Marshall e lançado em 1993, tendo Ethan Hawk no papel de Nando Parrado e base no livro homônimo do jornalista inglês Piers Paul Read, de 1974. Alive tinha o foco quase que inteiramente nos fatos chocantes e violentos do acidente – e tanto livro como filme foram muito criticados por sobreviventes e familiares por se aterem apenas aos fatos externos da tragédia. No geral, os envolvidos, direta ou indiretamente, nunca ficaram satisfeitos com obras que se concentraram apenas nos fatos externos e tétricos do acidente ignorando os depoimentos das vítimas e suas histórias pessoais.

Já no caso de A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve, Espanha/Chile/Uruguai/EUA, 2023 – Netflix) foi aberto um espaço para os pensamentos das vítimas da queda do avião instigando, como nenhuma outra obra até então, discussões sobre questões morais e filosóficas que dão ao filme drama e profundidade emocional muito maior. Baseado no livro homônimo de 2009 do jornalista uruguaio Pablo Vierci (quem, por coincidência ou não, estudou junto com alguns dos passageiros do fatídico voo na infância e adolescência), A Sociedade da Neve se concentrou exatamente nisso: nas vivências dos rapazes que sobreviveram à queda do avião – mas não necessariamente às agruras das montanhas geladas. Alguns deles deixaram depoimentos em cartas antes de morrerem nos 72 dias que se seguiram enquanto permaneceram perdidos em meio aos Andes.

A história adaptada pelo diretor espanhol Juan Antonio Bayona é conhecida tanto como o milagre e a tragédia da cordilheira dos Andes. No caso, dependendo se familiares estivessem do lado dos mortos ou dos que sobreviveram. Bayona já nutria havia tempos uma fascinação pela história e admite a ter utilizado como inspiração para seu filme The Impossible, de 2012, no qual contava sobre uma família que sobreviveu ao tsunami de 2004 no sudoeste asiático. Apesar da direção espanhola, o elenco é quase que completamente formado por atores uruguaios e argentinos e a narração é feita de forma fictícia por Numa Turcatti, interpretado pelo também uruguaio Enzo Vogrincic, um sobrevivente da queda do avião mas que pereceu apenas poucos dias antes que Nando Parrado (Agustín Pardella) e Roberto Canessa (Matías Recalt) retornassem ao local das ferragens do avião com um time de resgate para buscar o restante das vítimas.

Nando e Roberto assumiram uma busca kamikaze e solitária como método desesperado para encontrar ajuda. Eles saíram do acampamento no dia 61 após o acidente e, apenas com uma barraca precária e mantimentos escassos, percorreram 60 quilômetros pelas montanhas vertiginosas até chegarem a um vale e uma planície, onde conseguiram ajuda de trabalhadores rurais da região. Era o dia 71 após o desastre, mas todos estariam a salvo somente ao final do dia seguinte, depois de uma complicada operação de resgate por helicóptero.

Bayona teve a difícil tarefa de tratar com respeito e cuidado temas espinhosos como a forma de alimentação dos sobreviventes. Fato este que mais surtiu efeito nas mídias sensacionalistas da época e foi usado muitas vezes para desumanizar os sobreviventes. Logo após o salvamento, em dezembro de 1972, foi pedido que não se revelasse o fato de terem se alimentado dos cadáveres dos mortos, por medo da reação que isso causaria nas pessoas, principalmente na Igreja Católica (da qual os jogadores de rugby eram fervorosos membros). Sem alternativa para se alimentarem diante de montanhas de pura neve, gelo e pedras, foi essencial um mecanismo de compartimentalização para que as vítimas conseguissem lidar com o fato de comer os mortos. Apenas pequenos grupos tinham a tarefa de cortar a carne e a procedência (qual corpo se tratava) foi mantida em segredo até hoje. Assim como a oferta dos moribundos de suas carnes para alimentar os que sobreviviam mais tempo. Uma amostra incrível de um pacto de solidariedade, união e amizade. Assim, sendo impossível esconder o fato dada as circunstâncias e localização do acidente, a forma de se alimentar dos sobreviventes foi considerada como extrema porém inevitável – e eles receberam o “perdão” da igreja e da população em geral.

