Movies, Sports

Ferrari

Cinebiografia do criador da escuderia mais cultuada do automobilismo traz empolgantes cenas de corrida mas derrapa na parte dramática

Texto por Abonico Smith

Foto: Diamond Films/Divulgação

Mesmo que não seja assim tão fã de Fórmula 1, todo brasileiro sabe muito bem que o sobrenome Ferrari carrega há décadas o status de símbolo máximo de grife ligada ao automobilismo. Todo piloto quer dirigir uma. Todo milionário sonha em ter uma. Alguns jogadores de futebol que já passaram temporadas em campos europeus já dirigiram uma. Seu fundador e proprietário, Enzo Ferrari, declarou, inclusive, que enquanto outras escuderias participavam de corridas para vender automóveis ele fazia exatamente o contrário: virou empresário para continuar pisando fundo no acelerador. Mesmo que nos bastidores, por trás de tudo, comandando tudo com mão de ferro em boxes, oficinas e escritórios.

Por isso, a chegada de um longa-metragem como Ferrari (EUA/Reino Unido/Itália/China, 2023 – Diamond Films) aos cinemas pode causar bastante alvoroço em tanta gente que ama a velocidade dentro de algum bólido de motor possante e quatro rodas. A assinatura de Michael Mann, então, veterano diretor especializado personagens bastante obcecados por suas atividades, tornava-se um atrativo a mais.

Eis que, com o foco ligado sempre em um Adam Driver completamente transfigurado para se assemelhar ao protagonista, o filme se mostra uma obra dividida entre o drama e a ação. Neste último quesito, a mão de Mann – que havia três décadas tentava levar às telas esta adaptação de uma biografia publicada em 1991 – mostra-se perfeita. As muitas cenas de corrida, seja em circuitos fechados ou pelas ruas e estradas da região da Emilia-Romagna, são de encher os olhos, ainda mais na grande tela. Só que nem só disso vive um bom filme e justamente na outra parte que este Ferrari derrapa.

O arco dramático, que no roteiro acaba de sobressaindo e tendo mais destaque do que as provas em si, começa em 1957, alguns anos depois que o piloto Enzo Ferrari decidiu abandonar de vez o volante depois de ver dois grandes amigos perderem a vida em acidentes ocorridos em um mesmo dia de corrida. Contudo, em uma Itália ainda se recuperando economicamente e juntando os cacos provocados pela Segunda Guerra Mundial, o futuro da escuderia que leva o seu nome parece incerto. O agora entrepeneur busca espantar de vez a assombração da falência tentando levantar dinheiro por meio da família e de empréstimos bancários. Para poder decolar e se manter profissionalmente, entretanto, era necessário se obter vitórias, sobretudo na Mile Miglia, percurso de longa distância (mil milhas, com dizia o nome) que passava por várias cidades italianas que fora retomado naquele pós-guerra. Como Enzo tinha grandes adversários nas pistas sua obsessão por chegar em primeiro aumentava a cada ano, custasse o que custasse, inclusive a vida de vários pilotos da Ferrari.

Aliás, a vida pessoal do protagonista é bastante devassada nas telas. A constante luta contra a morte aparece do início ao fim do filme. Além da perda dos pilotos da escuderia – motivo pelo qual era constantemente atacado pela imprensa esportiva local – também havia o sentimento perene na família. Ainda na adolescência, em 1916, ele já perdera pai e irmão mais velho para um surto de gripe que se espalhara por todo o país. Contudo o abalo maior ficou por conta do falecimento em 1956 de Dino, o único filho com a esposa Laura e por isso seu sucessor, aos 24 anos de idade, vitimado por uma distrofia muscular. Aliás, o nascimento de Dino também havia sido um outro forte motivo para que Enzo fizesse a transição definitiva de piloto para empresário em 1932.

O casamento com Laura, que já não vinha bem desde o período da guerra, já havia virado um leite derramado. Tanto que Enzo mantinha vida dupla com outra mulher e criando um outro filho, mesmo não podendo ser reconhecido legalmente por ele por conta da então ainda inexistente lei do divórcio em território italiano. O que quase todo mundo já sabia veladamente nos bastidores Laura acaba descobrindo, dificultando ainda mais o entendimento entre os dois “sócios” da escuderia.

