Music

Arctic Monkeys + Interpol – ao vivo

Quinze anos depois britânicos retornam ao palco da Pedreira Paulo Leminski como uma das maiores bandas de rock do mundo

Texto e foto por Abonico Smith

Antes de entrar na resenha propriamente dita, vai aqui uma proposta de uma ligeira brincadeira que envolve imaginação, projeção e percepção sobre a vida. Pense em como você era e onde estava quinze anos atrás. Agora pense em você daqui a quinze anos, lá no ano de 2037. Muita diferença em relação ao você de hoje?

Pois bem, ver o Arctic Monkeys tocando na Pedreira Paulo Leminski no último dia 8 de novembro provocou este exercício de memória. Quando o quarteto inglês subiu ao palco da mais bela arena a céu aberto do sul do país esta não era a estreia em tal espaço. Alex Turner e seus fieis escudeiros já haviam tocado ali em novembro de 2017, com uma das atrações da etapa curitibana do falecido Tim Festival. Assim como nos dias de hoje um sideshow de um grande festival nacional.

Três dias antes eles haviam sido headliners do primeiro dia da primeira edição do Primavera Sound São Paulo. Um cenário diferente daquele primeira vinda à capital paranaense. Agora os Monkeys são uma das mais importantes bandas de rock do mundo. Uma década e meia atrás, com dois badalados e já grandiosos álbuns na carreira, eram a grande aposta da música britânica naquela época. As letras de Turner, bastante incensadas pela imprensa musical. Quatro garotos de vinte e poucos anos com um indie rock avassalador, pungente e urgente como um quase hardcore. Com o acréscimo de uma habilidade lírica pouco vista para moleques daquela idade. Tanto que, apesar de ainda estarem em início de carreira, já ocupavam na grade do line up daquele dia em Curitiba um espaço mais importante que a veterana Björk, por exemplo (a mesma que, por sinal, tocou horas antes dos ingleses no mesmo Primavera Sound SP).

Portanto, os astros que hoje se aproximam da quarta década da idade estão, se comparados com aqueles mesmos de uma década e meia atrás um tanto mais seguros do que são no momento e do lugar que ocupam dentro do mundo musical. Alex Turner tem presença de palco monstruosa, já um tanto liberto da obrigação de sempre tocar sua guitarra, transforma-se naquele rockstar marrento, exalando propositalmente sensualidade, para fazer os hormônios das teenagers e pós-adolescentes da plateia passarem do ponto de ebulição, gerando na plateia da Pedreira gritos constantes, típicos de uma juventude feminina diante de um ídolo do rock desde os tempos de Elvis Presley e dos Beatles.

No palco, Turner não só corresponde como também provoca e excita. Bastante. No figurino retrô, nas poses um tanto quanto teatrais, no jeito de se comportar no palco e se portar por trás do microfone. Parece muito concentrado em representar essa figura, o que suscita também um certo desconforto em quem quer de um show algo maior do que um mero jogo sexual entre ídolo e fã.

Musicalmente, Arctic Monkeys é sinônimo de uma grande banda. Primeiro pelo fato do quarteto nunca se prender a uma zona de conforto. Depois de alcançado o estrelato de forma até precoce, não se pode acusá-lo de comodismo. A cada novo disco, uma tentativa de se reinventar e trilhar por novos caminhos. Até chegar ao novíssimo álbum, disponibilizado nas lojas e plataformas de streaming na semana anterior da vinda da banda ao Brasil. Sétimo álbum em vinte anos de carreira, The Car é uma bela proposta de se chegar à excelência de um pop refinado, com pitadas de falsetes, grooves e orquestrações, na melhor tradição sixtie britânica. Uma evolução do predecessor, Tranquility Base Hotel + Casino, e direcionamento bem diferente dos outros anteriores, que flertavam com o stoner, o psicodélico, o hard rock e até mesmo o heavy metal.

