Music

Supla – ao vivo

Papito mostra em Curitiba a nova banda Punks de Boutique, o novo disco e a autenticidade que sempre norteou sua carreira musical

Texto, entrevista e foto por Abonico Smith 

Espelho, espelho meu: existe alguém mais punk rock do que eu? Esta indagação, baseada no clássico conto de fadas/desenho animado da Branca de Neve que nunca vai sair do inconsciente coletivo de qualquer ser humano que já teve infância, pode até provocar calorosos debates quanto à condição do que se entende exatamente por “ser punk rock”. De uma coisa, entretanto, ninguém discorda. Se a pergunta – que está na introdução da canção “Suplaego” – fosse a respeito de autenticidade não haveria a menor dúvida de que, no universo do rock cantado na língua portuguesa, pouquíssimas pessoas teriam credenciais para concorrer com Eduardo Smith de Vasconcellos Suplicy.

Supla tem 57 anos de idade e está na atividade musical desde a adolescência. Lançou seu primeiro disco aos 19, em 1985, quando era vocalista do quinteto pós-punk paulistano Tokyo. De lá para cá, nunca mais parou. Já contabiliza dezoito álbuns. O mais recente, chamado Transa Amarrada, acabou de ser disponibilizado nas plataformas digitais de streaming e em versão física. E neste tempo todo, nunca fez concessões, seja assinando trabalho solo ou estando em algum projeto com outras pessoas envolvidas. Sempre foi ele próprio dando vazão aos seus próprios gostos e gêneros que fizeram parte de sua formação musical. Muito punk rock e hardcore, claro, mas também um pouco de heavy metal/hard rock, pub rock protopunk, bossa nova. Nos versos, assuntos referentes ao passado e seu espectro atual e toda a realidade ao redor. Se tem uma coisa da qual ninguém pode acusá-lo é de forjar qualquer simulação. Supla nunca adotou qualquer postura ou discurso que não fosse algo inerente a ele próprio.

E foi este mesmo Supla o grande nome do festival realizado pelo Hard Rock Café Curitiba no último 15 de julho para celebrar, 48 horas depois, o Dia Mundial do Rock (que, na opinião deste escriba, é algo bobo e de bem pouca importância porque todo dia é dia de rock, isso não é nada mundial e sim uma pataquada criada por uma rádio de São Paulo para bombar um evento dela e o rock nunca possuiu qualquer data que merecesse ser ressaltada como um marco do gênero, quanto mais uma mera realização do Live Aid em 1985). Com um line up de três palcos e quase duas dezenas de bandas (a maioria com repertório especializado em covers), estava bem fácil para o Papito de sobressair como a principal atração do sábado. Com o show marcado para a tenda montada na área externa do local e horário superconvidativo para qualquer ser humano, não tinha como não ir vê-lo mostrar ao público curitibano a fase atual, acompanhado por sua nova banda, o trio apoio Punks de Boutique.

Pontualmente às quatro horas da tarde,passou pela turma do gargarejo e logo subiu acompanhado pelo seu novo trio no tablado de baixa estatura, ali bem na cara de muitos fãs. Cabelos descoloridos espetados, calça e jaqueta de couro, óculos escuros, botas, uma camiseta do New York Dolls cheia de furos customizados, simpatia ao extremo até com quem tentava ver o show da rua, através de uma fresta na lateral do palco. A performance de Supla no palco nunca deixou de ser algo dele mesmo. Vai para lá e para cá, se joga no chão, faz gestos, aponta para cima e para a frente, comunica-se com o público que está espalhado por todos os lugares, ensaia coreografias inspiradas pelo boxe que um dia já praticou, tece comentários “bem lokos” sobre os videoclipes mais recentes (dirigidos por ele mesmo). Brilha ao centro de três músicos de extrema competência seguram a onda instrumental. O baterista Ale Iafelice já tocou uma das mais conhecidas e cultuadas bandas da geração que ficou conhecida como o emo brasileiro, o Rancore. Trazidos de Porto Alegre, da banda Doris Encrenqueira, os irmãos Edu Hollywood e Henrique Cabreira seguram nos instrumentos de cordas toda fúria e beleza em fraseados, power chords e floreios necessários – tudo isso sem abrir mão da pose e do visual andrógino que caracterizou os anos de glória do punk no underground do eixo Nova York-Londres.