Aqui, portanto, reside o grande problema de Ferrari, que é a sua parte dramática. Adam Driver termina o filme como começou: quase escondido, não apenas pelo disfarce da caracterização e os quilos de maquiagem. Fala bem pouco em cena, muitas vezes resmungando e lacônico, com a cara fechada, pisando em seus trabalhadores e interlocutores. Pode-se até argumentar que esta seria de fato a personalidade rude do “comendador”, mas também acaba jogando contra a mise-en-scène do protagonista. Penélope Cruz, por sua vez, dá vida, viço e sangue a uma Laura ofendida e impulsiva, capaz de atirar à queima-roupa no marido em casa ou ser tão grossa quanto ele nas ligações da imprensa e de financiadores. Já Shailene Woodley (a sempre resignada Lina Lardi, a amante e mãe do filho bastardo) não diz muito a que veio em seu pouco tempo de tela.

Além do desnível das interpretações, Ferrari também “sai da pista” e “bate na mureta” ao cometer o grande erro de muitas produções hollywoodianas ambientadas na Europa continental e com personagens reais que, em seu cotidiano, falam em idioma natal. Este é mais um filme de italianos, de história bem italiana, de característica italiana falado em inglês! (Detalhe: Adam Driver também estava no elenco de Casa Gucci, que chafurdou em críticas e bilheteria por este motivo.) E o que faz ali o competente ator brasileiro Gabriel Leone, fazendo um piloto espanhol (Alfonso de Portago), conversando com o patrão italiano, em inglês?

Ao final da sessão fica aquela lembrança histórica do maior momento de narração de Cleber Machado na F1 – aliás, uma enorme polêmica protagonizada justamente pelos dois competidores da Ferrari na temporada de 2002. Na volta derradeira do GP da Áustria, Rubens Barrichello estava bem à frente do companheiro de escuderia, Michael Schumacher e iria cruzar a linha de chegada e receber a bandeirada da vitória. Contudo, sua equipe obrigou o brasileiro a desacelerar e ceder, nos metros finais, a frente para Schumacher, já que isso contabilizaria mais pontos para que o alemão pudesse vencer o campeonato de pilotos. Ferrari, o filme, faz ecoar na mente o futuro bordão com a empolgação sendo subitamente trocada pelo tom de decepção. Hoje não, hoje não… hoje sim!

Music

Coldplay – ao vivo

Plateia de Curitiba recebe a banda pela primeira vez e faz parte de um espetáculo com um universo próprio de cores, luzes e protagonismo

Textos por Janaina Monteiro e Carolina Genez

Foto: Coritiba Foot Ball Club/Reprodução

Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal. 

“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse. 

Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas. 

Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.   

A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000. 

Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê ­ – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.

Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.

Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.

E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas.  Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê. 

E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ

De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”.  Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida! 

Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo. 

Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.

Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio. 

Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.

No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas. 

Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)

***

A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.

set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show  tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano  enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.

O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.

O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)

Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).

Series, TV

The White Lotus

Segunda temporada da série que explora a aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante encanta os olhos

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/DIvulgação

Eu preciso confessar para vocês que a primeira temporada de The White Lotus, vencedora de onze Emmys em 2022, à primeira vista, não me empolgou muito. O elenco é inegavelmente espetacular, em especial as atuações de Murray Bartlett como Armond (o gerente da filial havaiana da franquia de hotéis de luxo) e Jennifer Coolidge, como a insensível, autocentrada e deprimida milionária Tanya. O enredo sob o sol escaldante do Havaí, apesar de multifacetado, causou-me incômodo, talvez pela simplicidade dos seus temas. Possivelmente, também, eu não tenha levado em consideração que durante sua concepção e realização estávamos vivendo tempos pandêmicos – o auge da produção data de meados de 2021, e, dadas as condições e as restrições internacionais e sanitárias, foi feito um esforço para criar um conteúdo de qualidade da forma mais segura e rápida possível. O ator, autor, produtor e diretor Mike White, mais conhecido por ter escrito especialmente para Jack Black o blockbuster Escola de Rock (2003), conseguiu criar uma trama em um ambiente relativamente hermético – a cadeia White Lotus é uma espécie de Club Med do nouveau riche norte-americano – e unir de forma interessante drama e humor macabro com bastante equilíbrio.