Bayona contorna a polêmica, assim como evita um prólogo estendido sobre os passageiros do voo. Sua obra se concentra de forma intimista nos sentimentos, pensamentos e ações dos personagens durante os 72 dias de calvário pelo qual passaram e, em pequena parte, no tratamento imediato das vítimas após o resgate. É uma homenagem e um acerto de contas. Ele dá voz aos que morreram e permite um leque grande de divagações dos que sobreviveram.

As percepções dos sobreviventes de toda a experiência são muitas e mostradas de formas variadas. Alguns se apegaram à religião, outros à nobreza de atos desesperados e ao espírito de partilha. Mas também temos os que, como Pedro Algorta (Luciano Chatton) e Nando Parrado, optaram pelo ceticismo contando suas vivências de forma bem menos romantizada. Esse ponto de vista nos aproxima mais do reino animal ao qual pertencemos e que ,muitas vezes, movidos pelo superego, insistimos em ignorar. No filme vemos, mesmo que de forma mais sutil, nuances dessa visão mais concreta e menos espiritualizada, como no monologo de Arturo Nogueira (Fernando Contingiani) sobre não acreditar em uma força suprema nas sim na força real e palpável dos que estavam ali naquele momento. Pedro, diferentemente de muitos dos outros companheiros, passou a maior parte do tempo após o resgate em silêncio, sem dar palestras ou entrevistas. Abriu uma rara exceção para o livro de Vierci e deu a sua perspectiva do homem que anula o intelecto e assume o instinto de sobrevivência.

A participação das famílias das vítimas do acidente foi parte essencial à realização do filme. Isso incluiu entrevistas que auxiliaram no roteiro, e vários cameos de sobreviventes como Nando Parrado, Roberto Canessa e Carlitos Paez. Para quem já conhecia a tragédia em seus detalhes, como o fato de Carlitos ser filho do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró, o filme é um emocionante deleite. Para quem não conhecia essa espetacular história, o longa é uma perfeita introdução para ser seguida pela leitura da obra de Pablo Vierci.

Já disponível na Netflix brasileira, A Sociedade da Neve foi eleito o representante oficial da Espanha para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano e acabou ficando entre os cinco finalistas indicados para o prêmio. Confesso: tem a minha torcida!

Music

Men At Work

Oito motivos para não perder o show do grupo que ajudou a colocar o rock australiano no mapa-múndi durante o início dos anos 1980


Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

O que a Austrália tem? Canguru, bumerangue, didgeridoo, kiwi, coala, Crocodilo Dundee e… Men At Work. Sim! A banda que aterrissa novamente no Brasil neste mês de fevereiro é como se fosse uma entidade no país “continental”. Tal qual outras bandas que nasceram em terreno australiano como INXS, Midnight Oil, Bee Gees, Crowded House, Nick Cave & The Bad Seeds, Hoodoo Gurus… E o AC/DC, claro!

Com influências de reggae e sobretudo do pós-punk, o MAW atraiu a atenção do mundo e se tornou um verdadeiro fenômeno na primeira metade dos anos 1980, tendo alcançado mais de 30 milhões de discos vendidos e levado o Grammy de melhor artista novo de 1983. Entre os hits que marcam a história da banda estão “Down Under”, “Overkill”, “Who Can It Be Now?” e “Its a Mistake”. Seus clipes criativos, irreverentes e bem-humorados, fizeram muito sucesso nos anos iniciais da MTV americana.

Apesar de alcançar grande fama mundial, o MAW se separou em 1985. Colin Hay, que era o vocalista e também compositor, guitarrista e baixista, decidiu seguir carreira solo. Em 1996, a banda, como uma dupla, voltou à ativa (sem lançar material inédito), até se separar de novo seis anos depois. Greg Ham (teclados e sopros) morreu em 2012, após perder uma disputa judicial por conta de plágio. Ele fora acusado de ter se apropriado de uma canção folclórica australiana para criar o riff de “Down Under”. Portanto, da formação original sobrou apenas Hay, dono de um timbre inigualável e que agora chega em uma pequena turnê brasileira (Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo) com uma banda de apoio herdada de sua carreira solo – mais informações sobre datas, locais e ingressos você encontra clicando aqui.

