Kristen Stewart e Katy O’Brian protagonizam um neonoir que flexiona os músculos, pinga sangue e expira paixão
Texto por Tais Zago
Foto: Synapse/Divulgação
Estamos no final dos anos 1980 e Lou (Kristen Stewart) é a gerente e faz-tudo de uma academia encardida nos confins do Novo México. O ambiente, frequentado principalmente por fisiculturistas, é austero e pouco convidativo. Suas paredes são forradas com frases de motivação no estilo no pain no gain, embarcando nos clichês divulgados em uma época em que os heróis de aventura nos cinemas eram Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone. Em sua rotina mundana, Lou funciona no piloto automático. Na vida pessoal, cultiva a solidão. Eventualmente ela se encontra com Daisy (Anna Baryshnikov) mais por insistência da mesma do que por vontade própria.
Isso tudo muda com a chegada de Jackie (Katy O’Brian), uma jovem mochileira que está de passagem a caminho de um concurso de bodybuilding em Las Vegas. Ela começa a treinar na academia de Lou e já no primeiro dia as duas começam um caso amoroso. Jackie se muda para a casa da gerente e a ajuda a se preparar para a competição, com ajuda de (muitos) anabolizantes que a protagonista trafica na academia. A atração entre as duas mulheres parece aumentar com o ganho muscular de Jackie. Lou não esconde a fascinação pelo corpo da namorada.
A relativa paz do casal é interrompida quando Lou descobre que Jackie está trabalhando como garçonete no Rancho de Treinamento de Tiros de Lou Sr. (Ed Harris), que além do rancho comanda o tráfico de armas da região. Para ficar ainda pior, Jackie envolveu-se brevemente com JJ (Dave Franco), o cunhado violento e abusador de Lou e parceiro de trabalho de Lou Sr. A tensão chega ao primeiro ápice quando a irmã de Lou, Beth (Jena Malone), é espancada por JJ e vai parar no hospital. Lou confessa a Jackie que gostaria de ver o cunhado morto.
A diretora Rose Glass, que debutou em 2019 com seu primeiro longa Saint Maud, também tem coautoria no roteiro de Love Lies Bleeding – O Amor Sangra (Love Live Bleeding, Reino Unido/EUA, 2024 – Synapse) junto com Weronika Tofilska. Já em Saint Maud, Glass nos mostrou que não é dada a romantizações desnecessárias e não suaviza os personagens para angariar simpatias. Suas mulheres são fortes e quebram tabus mesmo quando enquadradas como vilãs ou anti-heroínas. E isso é bastante claro nas escolhas que faz na direção desta obra mais recente. Em uma intricada mistura tarantinesca, ela nos oferece gore, sexo, paixão e crime. Os frames se alteram entre a realidade e fantasia tornadas palpáveis pelos olhos de Jackie e Lou. A adoração dos músculos salientes e besuntados de óleo, as cores fosforescentes do final dos anos 1980, o uso da luz como um determinante do caráter dos personagens se mistura ao drama e ao sangue que as escolhas das mesmas nos levam a ver jorrar sem timidez.
Glass é inspirada pela iluminação dura e pontual dos sexy thrillers das décadas de 1980 e 1990 e a sonoplastia é digna do melhor dos slasher movies. O drama é marcado pelo exagero e pelo absurdo, podendo nos arrastar à gargalhadas aparentemente involuntárias – porém até essas risadas são calculadas e fazem parte da ambientação criada pela autora e diretora. A química na tela entre Kristen e Katy é incrivelmente sexual. O desejo de Lou é devorar e ser devorada e a fisicamente forte Katy, muitas vezes, é o elo frágil em suas mãos. Para completar a fórmula de sucesso a trilha sonora é espetacular, uma recorrência nas produções da A24 pelas mãos de Clint Mansell, compositor já consagrado pelos seus trabalhos junto ao cineasta Darren Aronofsky.