Tendo como gancho o lançamento de Transa Amarrada, o repertório juntou um punhado de faixas novas somou com muitos clássicos espalhados pela carreira de Supla – mais precisamente de 2000 para cá, quando sua carreira no Brasil deu uma impulsionada após passar longo tempo morando em Nova York. Bastante entrosado com os Punks de Boutique – banda formada por ele durante o auge da pandemia, há três anos, ousa inclusive a mudar para melhor determinados arranjos originais, incrementando com crueza e punch o que já era bom anteriormente. A bossa “Green Hair (Japa Girl)” ganhou mais peso e uma cara mais abolerada. “Humanos”, “Cenas de Ciúmes” e “O Tempo Não Vai Curar” também trocaram a veia dançante do pós-punkpor peso e um andamento um pouco mais acelerado. Já “São Paulo” livrou-se da batida glam e virou hardcore. “As It Was” (sim, a releitura do atualíssimohit de Harry Styles!) teve os riffs de teclado substituídos pela notas pontiagudas e mais estridentes da guitarra.“Imagine”, então, encerrou o show de modo bem diferente. A la “My Way”, a balada existencialista criada por John Lennon ao piano encerrou a apresentação para cima e de um modo para lá de rock’n’roll.

Oset montado para Curitiba se dividiu basicamente em três partes temáticas. No início vieram canções de versos sobre o ‘eu, que fazem referência ao lifestyle e a personagens personificados pelo cantor e compositor (“Supla Zombie”, “O Charada Brasileiro”, “Suplaego”, “As It Was”). Depois vieram letras a respeito do “eu com os outros”; isto é  relacionamentos sociais (“Ratazana de iPhone”), amorosos (“Cenas de Ciúmes”, “O Tempo Não Vai Curar”) ou de muita, muita lascívia (“Transa Amarrada”, “Dancing With Myself”, “Porque Só Quero Comer Você”, “Babydoll). No fim, um demolidor bloco com dois hits da era Tokyo (“Humanos” e “Garota de Berlim”, ambos devidamente regravados quando voltou de NY e passou a desenvolver uma continuidade de trabalhos seguindo a linha estética de som e imagem que se mantém até hoje) e um atual (“Não Sou Poeta (É Você que Eu Queria)”, que toca em alta rotação na playlist diárioda rádio parceira do evento no Hard Rock Café). Costurando esses três blocos, covers que serviram de homenagem a Styles, Lennon, Ramones, Billy Idol e a banda garageira sixtie americana Trashmen, artistas distintos entre si mas que, de alguma maneira, conectam-se no gosto e na história de vida do Papito.

Do começo ao fim, naquele palco externo estava um artista autêntico, espontâneo, que não tem a menor vergonha de se mostrarpor inteiro por meio de suas músicas e imagem. Pode encontrar as adversidades mercadológicas que existirem, mas ele segue em frente. Pode sofrer as gozações por causa de suas origens familiares que forem, mas ele dá de ombros. Vai lá, confronta, enfrenta, aposta e se banca sem fazer concessões e ainda faz do humor uma grande arma. Por isso é único. Eduardo virou monônimo. É Supla!

Set list: “Supla Zombie”, “O Charada Brasileiro”, “As It Was”, “Suplaego”, “As Verdades Vão Dizer”, “Green Hair (Japa Girl)”, “Vi o Vil”, “Beat On The Brat”, “Ratazana de iPhone”, “Cenas de Ciúmes”, “O Tempo Não Vai Curar”, “Transa Amarrada”, “Dancing With Myself”, “Porque Só Quero Comer Você”, “Babydoll/Surfin’ Bird”, “São Paulo”, “Humanos”, “Garota de Berlim”, “Não Sou Poeta (É Você Que Eu Queria)” e “Imagine”.

***

Pingue-pongue

Você batizou sua nova banda de Supla e os Punks de Boutique, em referência a algo pelo qual sempre chamaram e zombaram de você. O interessante é que usou de muita ironia, justamente pegando o apelido pejorativo e valorizando ele. Tal como torcidas de times de futebol como Palmeiras e Flamengo, que hoje se gabam dos apelidos de Porco e Urubu…

Sempre falaram que o Supla era um punk de boutique por causa do meu background, meu pai, minha mãe, o sobrenome Matarazzo, aquela coisa de Smith de Vasconcellos ser uma família tradicional paulistana… Eu sempre me vi no estilo e para você se vestir de um jeito legal você precisa ter estilo. Não é qualquer um que sabe se vestir num estilo old school e que vai estar de um jeito legal. Então o pessoal falava: “é um punk de boutique”. Aí a namorada de um dos meninos da banda sugeriu dar esse nome para a banda. E é importante você saber levar uma piada no showbiz. Se você se levar muito a sério, o pessoal fala: take it easy, man!”.

