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Coolritiba 2023 – ao vivo

Gilberto Gil, Marisa Monte, Mano Brown, Alceu Valença, Fresno, Liniker e outros bons shows

Gilberto Gil

Texto por Leonardo Andreiko e Luca Passos (com colaboração de Otto Browne)

Fotos: Coolritiba/Divulgação

No último dia 20 de maio, em pleno outono curitibano, 23 atrações musicais dividiram quatro palcos distribuídos entre a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame em mais uma edição do festival Coolritiba, que agitou no frio e no calor de um sábado com mais de 12 horas de música. Foram 12 shows principais nos palcos-irmãos da Pedreira, além da música eletrônica ocupando o palco da Ópera e o caminho entre eles.

Com a missão de abrir o dia no Palco A, Tuyo mostrou a que veio com as nuances eletrônicas de seu pop alternativo ancorado nas belíssimas e potentes vozes das irmãs Lio e Lay Soares – Jean Machado completa o trio com a produção eletrônica e as modulações de guitarra e baixo. As baladas melancólicas da banda curitibana arrepiaram quem chegou cedo para curtir o festival e incumbiram a próxima atração, Agnes Nunes, com a difícil missão de manter os ânimos. E assim ela o fez.

Baiana de apenas 21 anos e uma multidão de seguidores nas redes sociais, Agnes trouxe para o meio-dia de Curitiba seu som fortemente influenciado pelo r&b norte-americano, mas com pegada inequivocamente brasileira. Acompanhada por um pianista e um baixista/guitarrista no Palco B, encantou com sua voz, pôs o público para cantar e deu espaço para os instrumentais românticos de sua ainda incipiente discografia.

Liniker

Em seguida, Liniker trouxe seu álbum Indigo Borboleta Anil para os palcos junto de músicos estelares, com quem dividiu o protagonismo a todo momento. Do início ao fim de sua apresentação, mandou hits consagrados no meio indie brasileiro e novas apostas musicais, que a colocam em evidência como uma das maiores artistas em ascensão do país. Com “Intimidade”, “Baby 95” e outras canções, a artista foi mais uma das atrações que preencheu a Pedreira com presença vocal surpreendente. Ela embalou toda a plateia, agora já encorpada, com uma banda que nada deve às melhores do funk e do r&b mundial, sem deixar de incorporar brasilidade e samba para a equação. Bateria, percussão e baixo montaram uma cozinha espetacular, que dividiu o palco com teclados, guitarra e um naipe de sopros digno das big bands. Liniker provou que a veremos, mais cedo do que imaginávamos, protagonizar festivais como headliner.

Depois de uma das mais promissoras novas vozes da música brasileira foi a vez de um de nossos maiores patrimônios tomar o microfone. Encaixado em um horário que não faz jus a sua história, Alceu Valença subiu ao Palco B da Pedreira às 14h30 para levar a um público majoritariamente jovem sua sonoridade profundamente brasileira. Ainda que as interações com a plateia não estivessem com tamanha energia, o bom humor e a irreverência do pernambucano colocaram Curitiba para dançar e cantar “Tropicana”, “La Belle de Jour”, “Anunciação” e “Táxi Lunar”. Sua apresentação, ladeada por novas promessas e tendências fonográficas, foi um instigante ponto de toque para se refletir acerca das distâncias e proximidades entre o passado, o presente e o futuro da MPB.

Fresno

O Fresno, que sucedeu Alceu, ocupa um espaço particular nessa conjuntura temporal. Apresentando uma versão reduzida de sua turnê mais recente, que acompanha o álbum Vou Ter Que Me Virar, os gaúcho-paulistas teceram um set list que conjuga os sucessos emo da primeira metade de seus 24 anos de carreira com a refinada estética construída nos últimos projetos, que agregam elementos do synth pop e demais vertentes eletrônicas a uma gutural e crua herança do hardcore.