O Amor Sangra pega Thelma & Louise (1991), Assassinos por Natureza (1994) e Ligadas Pelo Desejo (1996); joga tudo no liquidificador; coloca um casaquinho de tactel, um par de Reeboks e mullets; passa pelo filtro de Tarantino e depois adiciona uma pitada de Breaking Bad (2008), virando um neonoir de um casal de lésbicas que atua irracionalmente guiado pelos traumas de suas histórias familiares. O resultado é espetacular, o cast maravilhoso (menção honrosa para o “careca com rabinho de cavalo” Ed Harris) e visualmente delicioso. Para mim, já é um dos melhores filmes de 2024 e certamente tem grande potencial de entrar para o rol dos cult movies.
Abismo na relação entre os três músicos deixa o show dedicado ao álbum de estreia morno e aquém da devoção dos fãs brasileiros
Textos por Abonico Smith (Curitiba) e Fabio Soares (São Paulo)
Foto: Abonico Smith
Se existe uma plena certeza no mundo da música pop ela se encontra na implacabilidade do tempo. Para o bem e para o mal. No primeiro caso, ele corrige injustiças e acaba vir a determinar que um disco ou artista que porventura tenha passado meio em branco no passado seja descoberto e passe a se tornar algo bem influente para as gerações posteriores. Tom Zé e, mais recentemente, Kate Bush são bons exemplos disso. No segundo, o tempo age para desgastar a química inicial que deu certo e encantou muita gente lá no inicio. Acontece quase sempre com bandas. Quando há duas ou mais pessoas envolvidas na mesma carreira, é bem provável que no decorrer dos anos comecem a aparecer conflitos de interesse, mudanças de percepções e divergências de vontades. Fora da música, é como se distanciar daquelas amizades de infância e adolescência que sempre habitaram a nossa memória. Você pode lembrar as pessoas com carinho só que a dureza da vida adulta e a transformação das personalidades faz tudo esfriar de um jeito que voltar atrás e continuar aquela proximidade de outrora é tão impossível quanto parar os ponteiros do relógio.
Com o A-ha foi exatamente isso o que ocorreu. Com quase quarenta anos de trajetória nas costas, o trio norueguês conquistou o sucesso com um punhado de músicas gravadas nos primeiros quatro álbuns, espalhados no intervalo de meia década (entre 1985 e 1990). De lá para cá vieram mais alguns discos, muitas brigas e desavenças internas, duas separações acompanhadas por projetos solo e o retorno à manutenção da marca por meio de viagens pelo mundo. A última delas, que somou passagens por seis cidades brasileiras e sete apresentações ao vivo, foi determinante para que se revelasse em cima do palco toda a distância que hoje existe entre Morten Harket (vocais), Magne Furuholmen (teclados e violão) e Pal Waaktaar-Savoy (guitarras e violão). Em Curitiba, escala final da turnê que comemorava os 35 anos do álbum de estreia Hunting High And Low (na verdade, a vinda ao nosso país estava marcada para o segundo semestre de 2020, mas dois adiamentos aconteceram por conta da extensão da pandemia da covid-19), fico mais do que evidente esse abismo todo entre os três. O documentário A-ha: The Movie, lançado agora nos cinemas europeus e exibido em junho pelo festival In-Edit Brasil, já entregava que os camarins são separados e os três raramente aparecem na mesma cena durante entrevistas e flagrantes de imagens de bastidores. Na capital paranaense, ele mal se falavam ou olhavam em cima do palco montado atrás de um dos gols da Arena da Baixada. Também não se abraçaram. Nem no encerramento, durante o agradecimento ao público, o que costuma ser algo corriqueiro quando se trata de um grupo de rock.
Juntar os três em uma mesma fotografia não era algo tão fácil em virtude da logística montada no estádio do Athlético Paranaense. De qualquer maneira, a melhor saída para ilustrar este texto seria não cometer injustiça com qualquer um dos músicos. Deixar um ou dois deles fora de cena se equivaleria a não reconhecer que o A-ha só sobrevive hoje pela unidade que se forma quando todas as peças musicais do quebra-cabeças norueguês se juntam. Afinal, a qualidade e o peso das letras, melodias, riffs e arranjos são igualmente distribuídos aos três. Morten, Mags e Pal sabem que são fortes juntos, mesmo que por anos precisem se tolerar amistosamente para manter a engrenagem chamada A-ha em ação. Tudo isto significa a sobrevivência no mercado musical, apesar de não haver muita renovação de plateia – o que se viu na arquibancada da Arena foi um maciço desfile de fãs acima dos 40 anos de idade.
