Cinebiografia recria a trajetória meteórica da banda que em oito meses saiu do anonimato para conquistar o coração de todo o povo brasileiro
Texto por Abonico Smith
Foto: Imagem Filmes/Divulgação
No domingo 3 de março de 1996 o Brasil todo amanheceu completamente sem graça. E triste. E chocado. Era difícil acreditar que o avião que trazia os Mamonas Assassinas de Brasília, cidade que presenciara horas antes ao último show da turnê de seu primeiro disco, havia caído na Serra da Cantareira, ali bem do ladinho do aeroporto de Guarulhos, de onde o quinteto havia despontado do anonimato meses antes para conquistar o posto de banda mais famosa e disputada do país. Os nove ocupantes morreram. Eram eles o piloto, o copiloto, o tour manager, o segurança dos músicos e todos os cinco artistas. Acabara ali, da forma mais trágica possível, uma das mais fantásticas históricas de ascensão meteórica da música popular brasileira. Algo que só pode ser comparado – e ainda assim tendo superado e muito os números de popularidade, vendagem de discos e realização de concertos para as suas respectivas épocas – o que ocorrera com o Secos & Molhados entre 1973 e 1974.
Foi tudo muito, muito, muito rápido – e em um tempo em que a internet, discada e deveras demorada, ainda engatinhava por aqui. Do lançamento do álbum de estreia à noite da queda do jatinho foram apenas oito meses. Do nada, aquela desconhecida banda que apareceu com letras engraçadas e performance supreendente de palco e em entrevistas conquistou os corações do público espalhado por todo o país, não importando idade ou localização geográfica. Tocava direto, sem muitos intervalos, nas playlists das emissoras AM e FM das rádios. Seus cinco integrantes batiam ponto em absolutamente todos os programas musicias de auditório.
Na guerra televisiva em busca do ibope avantajado durante as tardes de domingo alternavam-se entre os dois maiores canais do Brasil (Globo, no programa do Faustão; SBT, no do Gugu). Uma vez que entravam em cena, dominavam todo o tempo restante, fossem necessárias quantas músicas pudessem ocupar aquele intervalo. Foi assim que o repertório se expandiu naturalmente das duas faixas inicias de trabalho para o disco cheio. Não havia um ser humano que não soubesse cantar – ou pelo menos carregasse impresso na memória – qualquer verso gravado pelos Mamonas. Não era só humor escrachado, deboche e figurino de fantasias toscas: era também simplicidade, autenticidade e a mais completa sinceridade estampada ali na pele dos artistas. Nunca uma banda de rock brasileira havia falado tão genuinamente ao coração do povo brasileiro, que se identificara rapidamente com a linguagem utilizada nas letras (sotaques, origens familiares, tiradas com questões socioeconômicas, picardias sexuais)
Mamonas Assassinas – O Filme (Brasil, 2023 – Imagem Filmes) acaba de chegar às salas de cinemas de todo o país com o objetivo de mostrar a escalada dos cinco rapazes de Guarulhos rumo não apenas ao sucesso, mas à conquista do sonho de serem, um dia, reconhecidos como músicos. Todos vindos de famílias working class, sem muitos recursos financeiros, precisando ralar firme em empregos diurnos para ajudar a pagar as contas de casa, mas que, como muitos adolescentes e jovens da geração que passou pelos anos 1980 e começo dos 1990, eram absolutamente apaixonados pelo rock.
Claro que os principais hits dos Mamonas ganham um generoso espaço na tela – alguns inclusive sendo executados mais de uma vez (tudo em regravações feitas pelo próprio elenco, diga-se de passagem) – mas o que importa aqui são os bastidores. Parentes, namoros e rolos, residências, trabalhos, confusões, desavenças, crenças: ao que o espectador mais assiste aqui é como eram Dinho (voz), Julio Rasec (teclados e voz), Bento Hinoto (guitarra) e os irmãos Samuel e Sergio Reoli (baixo e bateira) no dia a dia, inclusive na relação com o produtor que os “descobriu” e fez a ponte até a gravadora e o estrelato (Rick Bonadio, que depois produziria Charlie Brown Jr e Rouge e, neste filme, tem seu personagem batizado com outro nome por questões “dramatúrgicas”, como explicam os créditos finais). Também há destaque para a transição entre a encarnação anterior como uma banda nada engraçada (Utopia, com sonoridade mais pesada e letras muito mais sérias) à condição de assumir a personalidade artística do mais puro escracho, dialogando com as situações cotidianas, especialmente ligadas ao seu vocalista.
Por se tratar de uma cinebiografia (ainda mais um recorte reduzido de uma série de TV que ainda está por estrear), a narrativa se limita ao básico da linearidade, sem provocar muitas perturbações temporais a quem está no cinema e ainda trazendo um quê de autoajuda e do estímulo a sempre apostar no sonho por mais que se diga que ele é impossível. Não que isso seja algo ruim. Pelo contrário.
Em se tratando de Mamonas Assassinas, o que vale mais é ter um retrato fiel de como foi de fato aquela época, muito por causa do alto apelo emocional promovido junto ao espectador. Muitos dos figurinos e objetos de cena são verídicos e saíram do acervo herdado pelos familiares dos cinco músicos. Os atores também estão muito bem caracterizados e próximos do que foram os integrantes – vale ressaltar que Ruy Brissac também participou como Dinho da encenação do musical nos palcos e Alberto Hinoto é sobrinho de Bento.
Como a intenção não é esmiuçar analiticamente a importância e o significado dos Mamonas para a juventude da época ou mesmo a história do rock brasileiro, a condição de puro entretenimento cabe bem ao longa-metragem. Ainda mais porque a banda, no fundo, sabia que sua genialidade era mesmo o fato de não estar ali para ser levada tão a sério assim.