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Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.

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Atentado ao Hotel Taj Mahal

Ataque terrorista ocorrido em 2008 em hotel de luxo na Índia chega aos cinemas brasileiros logo após eventos semelhantes em Sri Lanka

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Imagem Filmes/Divulgação

Quase 62 horas ou pouco mais de 2.350 quilômetros de distância separam o Hotel Shangri-La, em Colombo, no Sri Lanka, do Taj Mahal Palace Hotel, em Mumbai, na Índia. Os dois hotéis de luxo cinco estrelas em dois países de extrema desigualdade social foram alvo de ataques terroristas. No último domingo de Páscoa, data que simboliza a ressurreição de Jesus Cristo, foram 253 mortos no Sri Lanka. Os terroristas islâmicos explodiram igrejas – templos do catolicismo – e hotéis – templos de turistas endinheirados em várias cidades do país.

Onze anos separam este domingo de Páscoa daquele 26 de novembro, um dia qualquer na capital econômica da Índia, terra do hinduísmo (que divide a sociedade em castas), do jainismo, do budismo, do sikhismo e onde a população muçulmana cresce a cada ano. País onde a vaca é sagrada e a mulher ainda é inferiorizada e constantemente vítima de violência sexual.

Em 2008, assim como no Sri Lanka (que tem o budismo como religião predominante), uma série de ataques terroristas matou mais de 160 pessoas. Esses quatro dias de pânico são recontados no primeiro longa do diretor Anthony Maras, Ataque ao Hotel Taj Mahal (Hotel Mumbai, Austrália/Índia/EUA, 2018 – Imagem Filmes). A produção tem o ator britânico Dev Patel (estrela de Quem Quer Ser um Milionário, longa rodado em Mumbai e que estreou no cinema no ano do atentado) como protagonista e produtor executivo. Retrata o “11 de setembro da Índia” e entrou em cartaz no Brasil na última quinta-feira, um ano após o lançamento de outro filme sobre o tema, One Less God, também australiano.

O longa de Maras (premiado diretor dos curtas Azadi, de 2005, e The Palace, 2011, sobre o conflito Chipre-Turquia) foi lançado no festival de cinema de Adelaide, no final de março, em uma sessão emocionante que reuniu sobreviventes do atentado, entre eles o chef do Taj Mahal, Hermant Oberoi (interpretado pelo veterano ator indiano Anupam Kher), que ajudou a salvar centenas de hóspedes. Em entrevista à NBC News, Oberoi disse que a experiência de reviver o ataque foi visceral, sobretudo nas primeiras cenas de tiroteio.

E essa era a intenção de Maras: trazer a maior carga de verossimilhança possível e retratar o heroísmo de pessoas comuns diante do terror. Pessoas que, sem poderes sobrenaturais, escolheram arriscar a vida para salvar desconhecidos diante do abismo. Foram humanas, demasiadamente humanas.

É nítida a intenção do diretor australiano em chocar, expor a realidade, seja com o estampido dos tiros – nada artístico, sem uso de qualquer música clássica como em Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola – ou em cenas em que as personagens precisam escolher entre permanecer no hotel para salvar outras vidas ou tentar escapar para reencontrar a família.

As cenas de tiroteio, aliás, parecem intermináveis. São tantos tiros de AK-47 que o espectador corre o risco de deixar o cinema com náusea e dores de cabeça. A sensação, porém, não chega aos pés de quem sofreu na pele uma situação limite de estar em meio a um massacre ao vivo.

O apocalipse de Atentado ao Hotel Taj Mahal já fica evidente no início com os contrastes de um país onde milhões de pessoas são indigentes; onde agricultores cometem suicídio todos os anos, e 40% das crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição crônica.

Os dez terroristas paquistaneses chegam à cidade de barco, com suas mochilas nas costas e sempre seguindo instruções do líder que faz uma massiva lavagem cerebral. “You feel strong. There is no fear in your heart. You are like sons to me. I am with you. God is with you. Paradise awaits” (Você se sente forte. Não há medo em seu coração. Vocês são como filhos para mim. Estou com vocês. Deus está com vocês. O Paraíso espera). É como o líder terrorista profetizou: o mundo inteiro está vendo. E com as mídias sociais, o alcance das mensagens de intolerância religiosa fica cada vez mais potente.