Ter deixado alguns hits de fora do set list para poder abrigar em seu miolo o repertório integral de Hunting High And Low pode ter desagradado muita gente que estava por lá na expectativa de ouvir uma live version de “You Are The One”, “Stay On These Roads” ou “Touchy!”, por exemplo. O fato de muitas faixas mais obscuras do primeiro álbum, por melhores que sejam em estúdio, não ganharem o brilho necessário quando executadas ao vivo também não foi tão relevante assim. Só que o que mais pesou muito no cômputo final para o saldo de quase duas horas de um show morno, muito morno, foi mesmo a falta de química entre os três integrantes. As principais canções são boas e incendeiam qualquer público de qualquer faixa etária. Os três são excelentes músicos, cada qual em seu instrumento predominante – o já sessentão Morten, sobretudo, não deixa nada a dever no alcance de oitavas mais agudas pelo qual se tornou famoso desde “Take On Me”, apesar de todo mundo saber que o avanço da idade acaba impondo certas dificuldades e limitações vocais a qualquer pessoa que canta. Só que precisão técnica e profissionalismo extremo não fazem engrenar um show de rock em sua totalidade. Rock é e sempre foi pegada, energia, pulsação, dinâmica, ímpeto, víscera, explosão. O resto ainda pode ser música das boas, claro, mas não coloca fogo em um show de rock tal qual o concebemos desde os anos 1950.
Essa apresentação do A-ha na Arena da Baixada, na noite de 25 de julho, estava mais para um concerto de câmara de música pop. No palco, uma miniorquestra de seis integrantes. Havia três músicos de apoio, também vindos da Noruega, de exímio talento nos sintetizadores, contrabaixo e bateria. E havia os outros três, os astros principais da noite, procurando ser tão precisos quanto um relógio (mesmo com pequenos deslizes e erros de notas durante justamente o gran finale com “Take On Me”) em respeito aos fãs e ao atraso de dois anos na vinda ao nosso país. Só que um relógio funciona com uma engrenagem mecânica. Sem sentimentos, sem emoções, sem arroubos. Tique-taque depois de outro tique-taque, tão somente. Do início ao fim era perceptível que havia muito mais brilho no olho em quem estava pelas arquibancadas inferior e superior – embora valha ressaltar todo o esforço do tecladista Mags ao se apresentar naquela noite depois de ter passado horas de apuro na cidade por causa de um violento piriri.
Em virtude de tamanha devoção do público brasileiro, o A-ha costuma volta e meia tocar aqui no país. Tomara que sobrevivam internamente às turras até a próxima oportunidade de voltarem para cá e se acertem em todas as suas diferenças. Com o repertório e a técnica que eles têm (e são dois elementos que fazem falta a muitas bandas por aí mundo afora), as chances de Morten, Mags e Pal protagonizarem uma noite bem mais quente e devolverem à altura toda a energia que sai de casa para ir vê-los em uma segunda-feira à noite. Ficaria não apenas mais justo no fim das contas, mas também mais propício para o que se entende por um show de rock. (AS)
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Nos primeiros minutos do documentário A-ha: The Movie, o entrevistador dirige um questionamento simples e objetivo ao tecladista Magne Furuholmen.
– Ainda tem vontade de gravar material inédito com a banda?
– Não!
– Não?
– Não.
– Por quê?
– Porque, a esta altura do campeonato, seria uma máquina de moer cérebros e não quero passar por este processo novamente.