Para quem pretende fazer essa viagem ao suprassumo do rock radiofônico daquele começo dos anos 1980, o Mondo Bacana lista oito motivos para não perder o show desses homens (e também duas mulheres) que estão a serviço da boa música pop.                               

Cria dos musicais da TV

Já parou para pensar em quantas bandas você costuma escutar e que vieram daAustrália? Pois é, esse país formado sobre uma gigantesca ilha na Oceania tem uma grande tradição pop, muito por conta de programas televisivos populares no estilo do Top Of The Pops, que faziam sucesso local entre os anos 1970 e 1980. Os adolescentes australianos que viveram essa época curtiam, sobretudo, as bandas britânicas – muitas delas, inclusive, chegavam a gravar vídeos exclusivos para se apresentar nesses programas. Colin Hay e Greg Ham, os cabeças do Men At Work, eram dois destes “discípulos” criados pela TV.

Pós-punk australiano 

O MAW faz parte de uma geração de bandas australianas que surgiram bebendo da fonte do punk e pós-punk norte-americano e britânico daquele finalzinho dos anos 1970. Contudo, deram uma pitada de criatividade aussie, experimentando novos sons à influência “estrangeira”. Muitas bandas da época, como Choirboys, Midnight Oil, Divinyls, Spy Vs Spy e Hoodoo Gurus foram influenciadas por grupos como Cure, Blondie, Television, Talking Heads e Joy Division. O que explica terem produzido discos de alta qualidade no decorrer dos 1980s.

Sucesso no Brasil

O MAW começou a fazer sucesso por aqui no início dos anos 1980, muito por conta dos programas esportivos da TV. E é por causa disso que o som desses grupos australianos foi classificado pelas bandas de cá como surf music. Nessa época, a TV aberta tinha uma tradição de exibir programas de esportes radicais. E, para cobrir as imagens dos surfistas e skatistas, os editores incluíam músicas de artistas australianos que estavam no topo das paradas. Só que o MAW fez tanto sucesso, mas tanto sucesso, que ainda segue aparecendo diariamente na programação de rádios de classic rock de várias capitais brasileiras

Empurrãozinho da Fluminense FM

Por falar em rádios nacionais, o Men at Work estourou no Brasil justamente por causa da Fluminense FM, que foi a grande responsável por impulsionar a carreira de nomes que desenharam o cenário rock dos anos 80 (Blitz, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Lulu Santos, Ultraje a Rigor). A emissora carioca gostava de arriscar e adotava aqueles artistas que eram uma espécie de prediletos da casa. Por isso, no dial, os ouvintes jovens podiam curtir “novidades” como Police, Dire Straits e MAW, por exemplo.  

“Down Under”

Do seu álbum de estreia (Business as Usual, lançado em 1981 na Austrália), o MAW emplacou nas paradas os singles “Who Can It Be Now?” e “Be Good Johnny”. Mas foi “Down Under” que colocou os aussies de vez na boca da galera. O disco é considerado um dos mais bem-sucedidos do rock de lá, tendo vendido mais de 6 milhões de cópias apenas nos Estados Unidos, onde ficou por 15 semanas no topo da Billboard. A expressão down under é um apelido carinhoso dado à Austrália e se tornou uma espécie de hino extraoficial do país, ao refletir o estilo de vida dos jovens locais. Só que, além do sucesso, A canção trouxe uma dor de cabeça enorme, especialmente para Greg Ham, que chegou a ser processado por ter supostamente plagiado o riff de saxofone. O caso afetou demais a banda e o próprio Ham. Ele acabou perdendo o caso na justiça, passou a ter crises severas de depressão e ansiedade e morreu logo em seguida, vítima de um infarto.  

Sensação no US Festival

Tendo como um dos produtores o próprio Stevie Wozniak, cofundador da Apple, o US Festival, organizado em setembro de 1982 em San Bernardino (Califórnia, EUA), trouxe o Men at Work como uma das atrações principais, que proporcionaram um desfile de sensações do “novo rock”da época (Clash, B-52s, Gang Of Four, Talking Heads, Police, Cars, Oingo Boingo, Ramones). A apresentação de Colin Hay (guitarra e vocais), Ron Strykert (baixo), Jerry Speiser (bateria), Greg Ham (flauta, saxofone e teclados) e John Rees (baixo e violão) foi um marco para a banda e é relembrada na série documental This is Pop, da Netflix. O US Festival trouxe o crème de la crème das bandas de new wave que estavam estouradas nas rádios americanas naquela época. O evento abriu caminho para outros festivais ao redor do mundo. Entre eles, o nosso Rock in Rio, cuja primeira edição seria realizada em janeiro de 1985. 

