Troca de videocartas entre duas diretoras brasileiras durante o primeiro ano da pandemia abre a edição deste ano do Olhar de Cinema

Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Olhar de Cinema/Divulgação
O filme de abertura da décima primeira edição do Olhar de Cinema, realizado em Curitiba, é uma contextualização muito fortuita do momento do festival e (por que não?) de uma linha editorial muito explicitamente posicionada frente ao absurdo brasileiro. Vai e Vem (Brasil, 2022) é uma troca de videocartas entre as diretoras Fernanda Pessoa e Chica Barbosa, que estavam respectivamente no Brasil e nos EUA durante o primeiro ano da pandemia de covid-19. Seus 16 curtas-metragens são a única forma de comunicação entre as duas. Cada uma deve ser inspirada em uma videoartista diferente. Ora é Barbara Hammer, ora Paula Gaitán ou Leslie Thornton.
Deste modo, esperar um filme formalmente coeso seria ingenuidade – é no exercício de troca entre as artistas e suas inspiradoras que se constrói a expressão intertextual de cada uma. Enquanto Chica carrega de uma carta a outra suas sobreposições e repetições, Fernanda se coloca em tela, em corpo ou intenção, como constante. Mesmo que a conexão entre as duas cineastas seja a proposta fílmica e o próprio holofote dado pelo festival, é um traço que começa forte mas logo se esvai. Assim, fragmento a fragmento, Vai e Vem torna-se uma troca de diários, não um efetivo diálogo. Entre constâncias e inconsistências, os exercícios correm o risco – e por vezes o concretizam – de cair num pedantismo autoindulgente e monotemático. Contudo, pela natureza de um filme-coleção, sinto que vale comentar dois momentos que me afetaram, um pela beleza, outro por um problema.
Em dado momento, ainda nas primeiras cartas, Fernanda Pessoa relata sua conexão com as Graças da Primavera de Botticelli enquanto dança, equilibra-se e movimenta-se nua em superposição a elas, também com a pele exposta. As Graças, para o esteta Aby Warburg, demonstram a retomada de um paradigma do movimento nas artes visuais clássicas, agora transpostas à Renascença. Pessoa mantém o fluxo – não somente traz o movimento mitológico à contemporaneidade, mas o relocaliza e ressignifica. O corpo é essência da arte e ela muda acompanhando a matéria.
Mas esse rico diálogo formal torna-se problemático adiante, quando Fernanda Pessoa relata sentir “emprestar” as imagens e histórias das mulheres da candidatura coletiva Juntas do PSOL paulista, para quem desenvolveu a campanha em vídeo. A aparente relação de poder de quem toma posse, mesmo que momentânea, do retrato de vida destas mulheres as retira da condição de agentes de sua própria narrativa. Destituída de poder sobre sua própria imagem. Se filmar é tomar um corpo outro para si, são flagrantes as problemáticas que daí irrompem.
O cinema de Chica, por outro lado, parece querer dizer o exato contrário ao dar voz a diferentes personagens que, assim como a diretora, são latino-americanas vivendo nos Estados Unidos – “chicanas”, de descendência mexicana, ou brasileiras. Sua estética lhes confere a agência que facilmente supõe-se retirar. O relato não é somente de Chica (e lhe é muito pessoal em diversos momentos), como também das mulheres ao seu entorno – permeado e transpassado por sua expressividade enquanto diretora, mas jamais tornado seu.
Sendo assim, Vai e Vem é um longa-metragem composto de fragmentos instigantes e cartas que falam de si para si mesmas, altos e baixos em uma conversa de cerca de um ano muito difícil e, talvez até por isso, que podem se resumir tematicamente a um ou dois assuntos. São, contudo, temáticas em voga no circuito artístico brasileiro e, principalmente com isso, ressoam tanto com a afirmação inerente ao filme de abertura de um festival.