Anos após a declaração acima, a previsão de Magne não se concretizou por um único motivo: o tecladista não suporta o vocalista Morten Harket , tampouco o guitarrista Pal Waaktaar-Savoy. Mas negócios são negócios e quando há cifras milionárias envolvidas, abre-se uma exceção.
O A-ha já pisou em solo brasileiro por umas 635 vezes. Chegou inclusive a se apresentar na Festa do Peão de Barretos, no ano de 2002. Tantas vezes, porém, não fez diminuir a idolatria que o público brasileiro sente pelo trio. Muito pelo contrário. E foi com este espírito de “karaokê de terça à noite” que um público aficcionado e carente de shows (a simples execução de “Everybody Wants To Rule The World”, do Tears For Fears, fez parte da plateia entoar sua melodia a plenos pulmões antes da banda norueguesa vir ao palco) dirigiu-se no último 19 de julho ao antigo Espaço das Américas, em São Paulo, que atualmente empresta seu nome a um renomado plano de saúde.
Desta vez, porém, a proposta era diferente. Com o pretexto de “comemorar” os trinta e cinco anos de lançamento do début Hunting High And Low (de 1985), a banda executou na íntegra seu álbum de estreia. Boa idéia? Talvez. Funcionou ao vivo? Não. Com uma modorrenta quadra de canções incidentais (incluindo a inédita (e fraquíssima) “Forest For The Trees, que será parte integrante de True North, novo album do trio a ser lançado agora em outubro, somente após quase meia hora de apresentação Hunting High And Low é revisitado com “Train Of Thought”. A categoria dos músicos permanece ilibada após quase quatro décadas de carreira, incluindo o alcance vocal de Harket, atingindo inimagináveis falsetes às vésperas de completar 63 anos de idade.
Claro que a devoção da plateia brasileira é um auxílio luxuoso que não pode ser desprezado. Coube ao público cantar os versos da faixa-título do álbum, executada inicialmente em formato semi-acústico. Já na tríade “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale” e “The Sun Always Shines On TV”, as onipresentes texturas de sintetizadores de Magne fazem a “cama sonora” funcionar. O público, completamente entregue, pouco importou-se com Pal isolar-se na extremidade direita do palco como um funcionário de cartório, em plena sexta-feira, rezando para o ponteiro do relógio chegar às cinco da tarde.
Após a execução da íntegra do primeiro álbum, coube a “Cry Wolf” e a espetacular “I’ve Been Losing You” prepararem a atmosfera para um bis curto, direto e com gosto de fim de feira. “Take On Me” é a “With Or Without You” do A-ha. Clássico obrigatório mesmo que seus integrantes queiram execrá-la.
Fim da apresentação. luzes acesas e uma certeza: Hunting High And Low segue como um dos mais importantes discos de estréia dos últimos 40 anos. Só que mas executá-lo na íntegra em um único show torna a apresentação burocrática e modorrenta, transformando o trio numa espécie de Imperatriz Leopoldinense da música pop, com desfiles extremamente técnicos para vencer campeonatos porém, longe (mas muito longe mesmo) de empolgar uma arquibancada. (FS)
Set list: “Sycamore Leaves”, “The Swing Of Things”, “Crying In The Rain”, “Forest For The Trees”* ou “You Have What It Takes”*, “Train Of Thought”, “Hunting High And Low”, “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale”, “The Sun Always Shines On TV”, “And You Tell Me”, “Love Is The Reason”, “I Dream Myself Alive”, “Here I Stand And Face The Rain”, “The Blood That Moves The Body”, “We’re Looking For Whales”, “Cry Wolf”, “I’ve Been Losing You” e “The Living Daylights”. Bis: “Take On Me”.
* As duas músicas se revezaram nesta posição durante esta turnê pelo Brasil
Nova obra do diretor Leos Carax é uma fábula musical sobre casal de artistas e sua filha mágica composta pela dupla Sparks
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Mubi/Divulgação
Leos Carax é indiscutivelmente um dos maiores nomes do cinema contemporâneo. E sua nova experiência surpreende. O diretor insere um elenco estrelado (e bastante popular) num musical estrito, no qual toda fala é musicada.