Na segunda temporada de The White Lotus (EUA, 2022 – HBO Max), com maior liberdade tanto criativa quanto espacial, Mike nos leva para a sede siciliana da cadeia da flor exótica. Temos diante de nós uma nova equipe de funcionários locais trabalhando no hotel e novos hóspedes a serem paparicados sem restrições. O formato da série nos lembra uma versão Upstairs, Downstairs (1971) contemporânea – sucesso britânico da década de 1970 cujo formato televisivo influenciou várias produções, entre elas a festejada série Downtown Abbey (iniciada em 2010), onde os dramas da crew do hotel têm o mesmo peso na narrativa dos dramas dos privilegiados visitantes.

Como personagens recorrentes da primeira temporada temos apenas a confusa Tanya (Jennifer Coolidge) e seu “novo” marido Greg (Jon Gries). Tanya chega ao encantador resort com uma nova assistente a tiracolo, Portia (Haley Lu Richardson). Junto a ela no barco estão dois casais de jovens amigos milionários – Cam (Theo James) e a esposa Daphne (Meghann Fahy), Harper (Aubrey Plaza) e o marido Ethan (Will Sharpe), completando a trupe dos bem-sucedidos temos os Di Grasso – o pai Domenic (Michael Imperioli), o avô Bert (F. Murray Abraham) e o filho/neto Albie (Adam DiMarco). Na frente do comando dos funcionários do hotel fica a gerente italiana Valentina (Sabrina Impacciatore), que nessa temporada assume o papel que Bartlett interpretou na primeira temporada. Completam o elenco ainda as duas garotas de programa locais Luccia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò). 

Mike White não nos economiza no quesito encontros e desencontros. O roteiro possui várias reviravoltas e requisita a nossa atenção aos detalhes, às vezes, escondidos nas próprias imagens paradisíacas e objetos luxuosos. Repetindo o formato da primeira temporada, iniciamos essa jornada com mais corpos sendo encontrados. Do primeiro capítulo, então, voltamos no tempo até a chegada dos turistas ao hotel onde percorremos todo o caminho de volta à cena inicial. Um formato que vagamente lembra a antiga série Ilha da Fantasia, onde os visitantes usam suas férias para trabalhar seus problemas pessoais, dificuldades de comunicação, mistérios e conflitos familiares que a rotina do dia a dia teimava em enterrar.

As atuações são um deleite à parte. Todos os atores italianos merecem aplausos de pé, principalmente Sabrina, Simona e Mia. A leveza e a pungência do humor desse país dão à segunda temporada exatamente o tempero exótico que faltou à antecessora. Gargalhamos do absurdo, assim como gargalhamos do desespero. Ao mesmo tempo nos comovemos e somos encantados por um charme tão natural e genuíno que pensamos que em Taormina, o pitoresco vilarejo siciliano, tudo é permitido.

Visualmente, The White Lotus é uma série de tirar o fôlego. A fotografia, a música, a ambientação, tudo nos leva a viajar pelo mundo do luxo dos resorts e dos cenários de nossos sonhos. É o olhar do turista e, portanto, também há um amontoado de clichês bem selecionados, como um catálogo de uma agência de viagens. A Sicília nos é mostrada pelos olhos encantados dos norte-americanos – com vulcão, praias de água turquesa, palazzos decadentes cobertos de ouro e pinturas renascentistas, vinhedos e ilhas rochosas cheias de mistério. White também não poupou recursos para nos alimentar os olhos. Por outro lado, também não economiza recursos ao esfregar na nossa cara a amargura, a feiúra e a traição latentes no âmago de seus personagens. De novo, não existem aqui mocinhos e bandidos: existem pessoas que ora nos encantam ora nos causam repulsa com suas atitudes. E nós, de uma distância segura, rimos muito de tudo isso.

Em uma entrevista recente, o criador explicou que o tema da primeira temporada no Havaí foi o amor, o da segunda na Sicília foi o sexo e que o da terceira será a espiritualidade. Com isso, já nos deixa na expectativa de qual paraíso desse mundo será o novo destino e na certeza da confirmação da produção da próxima aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante.

Music

Pabllo Vittar + Gloria Groove – ao vivo

Drags esquentam uma das noites mais frias do ano de Curitiba com uma festa de diversidade, orgulho, figurinos, dança e música pop de qualidade

Pabllo Vittar

Texto por Ana Clara Braga

Fotos: Caroline Hecke/Divulgação

As eleições são apenas em outubro, mas se fosse realizada uma prévia entre fãs de Gloria Groove e Pabllo Vittar, Bolsonaro perderia de lavada. O evento Divas realizado em Curitiba no último dia 13 de agosto, no espaço Expo Unimed, foi um um borbulho de diversidade e manifestações políticas. O público de maioria LGBTQIA + sabia as músicas de cor e cantou a noite inteira os hits das cantoras.