Estreia brasileira no Rock in Rio

Único sobrevivente da banda, Colin Hay tocou pela primeira vez no Brasil na segunda edição do Rock in Rio. Ele estava em carreira solo e, logo no primeiro dia do festival, enfrentou uma multidão de fãs no Maracanã, que também assistiram naquele 18 de janeiro de 1991 a artistas como Jimmy Cliff, Joe Cocker e o headliner Prince. Para muitos, esta foi a melhor escalação de todos os tempos do RiR. Além de Prince, vieram muitos artistas internacionais que faziam enorme sucesso na época, tanto nas rádios como na recém-inaugurada versão tupiniquim da MTV. Entre estes nomes estavam INXS, A-ha, Faith No More, George Michael, Deee-Lite, Run DMC, Billy Idol, New Kids On The Block, Happy Mondays, Information Society… e o Guns´n Roses, com Axl e Slash debutando em terras brasileiras.  Ê tempo bom de nomes chamados para esse festival

Retomada pós-pandemia

Desde que parou com o Men At Work, Hay seguiu solo e até chegou a integrar por um tempo a All Starr Band, de Ringo Starr. Até que, em 2019, às vésperas da pandemia, decidiu retomar o repertório clássico do MAW com um time de músicos de acompanhamento de palcos e estúdios de Los Angeles, bem ao esquema do que fazem muitas outras bandas famosas por aí. Agora, entre 17 e 21 de fevereiro, eles aterrissam em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba trazendo a nostalgia daquela veia pop dos anos 1980 de um aussie rock cheio de criatividade e irreverência.

Books, Movies

Pobres Criaturas

Cineasta grego Yorgos Lanthimos retoma as provocações com uma espécie de Frankenstein feminista e Emma Stone em atuação magistral

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Se alguém ainda poderia ter dúvidas sobre esse cineasta nos últimos anos, Pobres Criaturas (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2023 – Fox/Disney) chega hoje aos cinemas brasileiros confirmando o que muita gente já tinha como certeza: Yorgos Lanthimos saiu da Grécia para chegar em Hollywood para perverter e perturbar. Depois de bem-sucedidos balões de ensaio, adorados pelos fãs de um circuito mais alternativo (Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, obras lançadas entre 2009 e 2017), ele foi alçado simultaneamente à condição de cult e pop com A Favorita, em 2018. Beliscou várias indicações durante as premiações principais da temporada e levou alguns Baftas para casa. Sua protagonista, Olivia Colman, arrebanhou não só o troféu britânico como também o Globo de Ouro e o Oscar de atriz principal.

Agora ele mete de vez o pé na porta com essa adaptação do romance de Alasdair Gray como ainda vem para bagunçar mais o coreto. A obra literária do controvertido escocês já é um primor ao recriar (ou melhor, perverter) o clássico gótico Frankenstein. Trazida para as telas, então, reforça ainda mais o caráter provocativo da trama acrescentando ritmo e imagens ainda mais perturbadores.

Um renomado cientista, cheio de si e nem aí para a ética em nome de pesquisas que podem mudar o curso da humanidade, decide reviver uma jovem grávida que acabara de se matar pulando no rio Tâmisa, em Londres. Sem perder muito tempo, ele tira o cérebro do bebê que ainda estava na barriga e o implanta na moça, a quem passa a chamar de Bella e tratar como filha. Em um corpo de adulto, ela passa a viver novamente mas tendo reações tipicamente infantis. Aos poucos ela precisa reaprender tudo: falar, comer, interagir com as outras pessoas. Tudo de acordo com o que manda a sociedade vitoriana do começo do século 20, com todos os seus absurdos patriarcais e machistas.