Annette (França/Bélgica/Alemanha/EUA/Japão/México/Suíça, 2021 – Mubi) é a história de um casal de artistas e sua primogênita. Adam Driver é Henry, um comediante recém-apaixonado por Ann (Marion Cotillard). Ambos no ápice de sua carreira, eles têm uma filha e tudo começa a ruir. Com poucos anos de idade, descobre-se que Annette, o bebê do casal, tem uma voz mágica, parte dom e parte maldição.
A história original, escrita pelos Sparks Brothers (Ron e Russel Mael), é adaptada com primazia espetacular – sua mise en scène é icônica e envolvente. Carax tem total controle do que ocorre em cena e, principalmente, das impressões que o espectador terá de suas sequências. Com música onipresente no longa, composta também pelos irmãos Mael, o diretor nos catapulta para uma crítica à superficialidade com que se encara a vida das estrelas pop, mas logo desvela uma trama muito mais intensa.
No entanto, a capacidade de tecer comentários com sua linguagem não é o fator determinante da experiência em Annette. É inegável a qualidade de Carax ao conduzir a obra, mas o andar da carruagem ascende problemas que rivalizam as camadas de interpretação que a direção propõe e roubam a cena.
O autor constrói uma espécie de fábula imagética: o palco, local de trabalho de ambos os protagonistas, é estendido para todo o universo do filme. Assim, a estilização de luzes, sombra e movimentação conferem ao longa traços oníricos que, aliados à atmosfera musical, transportam a história de Annette e seus pais para uma realidade distinta.
Contudo, há, ao longo do filme, uma repetição incessante da estrutura lírica das músicas, cada uma com poucos versos repetidos ostensivamente. Quando os versos são tão superficiais quanto os que ouvimos, refletindo opacamente as emoções e conflitos das personagens que os recitam, até a melodia mais encantadora torna-se maçante.
Sendo assim, o que pareceu iniciar como uma crítica à superficialidade com que se retratam as vidas de figuras famosas (ancoro a análise na constante referência à mídia de fofocas sensacionalista) sofre do mal que expõe. Em dados momentos, nem mesmo a competência ímpar do casal protagonista, que divide a cena com um Simon Helberg que desponta e atordoa aqueles acostumados com sua figura na série The Big Bang Theory, é capaz de entregar ao público a sensação intensa e profunda que parece dever ser transmitida.
Enquanto Annette encanta nossa fração analítica, que busca significar os símbolos e subtextos orquestrados pelo autor, suas canções repetitivas e monótonas empacam a audiência. A bela história ancorada na figura narcísica de Henry McHenry, com traços de uma das mais brilhantes atuações de Driver (bem como de Cotillard e Helberg), é ofuscada pela condução musical do longa-metragem. Assim, o espetacularizado retrato de um estilo de vida espetacular – e almejante dessa contínua exposição – torna-se em si mesmo caricato. Há sequências que, expostas à distância do que as precede e sucede, são fenomenais. Entretanto, o ritmo da obra sofre demais com a falta de lirismo daquilo que é a estrela de um musical: sua música.
A mágica tarde que despertou o artilheiro adormecido italiano que transformou em pesadelo o sonho da seleção brasileira na Copa de 1982
Texto por Fábio Soares
Foto: Reprodução
Em matéria de ludicidade, o castelo da Copa do Mundo da Espanha, de 1982, já era mágico a partir de seu mascote. Naranjito (Laranjinha, em espanhol), era uma simpática figura onipresente nos boletins dos telejornais da época. Aliado a este fato, o futebol apresentado pela seleção comandada por Telê Santana, mesmo nos amistosos preparatórios, encantava dez entre dez torcedores da Amarelinha à época – sobretudo no amistoso contra a Alemanha Ocidental, em março do mesmo ano, em um Maracanã com mais de 150 mil espectadores.