O que faz chegar ao ponto exato para se costurar um repertório fantástico passeando por todos os sete álbuns da carreira e criando um belo mosaico do que são esses vinte anos de trajetória. Na Pedreira foram 21 canções distribuídas de forma nada desigual. Forma cinco dos dois primeiros álbuns, da série de arranjos quase como um rolo compressor hardcore com os instrumentos atuando juntos e sem dar muito tempo para a respiração ao acompanhar os vocais urgentes de Turner. Outras cinco da etapa seguinte, quando a banda embarcou nas viagens quase solitárias do deserto californiano para gravar mais dois discos com uma psicodelia que nunca seria encontrada no velho continente europeu. Mais cinco só de AM, o disco divisor de águas da carreira, aquele capaz de fornecer sucessos avassaladores, daqueles de fazer qualquer arena cantar em uníssono e entrar em transe enquanto isso. Aliás, este é aquele disco que diz muito sobre o set list de uma banda. Afinal, normal é deixar, hoje em dia, hits lá do início da trajetória, mas é impossível subir ao palco sem tocar clássicos como “Arabella” (com direito a final emulando o riff contagiante de “War Pigs”, do Black Sabbath), “R U Mine?” ou “Do I Wanna Know?”. Do período mais recente, requintado e luxuoso, seis canções foram pinçadas para completar a noite: os dois singles doTranquility Base Hotel + Casino mais pérolas complexas que ainda estão para ser digeridas pelo público (ainda mais quando executadas ao vivo, com o apoio de mais três músicos recrutados para a turnê) como “Sculpture Of Anything Goes”, “Body Paint”, “There’d Be A Mirrorball” e a faixa-título.

Nessa noite quem foi ver os britânicos ainda foi brindado com a oportunidade de ter uma grande banda como atração de abertura. Quem tocou também foi o Interpol, formação de carreira já tão longeva quanto os Monkeys e com o mesmo número de álbuns na discografia. Coube ao trio americano (que vira quinteto ao vivo) dar o pontapé inicial da noite com um repertório calibrado de 13 peças. Três delas retiradas do mais novo álbum (The Other Side of Make-Believe, lançado no meio deste ano) e oito dos incensados dois primeiros discos (entre estas, “Untitled”, “Evil”, “C’Mere”, “PDA”  e “Slow Hands”). Tocando sabiamente numa dimensão espacial mais reduzida de palco (os músicos todos lá na frente, bem próximos uns dos outros, como se fosse em um clube indie do Brooklyn nova-iorquino, de onde a banda saiu para conquistar o planeta) e com uma atmosfera soturna proporcionada pela combinação de muita fumaça e predominantes luzes azuis e vermelhas, nem parecia que os guitarristas Paul Banks e Daniel Kessler mais o baterista Sam Fogarino encaravam uma Pedreira Paulo Leminski numa noite muito fria de primavera.

O Interpol mandou ver um puta show de abertura, digno de qualquer outra noite em local fechado e de capacidade bem menor. O que enaltece ainda mais a grandiosidade do Arctic Monkeys nos dias de hoje. Muito provavelmente algo que Alex Turner, Jamie Cook (guitarra), Matt Helders (bateria e backings) e Nick O’Malley (baixo e backings) não poderiam sequer imaginar há quinze anos.

Set List Arctic Monkeys: “Sculptures Of Anything Goes”, “Brainstorm”, “Snap Out Of It”, “Crying Lightning”, “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, “Body Paint”, “Four Out Of Five”, “Arabella”, “Potion Approaching”, “The Car”, “Cornerstone”, “Do I Wanna Know?”, “Tranquility Base Hotel + Casino”, “Pretty Visitors”, “Do Me a Favour”, “From The Ritz To The Rubble” e “505”. Bis:  There’d Better Be a Mirrorball”, “I Bet You Look Good On The Dancefloor” e “R U Mine?”.

Set list Interpol: Untitled, “Toni”, “Evil”, “Fables”, “C’mere”, “Narc”, “Passenger”, “The Rover”, “Rest My Chemistry”, “Obstacle 1”, “The New”, “PDA” e “Slow Hands”.

Movies

Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

Music

Gilberto Gil

Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Young/Divulgação

Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.

Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.

Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?

De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente

Tropicália

Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.

Família no palco

Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”. 

Reality show

Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gilreality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.

Repertório clássico

Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.

Laços com o reggae

Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.

Fase pop

Depois de assinar com a  Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.

Ex-ministro da cultura

Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.

Imortal da ABL

Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.

Music

Rodrigo Amarante – ao vivo

Ambientação intimista da Ópera de Arame se revela propícia às múltiplas facetas apresentadas pelo artista em turnê do novo álbum solo Drama

Texto por Leonardo Andreiko

Fotos: Janaina Monteiro (cor) e Leonardo Andreiko (p&b)

A noite invernal curitibana, sempre fria e chuvosa, condiciona o público de diversos modos. Cachecol e japona são itens obrigatórios a qualquer morador da capital paranaense. Pegar uma chuvinha do carro até o show – e depois do show até o carro – é rotina nos eventos desse período. Mas o frio não foi suficiente e a Ópera de Arame se aqueceu com a performance de Rodrigo Amarante e sua banda na noite de 17 de setembro, um sábado.

