Listen Without Prejudice Vol 1 nascia há trinta anos como uma necessária colcha de retalhos para afirmar a individualidade e a sexualidade do artista

Texto por Fábio Soares
Foto: Reprodução
Havia uma palavra que muito bem definia a virada do ano de 1989 para 1990: incerteza. A cortina de ferro do leste europeu estava em iminente queda, Mikhail Gorbachev comandava a dissolução da União Soviética no melhor estilo “passa-se o ponto” e uma incógnita era alçada à presidência do Brasil. Na música, uma desnorteação só: Madonna arriscando tudo com sua Blond Ambition Tour, David Bowie com uma Sound + Vision Tour que não promovia nenhum novo trabalho e as rádios sendo bombardeadas por New Kids On The Block e a armação belga Technotronic com sua pegajosa “Pump Up The Jam”.
Foi sob este caótico cenário que George Michael lapidou seu mais emblemático trabalho. Ele tinha um motivo crucial para isto: seu álbum de estreia Faith, lançado no final de 1987, levou ao mundo a imagem do sex simbol que vestia jeans apertado, jaqueta de couro e óculos aviador. Terror da mulherada? Para os outros, mas não para ele. Homossexual, sabia que assumir publicamente sua orientação colocaria seu segundo álbum numa condição de pública execração num mundo onde a sigla GLS ainda estava longe de ser criada. A solução? Já que não poderia gritar aos quatro ventos seu orgulho em ser gay, faria isso mandando pequenos sinais.
Listen Without Prejudice Vol. 1 (em português, Ouça Sem Preconceito Vol. 1) chegava às lojas no dia 3 de setembro de 1990 com uma missão: mandar ao mundo o poder da palavra e não a imagem de seu criador. Sua capa já era a primeira pista disso: centenas de anônimos aglomerados, muitos de peito nu. Algo como se quisesse ser dito que “George é igual a cada um de vocês e quer apenas ser feliz com sua condição”.
“Praying For Time” magistralmente abria o álbum com sua mensagem pessimista: “É difícil amar/Há tanto para odiar/ Agarrando-se numa esperança/ Quando não há (mais) esperança para se agarrar”. A aids atingira o status de pandemia, gays sofriam como nunca o preconceito de um mundo extremamente careta e a faixa seguinte viria como um arrasa-quarteirão sem procedentes. “Freedom ’90” já nascia GIGANTESCA como conceito audiovisual. Seria o definitivo hino gay para as pistas, para as massas, para as festas privê. Com uma introdução que até ursos polares reconheceriam a partir de então, não bastava limitar seu groove às caixas de som. Era necessário levá-la as telas e numa arriscadíssima manobra. Então, uma constelação de top models dublou a voz de George: Naomi Campbell, Linda Evangelista, Christy Turlington, Tatjana Patitz e Cindy Crawford elevaram a sensualidade da canção à sua enésima potência. O imaginário de todos já estava preenchido pelo belíssimo clipe dirigido pelo fotógrafo de moda David Fincher (que poucos anos depois assinaria longas-metragens de ficção como O Clube da Luta e Seven – Os Sete Pecados Capitais) com uma mensagem mais do que clara em sua letra: “Acho que há algo que você deve saber/ Acho que já é hora de falar “eu te disse”/ Há algo dentro de mim/ Há outra pessoa que tenho que ser”.
Após a festa do êxtase de “Freedom ’90”, a alcunha de “colcha de retalhos” do álbum tomava forma com a dilacerante interpretação de George em “They Won’t Go When I Go”. Uma ode de dor àqueles que diariamente partiam vitimados pelo HIV: “Longe das lágrimas/ Mentes sujas enganam o puro/ Os inocentes irão, com certeza/Para eles há um lugar de descanso”. Para aliviar corações dilacerados, “Something To Save” trazia leveza em sua levada folk: “Porque eu não tenho segredos de você/Não tenho nada a esconder/ E eu estou aberto a todas as suas perguntas/Porque você não pode alcançar o interior?”
Em seu provável melhor momento como letrista, o artista transformou “Cowboys And Angels” em seu parque de diversões particular. Sua levada jazzy é o pano de fundo perfeito ao amor que é desejado mas nunca correspondido: “Eu deveria saber a essa altura do modo como lutei por você/ A culpa não é sua/ Todo mundo é igual”. O falso otimismo de “Waiting For A Day” – com uma rápida citação de “You Can’t Aways Get What You Want” – trazia a incerteza sobre o que viria naqueles anos nove-zero como um salvo-conduto sobre os erros cometidos nos 1980: “Agora todos falam sobre a nova década/ Os números mágicos/ Então basta dizer adeus aos erros estúpidos que cometeu?”
Soando como premonitória, a dramática “Mother’s Pride” parecia prever o drama das mães dos jovens soldados americanos enviados ao Kuwait no confronto iniciado no mês anterior ao lançamento do álbum: “É um soldado que acena na costa/ E em seu coração chegou a hora de perder um filho”. No total, 146 soldados perderam a vida na guerra que duraria até fevereiro de 1991.
A assobiável “Heal The Pain” mantém o clima “montanha-russa” do disco. Com sua letra repleta de versos sobre autoafirmação, foi amplamente executada nas rádios brasileiras da época – tanto que ancorou a vinda do cantor ao Rock In Rio, em janeiro de 1991 (a foto acima deste texto é desta apresentação no estádio do Maracanã). E em 2019 fez parte da trilha sonora do longa Last Christmas (que no Brasil recebeu o título de Uma Segunda Chance de Amar), inspirado na canção de mesmo nome de George Michael.
Porta aberta para a dançante “Soul Free” desfilar sua sensualidade com uma letra que já entrega tudo: “Quando você toca em mim, baby/ Eu não tenho nenhuma escolha/ Oh que doce tentação em sua voz”. Seu apelo para as pistas, no entanto, soou como uma fraca tentativa. O epílogo do álbum, porém, é magnífico. A belíssima (e acústica) “Waiting” traz toda a dúvida e desesperança sobre o que traria aqueles anos 1990: “Agora sei que não há como descrever aqueles erros/ Acredite em mim/ Eu não mentiria porque você feriu meu orgulho/ E acho que existe uma estrada sem você”. Fazendo as vezes de créditos finais de uma película, a canção amplifica a súplica de Listen Without Prejudice Vol. 1 voltando à sua capa.
Este é um disco sobre cada indivíduo que está ali, sem preconceitos. Pode até não ter atingido a excelência de Faith, porém reafirmou George como grande nome pop numa colcha de retalhos datada mas necessária naquela virada de década. Um disco sobre ele, sobre você, sobre jamais se desistir da liberdade. Um disco sobre nós.