O show do grupo ostentou, junto à posterior presença agigantada de Mano Brown, o tom mais político desse festival. Entre os fortes riffs de “FUDEU!!!”, o vocalista Lucas Silveira comemorou a cassação do ex-deputado federal da Lava-Jato com um grito de “Deltan, tu se f*deu!”. Ainda, os versos “E o prеsidente, basicamente/ Quer te exterminar” foram acompanhados da projeção “ex-presidente” no telão, que complementa e cria a atmosfera de toda a apresentação da banda. Em “Eles Odeiam Gente Como Nós”, projetavam-se as silhuetas da pífia demonstração de força do Exército Brasileiro durante o desgoverno militarista de Bolsonaro.

Em seguida, o Lagum, banda de pop rock com uma influência de reggae que acaba de lançar o quarto disco, Depois do Fim, entregou-se nas interpretações de suas músicas, cativando o público forte interação. Além de prometer voltar para outro show na cidade até o fim do ano, os mineiros brindaram os fãs mais assíduos com uma palhinha de uma música vindoura.

Agnes Nunes

Embora o baiano Teto e o cearense Matuê sejam parceiros de muitas composições e constassem juntos na programação (como parte de sua turnê em conjunto), eles não dividiram o palco em nenhum momento. No entanto, ambas as aparições animaram o público com suas potentes presenças de palco e sucessos mais recentes (do primeiro, “Flow Spacial”; do outro, “Conexões da Máfia”), além de seus maiores hits. Fizeram a alegria dos fãs que compareceram em peso no festival.

Se o trap de Matuê o faz um dos artistas em maior evidência do país, o palco de seu show catapulta a experiência àquela dos grandes performers mundiais, com luzes e um telão que ostenta animações psicodélicas que expandem a toada estética iniciada no álbum Máquina do Tempo, de 2020. A última música do set, “777-666”, seu píncaro artístico, entregou a exata atmosfera do artista: os dois acompanhantes, guitarrista e tecladista (que, inclusive, surpreendeu com um solo que parecia saído dos álbuns contemporâneos de jazz), juntaram-se num palco “em chamas”, efetuando solos com seus instrumentos já quase inaudíveis pela batida da música. Deliberadamente tosco, um jeito perfeito de terminar.

Em seguida, L7nnon deu sequência coerente aos artistas anteriores. Um dos nomes mais evidentes do rap nacional, suas músicas, já conhecidas por boa parte do público, cativaram a juventude que o esperava – a despeito de uma possível qualidade da interpretação, que não passou do mais básico. Dificilmente alguém que não o conhecia – justamente uma das qualidades do formato do festival, o contato com o choque entre gêneros e carreiras – foi atraído pelas canções, com a notável exceção de “Ai Preto”, não à toa seu maior sucesso.

Mano Brown

Um dos destaques do festival neste ano foi o veterano Mano Brown, que nos brindou com o que pode ser considerado um concerto duplo. Os primeiros 20 minutos foram dedicados a canções de seu álbum solo lançado em 2016, Boogie Naipe. As composições, executadas com o cantor Lino Kriss, deram boas-vindas calorosas ao som do boogie e do r&b. No telão, uma miscelânea de capas de álbuns clássicos dos gêneros que inspiraram o álbum: um convite a explorar a história musical que claramente encanta Brown desde os primórdios. Curitiba dançou “dois pra cá, um pra lá” contagiada com os ritmos dançantes de músicas como “Gangsta Boogie” e “Mal de Amor”.

Na segunda parte do espetáculo, a plateia foi presenteada com hinos do clássico álbum de 2002 dos Racionais MCs, Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, interpretadas no sentido mais puro da palavra: o palco, decorado de forma quase minimalista, foi usado à exaustão para dar forma aos versos. Com as gigantescas presenças de Ice Blue e KL Jay, músicas que já integram o substrato mais profundo da cultura brasileira foram entregues com suas forças sempre vivas: “Vida Loka (Parte I)”, “Eu Sou 157” e “Jesus Chorou” foram algumas pedradas que rolaram em som na noite. Aliás, é necessário um contraste entre a apresentação de Brown, de 53 anos, com os rappers da nova geração: o único que levou dançarinos e intérpretes de libras, Mano, em certo momento, brincou com o fato de ainda estar antenado, mas de um modo meio duvidoso. Talvez seja justamente por esse anacronismo que ainda se pode falar de arte, que os corpos ainda se movimentam no espaço e que as palavras sobrevivem.