Pabllo e Gloria são dois jovens gays de partes diferentes do Brasil que encontraram na música e na arte drag uma forma de se expressarem. Quebraram barreiras de público e gênero se consolidando como dois dos maiores atos pop do país. Afinal, existe alguém que não conheça ao menos uma música das duas? Dominando os streamings e as rádios online nos últimos anos, Pabllo e Glória misturam ritmos nacionais e internacionais dando ao Brasil um tipo de música no mesmo nível de uma grande popstar americana.

Gloria Groove foi a primeira a subir no palco, pontualmente às 23h seu show começou com “Bonekinha”, o primeiro single do seu aclamado disco Lady Leste. Com muita energia, coreografias e vocais inabaláveis, a sequência de hits animou o público. Gloria trocou de figurino três vezes, acompanhando a versatilidade das próprias canções.

Muito simpática, conversou com a plateia em diversas oportunidades, puxando coro e anunciando a próxima música. Em devido momento, escalou a plateia para um feat: era o aguardado momento das lud sessions, gravação acústica que fez com Ludmilla e estourou no Brasil. Os presentes responderam prontamente e cantaram e derramaram lágrimas ao som da sofrência.

Um dos momentos mais aguardados do show foi “A Queda”, megahit que alavancou a carreira de Groove no país. Com figurino e iluminação especiais, a cantora performou a música de maneira teatral, simulando o clipe. Voltando ao palco de vermelho, Gloria levou a mão para o alto com os dedos em L, levando a plateia ao delírio e puxou “Vermelho”, uma das músicas mais famosas de seu último álbum. “Quem é essa menina de vermelho?” cantava, enquanto mantinha o L no ar. GG fechou o set com a triunfal “Sobrevivi”, parceria com Priscilla Alcântara, e se despediu do público.

Gloria Groove

Pabllo Vittar começou com tudo com “Buzina”, o eterno quase hino de carnaval. Trajada de vermelho, por coincidência ou não, a drag escolheu seus melhores hits para animar a gélida madrugada curitibana. PV também entregou alguns dos vocais mais altos e certeiros de sua carreira, não deixando nem mesmo a coreografia atrapalhar a voz. A cada agudo, a plateia, surpreendida, gritava e aplaudia. Estavam todos em êxtase.

Ao contrário de Gloria, Pabllo conversa bem menos com o público. Porém, isso não deve ser confundido com antipatia. É que a artista incorpora mais uma diva no palco, sem nunca perder a pose. Em “Salvaje”, as luzes e os movimentos eram certeiros criando uma imagem belíssima no palco. Altíssima, ela era uma amazona, girando, cantando e trabalhando todos os cantos do pequeno espaço.

Cantando músicas em inglês, espanhol e português, mostrou toda sua elasticidade. Ficar parado era impossível, a energia era contagiante. “Zap Zum” e “Ultra Som”, duas músicas de seu mais recente trabalho de estúdio, colocaram fogo na pista. Já “Disk Me”, balada romântica de 2018 transformou o público em backing vocal da drag mais idolatrada do planeta. Pabllo encerrou o show com aquela que é sua maior canção até hoje: “K.O.”. Exausto de tanto dançar, o público ainda teve fôlego para berrar o hino-mor a plenos pulmões.

As duas drags colocaram Curitiba para dançar e cantar e transformaram em boate uma das noites mais frias do ano na cidade. Gloria, com todo seu carisma, mostrou versatilidade e o que faz ser querida por tantas faixas etárias e idades. Pabllo já é uma estrela consolidada. Uma popstar made in Brazil que brilha nos olhos de qualquer pessoa que saiba apreciar talento na música.

Set list Gloria Groove: “Bonekinha”, “Arrasta”, “Jogo Perigoso”, “Fogo no Barraco”, “Bumbum de Ouro”, “Apenas um Neném”, “Modo Avião”, “A Tua Voz, “700 por Hora”, “Radar”, “Provocar”, “Greta”, “Pisando Fofo”, “Leilão, “LSD” (interlúdio), “A Queda”, “SFM”, “Vermelho”, Coisa Boa”. Bis: “Sobrevivi”.