Enquanto a plateia preencheu-se aos poucos, era palpável a antecipação no ar. Sua última apresentação da carreira solo na cidade havia sido em 2013, em turnê com o début Cavalo. Dessa vez, Amarante veio estrear Drama (lançado em 2021) no Brasil, país do qual esteve distante desde a turnê comemorativa Los Hermanos 2019. Naquela ocasião, a banda passou por Curitiba e lotou a Pedreira Paulo Leminski, ao lado do palco em que anos depois se apresentaria.

A ambientação mais intimista da Ópera, com sua arquitetura em metal e vidro, é muito mais apropriada às múltiplas facetas que Rodrigo Amarante apresenta desde o fim dos Hermanos. Assim como em seu novo álbum, o músico começou a performance dessa noite com lançamentos: a instrumental “Drama” (que dá nome ao disco) deu o tom para a entrada dos músicos em palco e logo se sucedeu a vivaz “Maré”, primeiro single do álbum.

No palco com banda completa, Rodrigo apresentou ao público curitibano a veia solar que fez de Drama um trabalho tão distinto de Cavalo, que representava um cosmopolita sem casa, diluído entre vivências. Agora, morador de Los Angeles há anos, o artista volta-se a sua infância e ao eterno conflito da subjetividade com a sensibilidade, o emocional que o homem é ensinado a reprimir conforme cresce. Dessa forma, continuando com “Tango” e “Tanto”, os músicos apresentam essa “nova atmosfera” do disco, que explora seus temas com mais extroversão e grandiosidade que seu antecessor.

Justamente por isso, Drama precisa de mais que um violão branco e a voz de seu autor para preencher os palcos. Acompanhando Amarante, performaram Rodrigo Barba (bateria) e Alberto “Bubu” Continentino (baixo), companheiros de Los Hermanos; Pedro Sá (guitarra), que integrou a Banda Cê, de Caetano Veloso; o músico e pesquisador Daniel Castanheira (percussão); e a multi-instrumentista Nana Carneiro da Cunha (piano e cello). O grupo de peso auxiliou Rodrigo na difícil tarefa de uma plêiade de sentimentos por entre uma vasta discografia, que conta com três bandas (Los Hermanos, Orquestra Imperial, Little Joy) e dois discos solo. E o resultado foi magistral. A energia de “Maná” e “Pode Ser” (Orquestra Imperial) fez vibrar a plateia. Também houve liberdade para experimentalismos na consagrada “Mon Nom” e “Tao”, que foi repaginada sem o naipe de sopros, que deu espaço aos solos da banda.

Ainda, uma pausa da banda abriu espaço para que Amarante, sozinho, iluminado por um único holofote num palco escuro, nos presenteasse com algumas de suas músicas mais tocantes. “Irene”, “Evaporar” (Little Joy) e “The Ribbon” ecoaram em toda a estrutura da Ópera, que só não lacrimejou porque não podia.

A noite integrou perfeitamente clássicos, como “O Vento” (Los Hermanos), sucessos como “Tuyo” (da série Narcos) e elementos de Drama, como “I Can’t Wait”, para tornar a apresentação muito mais que a exposição ao vivo de um novo disco. Para finalizar a primeira parte do show, antes do bis, Rodrigo ostentou sua potência poética com uma das mais belas composições do álbum, “The End”, que alça a antiga demo “That Old Dream Of Ours” para novos horizontes com a integração da banda.

Na medida que avançava no set list, o artista brincava com passado e presente, rememorava e repaginava. Dava novos passos e sentia a confiança em olhar para trás, que só faz figurar nos colossos da música brasileira. É cedo, decerto, para sacralizar uma carreira solo ainda insipiente, ainda que já calejada por décadas de ação. Mas se o futuro reserva a Rodrigo Amarante o mesmo esmero e sobriedade com a música que já é evidente, só nos resta reservar a ele um espaço entre nossos melhores.

E assim, mais uma vez, o cometa que é o artista passou por Curitiba, riscou o tempo e se foi.

Set list: “Maré”, “Tango”, “Tanto”, “Nada em Vão”, “Mon Nom”, “I Can’t Wait”, “Eu Com Você”, “O Cometa”, “Tara”, “Tuyo”, “Irene”, “Evaporar”, “The Ribbon”, “Tardei”, “Um Milhão”, “Tao”, “Maná” e “The End”. Bis: “O Vento” e “Pode Ser”.