Sandy

Dez minutos depois, Sandy entrou no palco ao lado, numa produção grandiosa em seu trabalho de luzes e da própria sonoridade. A cantora, que parece ser incapaz de sair da afinação, evidentemente não parecia afinada à programação: apertada entre Mano Brown e Gilberto Gil, sua presença foi um pouco anódina. Foi um show voltado a fãs da cantora, que interagiram bastante com o público e cantaram seus grandes sucessos, como “Aquela dos 30” e “Me Espera”, em parceria com Tiago Iorc. Ainda assim, a música que mais fez vibrar os curitibanos foi um dos sucessos dela com o irmão, Júnior: “A Lenda”, num soturno exemplo que pode resumir a carreira da cantora.

Em seguida, um dos protagonistas da noite: Gilberto Gil, 80 anos e com sua banda, ofereceu um dos mais destacados espetáculos do Coolritiba, com uma sequência de músicas de seu repertório próximas da sonoridade do forró entrecortadas por interlúdios  quase industriais. Ninguém ficou parado ou calado na plateia: de crianças a senhoras, todos cantavam a plenos pulmões (ok, havia alguns mais comedidos, aqueles cuja vergonha ataca mesmo nessas ocasiões) músicas como “Eu Só Quero Um Xodó”, “Toda Menina Baiana” e “Esotérico”. A movimentação, preenchida pela harmonia com as notas, não foi exclusiva da plateia, já que em cima do palco toda a banda parecia estar em enorme entrosamento, rendendo sobretudo bons solos de guitarra e sanfona, esta nas mãos do ilustre Mestrinho. Vale o destaque à filha mais velha de Gil, Nara Gil, que acompanhou o acordeonista nos vocais.

Alceu Valença

Uma das coisas que mais indicam a qualidade de um show é a interação entre o público e o artista – tanto entre as músicas quanto durante elas. Gil falou de tudo um pouco sobre a capital paranaense: citou os times de futebol, o quentão e o frio. Essa proximidade com a cidade rendeu uma das partes mais bonitas do espetáculo: a homenagem para a filha mais nova de Paulo Leminski e Alice Ruiz, “Estrela”. O concerto de Gil, portanto, foi à altura de seu nome gigantesco, uma pequena janela de paraíso musical.

Para fechar a noite, Marisa Monte vestiu-se de deusa e trouxe a Curitiba um espetáculo não apenas musical como também visual. Seu telão com projeções em 3D criaram uma espacialidade magnânima onde a voz de Marisa pudesse ecoar, acompanhada de uma banda de dar inveja a qualquer artista nacional. Conduzindo os sopros, o trompetista Antônio Neves, que ostenta um dos melhores lançamentos brasileiros do jazz contemporâneo, levou a especial textura que torna sucessos como “Ainda Bem” tão especiais na discografia de Marisa.

A cantora também presenteou as plateias com hits da carreira, como “Vilarejo”, “Beija Eu” e “Velha Infância”. O show ainda contou com a presença do percussionista Pretinho da Serrinha, que dividiu o palco com a estrela para apresentar a colaboração dos dois, em homenagem à Portela, chamada “Elegante Amanhecer”.

Marisa Monte

Assim se encerrou mais uma edição do Coolritiba, que faz aterrissar no Paraná a megaestrutura dos grandes festivais, mas também traz consigo seus problemas. É impossível ignorar as reclamações com os preços abusivos e a falta de transparência em relação à promessa de água e ônibus gratuitos, assim como é impossível ignorar a qualidade do aparelho cultural disposto à cidade, ainda que com a mácula da inacessibilidade.

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