Conhecido pelos protagonistas que espelham suas opiniões e personalidade, Woody Allen agora faz um filme inteiro que é “ele próprio”

Texto por Luca Passos
Foto: Imagem Filmes
Mesmo há anos envolto em controvérsias (já bem conhecidas), o veterano diretor estadunidense Woody Allen segue imparável na manutenção de uma impressionante frequência de produção de filmes que se mantém na média de um por ano. Porém, no meio desse enorme catálogo, interessa mais distinguir quais produções saem do estigma do “fazer automático” ao qual o diretor é rotulado já há algum tempo. O Festival do Amor (Rifkin’s Festival, Espanha/EUA/Itália, 2021 – Imagem Filmes) é um caso um tanto estranho neste universo fílmico quase que maquinal do Woody da última década.
Nele, o também veterano Wallace Shawn interpreta Mort Rifkin, crítico e professor de cinema nova-iorquino, bem como escritor frustrado, que está na cidade espanhola de San Sebastian acompanhando sua esposa de longa-data Sue (Gina Gershon) no famoso festival de cinema da cidade. A personalidade dos dois é contrastante tanto na fisionomia como no modo de falar, suas preocupações, vestimentas. E o que se vê no filme é o degringolar dessa relação e os caminhos que os dois seguem para estar fora dela. Sue, autoafirmativa, ambiciosa e consciente de seu poder de atração, começa um caso com seu cliente, o atraente e jovem diretor de cinema Phillipe (Louis Garrel), que está na crista da onda de sua carreira: ele é a sensação do festival. Mort, mais retraído, pouco atraente pelos padrões convencionais, acaba tropeçando numa relação com uma jovem médica num casamento infeliz, Joanna Rojas (Elena Anaya), que segue invariavelmente o tom de uma paixão platônica.
No entanto, dois fatores fazem esse filme ir além de uma comédia romântica comum com um fundo de uma cidade europeia e uma trilha sonora também elegante. O primeiro é, obviamente, a capacidade de Woody Allen de criar, mesmo a contragosto de seus detratores mais exigentes, diálogos e monólogos críveis e inteligentes, com uma leveza que, também, perpassa uma intelectualidade suportável e interessante. O segundo é a brincadeira que ele faz ao dialogar com cenas de diversos filmes, como 8½ (do italiano Federico Fellini), Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois (do francês François Truffaut), Cidadão Kane (do estadunidense Orson Welles) e O Anjo Exterminador (do hispano-mexicano Luis Buñuel), fazendo o personagem de Shawn basear e trabalhar suas próprias travas e inseguranças dentro desses trechos recriados. Tais cenas, junto com os monólogos em voz off, fazem parte da construção do caráter de Mort a partir de uma chave que é, na verdade, um guia de todas as obras de Allen: a psicanálise (o filme é a rememoração do protagonista numa sessão com seu psiquiatra e a escolha dos títulos que dialogam com a trama não é acidental).
Como muitos outros desta mais recente fase do diretor, Rifkin’s Festival é, na verdade, sobre o próprio Woody Allen. Não numa perspectiva de que toda a arte é, em última instância sobre o artista que a produz (o que é óbvio), mas é conscientemente feito por ele tendo em visto a caricatura que criou de si mesmo ao longo dos anos. Todos os protagonistas são ele próprio espelhado (a insegurança, o pedantismo consciente, as críticas ao cinema atual, a pretensão). E, como o filme se passa todo na cabeça do personagem principal, todo o filme é o Woody Allen. Por isso, a atuação de Wallace Shawn causa tanta estranheza: ele não procura fazer uma mímica do diretor como outros tentaram, mas leva seus próprios cacoetes para o personagem, o que faz o texto de Allen parecer, talvez mais por uma questão de expectativa, um pouco deslocado em sua boca.
Além de uma direção de atores fraca, Allen parece não ter vontade de fazer um filme que se sobressaia tecnicamente de algum modo. Todas as cenas são montadas de um jeito limpo: efetivo porém apenas isso. O amarelo do fim de tarde aqui e ali, o azul do mar, o verde dos parques, tudo é muito bonito, muito típico de uma cidade turística, mas não passa disso. A exploração da cidade como espaço fílmico para nos efeitos da própria cidade: a beleza de uma bela cidade basca fotografada que, olhando cenas aleatórias do filme, não se sabe se foi filmada para uma agência de turismo ou para o filme de um diretor octogenário.
O Festival do Amor é um filme que, tomando a linguagem da própria obra, evita as questões políticas e foca nas “grandes questões” atemporais – essas que todos nós, vez ou outra, nos confrontamos com o significado da vida ou a morte. Porém, é nesse embate mesmo que ele falha de modo irreparável: a história, diferentemente de suas referências, resolve-se de um modo fácil, autoindulgente até demais. Allen coloca seu longa no meio-termo entre o que ele próprio, em uma determinada cena, apresenta como o cinema americano (feliz, idealista) e o cinema europeu (amargo, cínico e realista). É consciente da existência dos problemas que afetam o ser humano (um que obrigatoriamente é da classe alta, incluso nesse grupo de intelectuais, artistas e diletantes que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “aldeia global”) ao mesmo tempo que procura a solução para eles até um bom e agradável fade to black. Pela realidade da produção de Allen, uma obra coproduzida por Estados Unidos, Espanha e Itália, isso faz sentido. Porém a “saída” à americana que o personagem encontra para seus problemas é executada de uma maneira abrupta, que não acompanha o desenvolvimento da trama e, por isso mesmo, traz um sentimento de pieguice que não se contorna facilmente.
Aqui o happy end, mesmo que faça, em geral, o gosto de quem escreve, é unhappy. Allen está evidentemente tão no automático fazendo um filme sobre si mesmo que parece esquecer de se questionar de verdade. Parece que não aprendeu a lição que deve ter tido com os filmes que ama e fez questão de mostrar-nos.