A euforia era justificável. Ainda na ressaca da Era Pelé encerrada oito anos antes, o futebol praticado por aquela seleção aproximava-se, a olhos vistos, ao patamar de arte. Outro fato marcante com tamanha identificação daquele time junto a seu povo: numa época em que transferências milionárias estavam longe de estar em voga, 99% dos jogadores atuavam no Brasil sendo Paulo Roberto Falcão (no Roma, da Itália) a exceção à regra.
Junho de 1982 chegou e o picadeiro dos sonhos começava já estava armado com o início do espetáculo já na duríssima estreia contra a União Soviética, em Sevilla. Na minha casa, um particular ritual foi iniciado comigo (com seis anos de idade) e minha irmã (com cinco, à época): picar quilos e quilos de jornais velhos a serem atirados pela janela a cada gol do Brasil. Na partida inicial, as primeiras remessas de papel foram defenestradas durante o 2 a 1, após um inacreditável frango de Waldir Peres. No entanto, a vitória com uma bomba de Éder Aleixo aos 42 minutos do segundo tempo tirou o peso da estreia e renovou a esperança pelo tetra.
A atmosfera de sonho iniciou-se de verdade a partir da segunda rodada nos 4 a 1 sobre a Escócia. Atuação monstruosa do meio-campo protagonizado por Toninho Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Em casa, mais papel picado arremessado pela janela e festa na Avenida Paulista após o jogo. Euforia justificável que cresceu como uma tsunami na terceira rodada, nos 4 a 0 sobre a Nova Zelândia. Novo show da dupla Zico-Falcão com o tal do “futebol arte” finalmente materializado aos olhos de quem o assistia. Sevilla estava entregue aos pés da seleção de Telê, enebriada com o que tinha visto nas três partidas da equipe na cidade. Na imprensa espanhola não se falava em outra coisa. Mesma euforia que inundava os telejornais e mesas-redondas após as partidas. Já para as crianças, aquele desenho animado ao vivo divertia, encantava e despertava paixão com a alegria nas ruas.
Na fase seguinte, a Seleção despediu-se ovacionada pela Andaluzia e rumou ao norte da Espanha para a segunda fase tendo Barcelona como sede. Em um formato que ainda não contemplava o hoje tradicional mata-mata, um triangular seria disputado entre Brasil (favoritíssimo), Argentina (com Maradona em seu primeiro Mundial) e uma desacreditadíssima Itália, que só se classificou na bacia das almas após ridículas atuações na primeira fase (só com empates contra Camarões, Polônia e Peru, apenas dois gols marcados e dois sofridos). A descrença era tanta que até a imprensa italiana virou as costas para seu escrete que chegou ao Mundial abalado pelo escândalo das loterias do calcio, deflagrado em 1980.
O triangular teve início na capital da Catalunha com um surpreendente 2 a 1 da Itália sobre os argentinos, últimos campeões. O caminho das pedras? Simples: colar o carrapato Gentile em Diego Maradona até quando ele fosse ao banheiro. Com sua principal estrela anulada, os portenhos foram pressionados à segunda rodada para o embate contra o Brasil. Confiança? Nenhuma. Os argentinos sabiam da tempestade que estava por vir. E ela veio em forma de um rolo compressor.
O Brasil x Argentina daquele 2 de julho eternamente permanecerá no panteão afetivo da memória de quem o assistiu. Impecável jogo coletivo do escrete de Telê, com atuação estratosférica de Falcão e com um gol de Júnior após passe milimétrico, genioso e genial de Zico. Muitos podem depreciar o feito ligando-o à expulsão de Maradona após criminosa entrada em Batista, mas o fato é que nem dois Diegos atrapalhariam a seleção naquela esplendorosa tarde barcelonense. Um alinhamento de planetas que alçou aquele time ao inevitável patamar de maior favorito a conquistar a Copa. Mais três espetáculos aconteceriam e o título era apenas uma questão de tempo. Na minha casa, eu e minha irmã sabíamos que toneladas de jornais velhos nos esperavam para serem picadas. Mas nenhum dos dois reclamou.