O grupo se separa a fim de concretizar a sequência de ataques. Corta para a personagem de Patel: Arjun está num banheiro público e se arruma na frente do espelho. Sua filha, ainda bebê, está no chão sujo, chorando. Ele a pega no colo e segue para o trabalho da mulher porque não tem com quem deixar a criança. A esposa está grávida. Com o turbante sikh (que fortalece nosso deus interior), apressa-se para não chegar atrasado ao imponente hotel – uma construção de arquitetura gótica vitoriana que homenageia a umas das sete maravilhas do mundo. Lá ele trabalha como garçom. No caminho, perde um dos sapatos e, por pouco, não perde o emprego. Oberoi, seu chefe, empresta-lhe um par e Arjun precisa atender os clientes mancando.

O Taj Mahal é um paraíso. Ali o hóspede – estrangeiro, rico, fino, vip, famoso – é tratado como um deus. Toma banho na temperatura perfeita. Enquanto isso, em nome de Alá ou Allah (a palavra árabe que designa Deus), os terroristas dão cabo ao primeiro ataque, na estação de metrô, onde calcula-se que cem pessoas tenham morrido. O tiroteio é noticiado pela televisão mas os hóspedes que chegam ao Taj ainda permanecem alheios ao terror, jantando nos restaurantes de luxo do hotel. Como o casal formado pela indiana Zahra (Nazanin Boniadi) e o americano David (Armie Hammer), que viaja com o filho recém-nascido e a babá dele (Tilda Cobham-Hervey).

Depois do ataque a um restaurante na cidade, as vítimas sobreviventes correm desesperadas para buscar refúgio no hotel e os terroristas se infiltram entre elas. O luxo se transforma em inferno. O sangue, o suspense e o pânico se instalam.

Forças militares de Nova Delhi demoram horas para chegar e o staff do hotel e uma equipe de policiais locais tentam salvar os hóspedes como heróis. Os dedos massacrados pelo sapato apertado de Arjun não importam mais. A dor desaparece diante do caos, de um pesadelo real, da luta pela sobrevivência.  Aos tiros somam-se o choro do recém-nascido e a experiência de assistir ao filme torna-se torturante.

Maras tenta ainda humanizar os terroristas, como na comovente cena em que um dos atiradores telefona para a família perguntando se o dinheiro já havia sido enviado aos pais. O vilão é o herói da família. O terrorista, capaz de amar e matar o próximo em nome de Alá, chora diante de suas vítimas amordaçadas.

Como toda história baseada em fatos reais, o desfecho desse filme já é esperado, é conhecido. E, se depender da escalada do terror que só cresce no mundo, muitos outros finais como esse serão retratados no cinema. Quem sabe o próximo título do filme de Maras será Atentado ao Hotel Shangri-La.

Saiba mais

Documentário

Este atentado na Índia já rendeu algumas produções cinematográficas. Em 2009, foi lançado um documentário sobre a infiltrada dos jihadistas. “A maioria dos ataques terroristas duram segundos. Mas o ataque em Mumbai foi diferente”, assim começa a narração do documentário Surviving Mumbai, sobre o ataque. O país é o vice-campeão mundial de taxa de extrema pobreza (perdeu para a Nigéria em 2018, segundo o relatório da Brookings Institution) e está entre aqueles com maior número de ataques e vítimas de terrorismo em todo o mundo, depois de Iraque e Paquistão. O documentário foi lançado em 2009 e traz relatos de sobreviventes, como Oberoi.

Reconstrução

Vidas não podem ser “reconstruídas”. Espaços físicos, sim. Dois anos após o atentado, o jornal New York Times publicou matéria sobre a restauração de preciosas obras de arte indiana que o Taj Mahal abrigava em suas dependências, como no imenso lobby. O trabalho durou 21 meses. Quase 300 peças, entre elas quadros de importantes pintores indianos como Vasudeo S. Gaitonde e Jehangir Sabala, ficaram cobertas por fuligem e fungo. Para ler mais sobre isso clique aqui.

Conflito sem fim

Índia e Paquistão são hoje duas potências nucleares e disputam a região da Caxemira antes mesmo de se tornarem independentes do Reino Unido, em 1947. Na época, foi traçado um plano territorial apresentado pelo parlamento britânico e o governante local (isto é, o marajá) da Caxemira decidiu se anexar à Índia, dando início ao conflito interminável. A rivalidade é intensificada por conta da religião. Na Índia, o hinduísmo ainda predomina. Já os paquistaneses são muçulmanos.