Você acaba de lançar um novo álbum. Nestes tempos atuais de consumo de música e comunicação ainda faz sentido apostar neste formato mercadológico?

Faz sim, porque você registra aquele momento daquela época. Estamos lançando um novo álbum chamado Supla e os Punks de Boutique, com 13 músicas. Essas 13 músicas foram feitas neste período. Então a gente registrou isso, deste momento. Foi o melhor que a gente conseguiu fazer nesta época. Então elas estão registradas. Músicas como “Supla Zombie”; como “Transa Amarrada”, que acabou de ganhar lançar um clipe “bem loko”; como “Não Sou Poeta”, que toca muito aqui na rádio Mundo Livre e sou muito grato a eles também pela parceira já de muitos anos. E o meu sucesso com a molecada se dá por estar sempre me renovando, sempre trazendo músicas novas. Eu me lembro de ter tocado com o Brothers Of Brazil, que já era uma novidade total, uma mistura de punk com bossa nova e que saí tocando pelo mundo. Na sequência lancei o álbum chamado Diga o que Você Pensa, que tinha o clássico “O Parça da Erva”. Daí vejo pelo Spotify como meus seguidores cresceram por estas músicas que têm assuntos que têm algo a dizer, que têm essa visão. Porque se você não tem nada a dizer, você só é um punk de boutique mesmo, tá ligado? So what, you know? But you have got something to say. Você tem de ter algo a dizer, ter essa visão. Qual é sua? Agora tem “Ratazana de iPhone” também, olha o que ela está segurando… [faz um gesto rápido e brusco e retira o iPhone da assessora de imprensa que está à frente, registrando em vídeo a entrevista]. Isso é uma questão social que está acontecendo em São Paulo. Então eu não só fiz a música como fui à Fundação Casa, que é antiga Febem, para ver o que realmente está acontecendo. E 90% eu já sabia, porque eu fiz um clipe de “Humanos” na prisão e 90% de quem estava lá eram pardos e negros. Então eu tô ligado. Por que isso? Porque quando foi assinada a abolição da nossa escravidão os negros não foram inseridos em nossa sociedade de verdade. Ficaram de lado, por que têm as periferias e tal. Então eu fui lá e conversei com esses meninos. Não estou passando pano para bandido, não, e que fique bem clara essa porra! Mas eu falei pra eles… “Valeu a pena roubar celular? Você está com 15 e agora vai ficar dois anos aqui e  vai perder os melhores momentos a sua vida. Eu sei, você pode trabalhar no Starbucks e ganhar mil e quinhentos reais, mil e duzentos ou sei lá quanto”. Como Nina Simone disse, é fundamental o trabalho do artista ser isso, do social também. Então é isso o que estou falando. E fazendo. E, lógico, se estou fazendo é porque eu amo o que eu faço. Então é isso!

Você vem lançando com frequência muitos videoclipes. Só deste novo disco, várias faixas já têm o seu. Por que apostar também neste outro formato em um mundo pós-MTV?

Pô, eu não tenho mais aquela cara de babyface, tá ligado? Tenho papo, rugas, o caralho… as entradas, os cabelos caindo… mas foda-se! Eu gosto da coisa da imagem. Sempre curti. Quando fui ao cinema para ver o filme Help!, dos Beatles, porra, eu fiquei da primeira sessão, que era umas onze e meia, até a última porque não tinha internet e nunca iria passar isso na TV. E eu dirijo os clipes também, então essa coisa da imagem eu gosto do trabalho como um todo. Como disse Bernie Rhodes, empresário do Clash e um dos inventores do punk: se você tem a imagem, tem a visão e tem o papo, it’s like magic! Se você só tem a música, it’s ok! You know, it’s great! Então beleza, bonito! Mas se você tem a música e o visual, it’s like magic! Tipo os Beatles fizeram, tipo o Elvis ou Joan Jett… Rita Lee, que era uma mistura de Carmen Miranda com Mick Jagger e David Bowie fora as mil outras coisas…

O que diria o Supla de hoje,de 57 anos de idade, para o Supla adolescente do Tokyo, que não tinha nem 20?

Ainda bem que eu fiz tudo. [Começa a cantar um trecho da letra de “My Way” mas se embola e troca algumas palavras]Regrets I had a few/ But then again too few to mention/ I did what I had to do/ I saw it through without exemption/ I planned each charted course/ Each careful step around, around the highway/ And more”… I forgot the lyrics… “I did it my way”! Fuck you, c’mon!

Deixe um comentário