Como nada em Lanthimos é comum, ainda mais quando apoiada na fina ironia de Gray, o público pode esperar muitas quebras de paradigmas nesta relação entre Bella (Emma Stone) e o “pai” Godwin Baxter (Willem Dafoe). Para começar, a estética humana é justamente o oposto do que todo mundo aprende ainda criança sobre Frankenstein. A criatura representa a beldade enquanto o horror físico sobra para o criador (a quem ela chamada carinhosamente pelo apelido God – “Deus” em inglês), cujo rosto é todo marcado por grandes cicatrizes. Depois, a inteligência da jovem passa não só a se desenvolver de maneira rápida, como ainda questiona de modo pontiagudo comportamentos e dogmas sociais como também age quase instantaneamente para modificar o status quo do conformismo, da manutenção das elites e da submissão feminina.

Bella volta a se tornar “jovem”, já com desejos sexuais (mas que não cabem muito bem no papel social que todo mundo espera que ela passe a representar) e o desejo de conquistar o mundo para crescer ainda mais por dentro. Ela se casa com um nojento aristocrata (o advogado Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo) e parte em uma longa viagem de navio ao redor do Mediterrâneo. Começa por Lisboa, passa pelo norte africano e acaba em Paris, onde se livra do encosto marital para provocar uma fugaz revolução trabalhando como prostituta e mandando ver em discursos feministas e políticos.

O ritmo rápido e envolvente dado pela montagem e pelo roteiro divertem o público, que se rende ao encanto e talento de Emma Stone em sua atuação durante as várias etapas e facetas de Bella. Não à toa, a atriz é considerada a favorita para levar o Oscar em sua categoria e o filme somou ao todo 11 indicações para a estatueta mais comentada da indústria do cinema, perdendo em número apenas as 13 de Oppenheimer.

Independentemente do que o filme levar para casa ou perder para a concorrência, uma coisa é certa. Seguindo o fluxo da comédia farsesca impresso de modo mais amplo em um filme seu desde A Favorita, Lanthimos se consolida de vez como um dos nomes a serem seguidos de perto pelos próximos anos. Já com o apoio e o reconhecimento de Hollywood e com apenas 50 anos de idade, ele ainda tem muita coisa para trazer às telas. E com certeza trazendo na esteira com muitas provocações, burburinhos e aplausos.

Movies, TV

Segredos de um Escândalo

Natalie Portman e Juliane Moore estrelam drama baseado em relacionamento real entre adolescente e professora bem mais velha

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Diamond/Divulgação

Com direção de Todd Haynes e roteiro de Samy Burch, Segredos de um Escândalo (May December, EUA, 2023 – Netflix/Diamond) é baseado “levemente”, segundo Haynes e Burch, na história real do envolvimento amoroso entre o garoto de 12 anos Vili Fualaau e a professora de 34 anos Mary Kay Letourneau. O caso se tornou um grande escândalo durante os anos 1990 nos EUA. Como consequência, Mary Kay acabou cumprindo sete anos de prisão por estupro de menor. Após ser solta, ela e Vili se casaram e tiveram um longo relacionamento, com duas filhas como fruto da união. Em 2020 Letourneau morreu de câncer com Fualaau, apesar de já separados, ao seu lado na cama.

Na versão ficcional o casal é formado por Gracie Atherton-Yoo (interpretada pela excelente Julianne Moore) e Joe Yoo (Charles Melton). A história polêmica do casal é requentada mais de duas décadas depois com a chegada da atriz Elizabeth (Natalie Portman) na pequena comunidade onde os dois moram com seus três filhos (Honor, Mary e Charlie). Elizabeth está obsessivamente pesquisando os desdobramentos do envolvimento do casal para o filme onde ela interpretará Gracie. No caso da trama, Gracie e Joe se conheceram no pet shop onde ambos trabalhavam. Na época, Joe tinha apenas 13 anos; Gracie tinha 36, era casada e já tinha quatro filhos. Aliás, a expressão may december – que dá o título original à obra – é utilizada na língua inglesa para rotular um relacionamento entre pessoas com uma grande diferença de idade. Não raramente de forma pejorativa.

A fascinação de Elizabeth por Gracie e Joe não parece ter limites. A atriz tranquilamente rompe as barreiras do profissionalismo e se envolve pessoalmente com o casal, o que gera atritos inevitáveis dentro do disfuncional núcleo familiar dos Yoo e dos Atherton. Feridas ainda não curadas são reabertas, e as graves consequências das escolhas de Gracie e Joe ficam bastante claras.

