Adolescente que volta ao Brasil no fim da ditadura militar vai, aos poucos, descobrindo seu passado e a cultura de seu país
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Imovision/Divulgação
O prefixo “des” é usado para negar o sentido da palavra justaposta que vem a seguir: desaparecer, desorientar, deslembrar. Não é hábito empregar este último verbo em nossos diálogos cotidianos, mas seu sentido – deixar de lembrar – está presente em nossos discursos como “esquecer o passado”. O verbo está no título de um poema de Fernando Pessoa e dá nome ao primeiro longa da diretora Flávia Castro. Selecionado para o Festival de Veneza, Deslembro (Brasil/França/Qatar, 2019 – Imovision) traz à tona um tema delicado, que mexe profundamente com a memória dos brasileiros: os desaparecidos políticos durante a ditadura militar.
Flávia, aliás, resgatou suas memórias pessoais para escrever o roteiro do filme – sua experiência no exílio quando criança. Entretanto, consegue costurar a história com sutileza e poesia – como a escolha da trilha sonora – para abordar um passado que manchou a história do Brasil, nossa pátria-mãe que novamente parece andar tão distraída.
A personagem principal do filme é Joana, uma adolescente prestes a fazer 15 anos, interpretada pela atriz franco-brasileira Jeanne Boudier, cuja estreia nas telonas se dá de forma excepcional. A história começa em Paris, na época em que a anistia é promulgada no Brasil. O argentino Ernesto (Antonio Carrara), padrasto de Joana, e a mulher Ana (Sara Antunes) decidem voltar para a América do Sul com Joana e os irmãos Leon (Hugo Abranches) – chamado carinhosamente de Trotskinho – e Paco (Arthur Raynaud). O casal procura apartamento para alugar no Rio de Janeiro, onde Joana nasceu e o pai biológico Eduardo (Jesuíta Barbosa) “caiu” nos porões do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) com o codinome Tiago.
A garota, que é fã de Doors e devoradora de livros, acaba se revoltando. Não quer vir para o “país de merda” que matou seu pai. O filme é multilíngue (francês-português-espanhol) e todos se entendem nessa confusão linguística. Mas quando a família começa a brigar, o idioma de origem prevalece. Joana engana um português, mas é no francês que ela discute. E não adianta chorar: ela arruma as malas e vem com a família para o Rio. O desembarque no aeroporto é como “a chegada do irmão do Henfil”.
E à medida que a trama se desenrola fica difícil encontrar algum defeito. Desde a direção de arte, montagem, tudo parece ser perfeito (só não é por um errinho de continuidade nas alças do biquíni usado por Joana!). O longa traz uma riqueza de detalhes e objetos que remetem à transição dos anos 1970-1980, como a lei da Anistia foi assinada em 1979 pelo então presidente Figueiredo ou, então, a televisão em preto e branco que exibe a cena em que Lucélia Santos contracena com Fábio Jr.
Aos poucos, a garota vai descobrindo seu passado, principalmente no contato com a avó paterna Lucia (Eliane Giardini), que gosta de Pink Floyd e oferece cigarro à neta. E vive novas experiências, como a belíssima cena da primeira vez da jovem ao som de “Cajuína” (que Caetano Veloso escreveu após o suicídio de Torquato Neto) e o primeiro baseado fumado junto com o namorado. As canções, aliás, funcionam como guias que nos conduzem pelo tempo. Tem Noel Rosa, Velvet Underground, Caetano, Doors… A adolescente começa, então, a mergulhar na cultura brasileira e em suas memórias. Ou nos lapsos delas, nos cortes de lembranças de quando era criança e participava dos atos subversivos dos pais, ao estilo Bonnie e Clyde.
Como criar um filho no meio de tudo isso sem deixar traumas? Crianças podem se adaptar, mas como conviver com as lembranças? Esquecer é impossível. E fazer de conta que a ditadura não existiu em nosso país é apenas se iludir.