Set list Pabllo Vittar: “Buzina”, “Flash Pose”, “Nega”, “Ele é o Tal”, “Bandida”, “Ultra Som”, “Open Bar”, “Disk Me”, “A Lua”, “Problema Seu”, “Corpo Sensual”, “Clima Quente”, “Salvaje”, “Tímida”, “Amor de Que”, “Rajadão”, “Zap Zum”, “Parabéns”, “Energia (Parte 2)”, “Fun Tonight”, “Sua Cara”, “Follow Me” e “K.O.”.

Movies

Espiral: O Legado de Jogos Mortais

Sequência com Chirs Rock encabeçando o elenco falha em reviver toda a tensão da atmosfera da cultuada saga de James Wan

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Reza a lenda que um dia Chris Rock adentrou o escritório de executivos da Lionsgate para apresentar o pitching de uma ambiciosa e gráfica continuação para a saga Jogos Mortais que deixou os engravatados sem escolha ao não ser dizer sim. Menos interessante que o boato, a realidade é que o comediante comentou a respeito da ideia de um novo capítulo para a história para um executivo em um casamento no Rio de Janeiro. 

A franquia Jogos Mortais ficou conhecida pelo body horror, as armadilhas engenhosas e os plot twists de tirar o fôlego. O primeiro e melhor filme da saga de James Wan apresentou o conceito dos jogos perturbadores de Jigsaw para o mundo em 2004. Mais de uma década depois, Espiral: O Legado de Jogos Mortais (Spiral: From The Book Of Saw, EUA/Canadá, 2021 – Paris Filmes) falha em reviver a atmosfera tensa e sangrenta dos filmes originais. 

O novo capítulo dos jogos mortais muda de perspectiva e coloca o espectador o tempo todo acompanhando as investigações dos casos e das pistas deixadas pelo novo assassino Jigsaw. Enquanto nos longas anteriores, o foco maior eram os jogos, as engenhocas e a vida dos personagens que estão aprisionados. O filme inaugural do universo Jogos Mortais fez tanto sucesso pois soube balancear as cenas de investigação com o assustador banheiro em que as vítimas do Jigsaw estavam presas. 

O filme bebe da fonte neo-noir de produções como Seven, de David Fincher. Aliás, toda a atmosfera parece de um filme policial dos anos 1990 e é por isso que foge tanto ao tom da série original. O personagem de Chris Rock, Zeke Banks, é um policial perturbado pelo passado que passa a investigar os crimes que se assemelham aos assassinatos de John Kramer.  O detetive mal humorado deixa claro desde as primeiras cenas que trabalha sozinho, por isso o óbvio acontece e ele ganha um parceiro, o novato William Schenk (Max Minghella). 

Samuel L. Jackson também está no elenco, mas tem seu talento completamente desperdiçado. Ele interpreta um ex-policial e também pai de Zeke. Chris Rock é comediante e com Spiral queria mostrar uma nova faceta artística, mais séria. Não convenceu. As pequenas adições de humor nos diálogos também não funcionaram. Era uma piada? Ele estava apenas sendo um idiota? Fica a dúvida. Rock já se provou um ótimo roteirista de comédia, mas como ator em um papel sério deixou a desejar. O único tom da atuação é cansativo e escolher a rota do detetive cínico, sarcástico e sem espírito de equipe não é inovador. 

Spiral tem cortes de câmera rápidos, closes no rosto dos personagens e um jogo de iluminação irritante que faz todo mundo parecer suado. O primor técnico da franquia Jogos Mortais nunca esteve na filmagem ou na edição. Os efeitos práticos e especiais davam vida ao filme deixando os objetos usados nas armadilhas extremamente reais. 

Quando finalmente o momento da grande revelação chega, as expectativas não são correspondidas. O grande plot twist já consagrado nos filmes anteriores é fraco e muito previsível. Os flashbacks de explicação tentam melhorar a situação, mas a anestesia da decepção é forte. 

Trazer uma saga de seis filmes de volta à vida obviamente não é fácil, mas retirar ou enfraquecer todos os principais elementos que a caracterizam é algo absurdo. Espiral é pensado para ser uma sequência direta do filme 6, mas não parece se passar nem no mesmo século. A repaginação completa do universo seria perdoada se fosse uma refilmagem ou um reboot. Mas não, é filha direta das produções de James Wan. Fãs dos filmes originais ficarão frustrados. Curiosos não verão graça nenhuma. Esta aqui é uma sequência de decisões erradas e não faz jus ao seu boato de origem.