Haynes tenta construir uma Elizabeth sem prejulgamentos ou pré-concepções apesar do assunto deveras espinhoso. Em alguns momentos isso é alcançado, mas em outros a prudência é propositalmente deixada de lado em prol da dramatização. Portman faz o que pode com o roteiro que tem em mãos e se torna uma verdadeira equilibrista em um campo minado. Várias vezes nos questionamos sobre a frieza na coleta de material da pesquisa feita por Elizabeth. Para ela absolutamente nada é tabu. Apesar de verbalmente expressar a intenção de ter cuidado e manter respeito pelos envolvidos, Elizabeth acaba tratando seus objetos de pesquisa como cobaias em um laboratório. Como parte de um experimento científico, ela questiona as decisões de Joe no relacionamento ao mesmo tempo que tenta traçar um perfil psicológico de Gracie como uma mulher transtornada e traumatizada pelos abusos que sofreu em sua própria infância.

Esteticamente, Segredos de um Escândalo é um filme modesto. O centro aqui é o roteiro e as relações interpessoais – é um drama feito sobre medida para arrecadar premiações. O foco é o universo interior de Joe, Gracie, seus filhos e até mesmo a própria Elizabeth. O resultado é relativamente estóico, sem muita exploração profunda das emoções. Talvez fosse esse mesmo o objetivo de Haynes e Burch. Ou talvez o cuidado seja uma consequência da dificuldade moral do tema abordado. De qualquer forma, o resultado é satisfatório mas não é excepcional.

Após o lançamento do filme nos EUA, em maio do ano passado, Vili Fualaau veio a público reclamar da falta de consentimento e consulta sobre o que considera claramente ser uma versão de sua história pessoal e não apenas uma inspiração periférica de seu caso. Haynes (cultuado por obras como The Velvet Undrground, Velvet Goldmine, Carol, Sem Fôlego, Não Estou Lá) rebateu veementemente as acusações.

Apesar de ter adquirido os direitos de distribuição do filme – e o mesmo já estar disponível na versão americana da plataforma – o canal de streaming Netflix acaba de colocá-lo nos cinemas brasileiros (em parceria com a Diamond) e ainda não tem previsão para disponibilizá-lo na plataforma daqui. O objetivo, afinal, é chamar novamente a atenção do publico em época de grandes premiações norte-americanas. May December é nome cotado a candidato a troféus no Oscar 2024, após receber indicações para o Globo de Ouro – em especial a indicação ao prêmio de melhor ator coadjuvante para Charles Melton.

Comics, Movies

Turma da Mônica Jovem – Reflexos do Medo

O universo teen do Limoeiro, criado por Mauricio de Sousa para os fãs dos animes, chega aos cinemas com história de magia, mistério e suspense

Texto por Abonico Smith

Foto: Imagem Filmes/Divulgação

Se tem uma coisa da qual Mauricio de Sousa nunca pode ser acusado é a de ficar parado no tempo. Alguns anos depois de começar a desenhar tiras para jornais, ele criou e estabeleceu a Turma da Mônica como o maior sucesso editorial dos quadrinhos brasileiros. Desde os anos 1970 as histórias que giram em torno das crianças do fictício bairro do Limoeiro vendem como água e são consumidas por crianças geração após geração. As revistas já passaram por três grandes editoras (Abril, Globo e já há algum tempo estão na Panini) e viraram animação para o cinema, televisão e streaming. Também ganharam programas especiais de TV e embarcaram na tendência das versões de longas-metragens em live action.

Com um caminho já bem pavimentado e solidificado, Mônica, Cebolinha, Magali, Cascão e outros amiguinhos poderiam muito bem continuar trilhando seu caminho do jeito que sempre foram, apenas mudando uma ou outra questão nos traços que compõem visualmente cada personagem. Mas não. Inquieto e sempre antenado com as novidades, Mauricio também aceita desafios. Aos poucos, vem adicionando novos nomes, à medida do que vem pedindo uma sociedade mais inclusiva: a menina preta (Milena), a outra deficiente visual (Dorinha), a outra deficiente auditiva (Sueli), o menino cadeirante (Luca), o outro com nanismo (Bernardo),  e, mais recentemente, impôs mais duas mudanças radicais para esta turma.

Em 2013, criou uma linha de graphic novels na qual desenhistas e roteiristas oriundos do mercado independente nacional assumem as suas criações e dão, cada profissional, um toque autoral para transferir ao papel uma história em particular. Com cerca de quatro ou cinco títulos anuais, os livros da Graphic MSP levam os mágicos e históricos universos da Turma da Mônica e adjacências (Chico Bento, Tina, Horácio, Penadinho, Astronauta, Turma da Mata, Piteco, Papa-Capim) a um caminho que dialoga com o underground e fascina os adultos que, um dia, foram criados com as HQs mais tradicionais.

Cinco anos antes, marcou outro golaço ao lançar a Turma da Mônica Jovem e ver as vendas dispararem ainda mais em cifras e tiragens. Trata-se de um avanço etário dos personagens originais. Mônica e companhia agora não possuem mais oito anos, mas sim quinze, Viraram adolescentes, utilizam roupas diferentes e looks da moda, estudam no Ensino Médio. Os quadrinhos não são mais “ocidentais”. Ganharam o estilo dos animes, que desde a virada do século abocanharam uma importante fatia das vendas e preferencias dos leitores mais jovens aqui no Brasil. Passaram a vender mais que a fatia “infantil” dos títulos.

Agora chegou a vez dos adolescentes do Limoeiro ganhar as grandes telas. Terceira investida live action da MSP, Turma da Mônica Jovem – Reflexos do Medo (Brasil, 2024 – Imagem Filmes) agora transporta a turma teenager ao cinema na mesma vibe das iniciativas anteriores, com a versão “infantil”: respeitando o clima das páginas impressas, trazendo alguns dos mesmos personagens secundários (a antagonista Carminha Frufru, os professores Licurgo e Falconi, Ana Paula, Ramona, Nik Geek, as versões teen de Denise, Jeremias, Titi, Do Contra), e ainda easter eggs dos quadrinhos (edições da Graphic MSP, fantasia de Piteco, boneco do Horácio, os índios da aldeia de Papa-Capim) que fazem a festa daqueles fãs mais hardcore. Estes, aliás, não vão precisar de muitos segundos para identificar e se apaixonar pelo antigo Louco da turminha infantil – o tal professor Licurgo (Mateus Solano), que por sinal tem papel-chave no desenvolvimento da trama.

A história também aposta em muitas tonalidades de mistério, magia e suspense, abrindo novos espectros em relação ao universo da Mônica infantil. Um antigo espelho mágico, uma ordem secreta de bruxaria, uma lenda urbana que pode ser mais real do que muita gente pode imaginar, um museu que precisa ser salvo do fechamento, um novo vilão. A escolha de Mauricio Eça para a direção torna-se acertada – além de ter dirigido clipes populares na MTV Brasil dos anos 2000 (CPM 22, Pitty), ele vem de outros longas anteriores sobre o universo infanto-juvenil (os dois de Carrossel, filmes com Larissa Manoela, as várias versões sobre o crime da família Von Richtofen). Portanto, tem intimidade com o tema e ainda impõe aquele ritmo ideal para atrair a atenção do público-alvo da TMJ.

O elenco – todo renovado em relação ao núcleo principal dos longas anteriores –  também está bem à vontade. Sophia Valverde (Mônica) e Bianca Paiva (Magali) já trabalharam antes com Eça, o que facilitou bastante a química no desempenho de agora. Já Xande Valois (Cebola, não mais Cebolinha) mostra toda a segurança de quem desde 2012 trabalha seguidamente na dramaturgia televisiva. Já na parte dos adultos, Solano e Athayde Arcoverde, fazendo pai e filho, ambos professores e um mais “louco” que o outro, também garantem divertidos momentos no meio de toda a tensão da trama.

Ir ao cinema para ver uma aventura da Turma da Mônica deve ser algo para ser feito despreocupadamente, sem muitas expectativas por ousadias e esperando apenas um entretenimento (com humor e qualidade, claro). A estreia da TMJ é exatamente isso. E, como não poderia deixar de ser, ainda traz um final que deixa as portas escancaradas para uma sequência. Prova de que, definitivamente, a MSP tomou gosto pelo cinema e acertou em se aventurar nessa nova frente midiática.