O 5 de Julho nasceu carrancudo e nublado naquele inverno paulistano. Nada, no entanto, que atrapalhasse o clima de euforia na cidade. Ninguém dormiu direito naquela noite devido à adrenalina acumulada pelas quatro primeiras partidas. A contra a Itália, segunda e última daquele triangular trazia um ingrediente a mais de certeza pela classificação: um simples empate bastaria para a equipe avançar às semifinais. Mas quem queria saber de empate? O DNA ofensivo daquele time tornara impensável qualquer mudança tática a fim de preservar uma igualdade classificatória. Telê jogaria para a frente e pronto! Ninguém questionou isto na véspera. Contrastando com o dia nublado paulistano, um sol catalão apareceu com toda a sua força sobre o Estádio Sarriá. Cenário perfeito para mais um show brasileiro, certo? Errado. O clima já estava estranho na véspera, com Zico “baleado” após o jogo contra a Argentina, tornando-se dúvida para o embate e tendo sua escalação confirmada somente após teste físico nos vestiários. Pelo lado italiano, a guerra entre time e imprensa persistia. Ninguém botava fé naquele setor ofensivo que não marcava gols. A falta de fé, no entanto, despertou um gigante até então adormecido na Copa.
Estrela da Juventus, Paolo Rossi chegava desacreditado à Espanha após cumprir suspensão de dois anos por suposto envolvimento no escândalo das loterias, em 1980. E a falta de confiança do atacante refletiu-se em campo: zero gols marcados nas quatro primeiras partidas. Nem o papa João Paulo II apostaria suas fichas em Rossi contra o Brasil. E talvez, nem o próprio Rossi.
O jogo teve início ao meio-dia mas eu e minha irmã já estávamos de pé desde as oito para picar papéis, naquela doce rotina de Copa. Na escalação, o verdadeiro quadrado mágico (este sim, verdadeiro; não aquele embuste de 2006) estava confirmado: Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates abasteceriam Serginho Chulapa e Éder na frente. Nada poderia dar errado em campo. Mas deu! Justamente no setor defensivo. Setor este que viu em Paolo Rossi a caricata figura de uma “besta-fera”. Logo aos cinco minutos, uma marcação frouxa permitiu que Cabrini, com muito espaço, cruzasse na altura da marca do pênalti e encontrasse Rossi, livre de marcação para vencer Waldir Peres inapelavelmente num cabeceio na diagonal. O artilheiro dos gols perdidos finalmente acordara. E agora? Sete minutos depois, porém, Zico mostrou que sua escalação foi mais que acertada: drible de calcanhar desconcertante e passe açucarado para Sócrates executar o goleiro Dino Zoff! 1 a 1. Eu e minha irmã em festa na janela com a volta da atmosfera de sonho. Nada atrapalharia a classificação, certo?
A segunda etapa chegou como um doloroso teste cardíaco: um pênalti claro de Luisinho em Paolo Rossi não marcado. Apesar da partida pegada e sem a fluidez dos embates anteriores, veio um momento de redenção: Aos 23 minutos, Júnior foi da lateral à intermediária, passou por Conti e, de trivela, encontrou Falcão próximo à meia-lua. Às suas costas (e como um foguete), Cerezo tornou-se opção de passe mais do que óbvia. Mas o Rei de Roma mudou de ideia, puxou para a perna esquerda e acertou uma bomba no ângulo direito de Zoff. Um golaço digno de Copa! Em casa, eu e minha irmã jogamos quase todo o estoque de papel picado pela janela. Enquanto isso, meu irmão gritava o provável maior “PUTA QUE PARIU” de sua vida. Euforia evidenciada pelas veias saltadas no pescoço de Falcão durante a comemoração. Enfim, faltavam apenas 22 minutos para a classificação e desta vez, nada mais sairia errado, certo?
Errado! Pela terceira e última vez. Seis minutos depois, após o escanteio italiano, Sócrates atrapalhou Oscar ao tentar afastar a bola, que caiu nos pés de Tardelli num arremate de pé esquerdo. O que se tornaria uma defesa fácil para Waldir Peres encontrou um Paolo Rossi livre na pequena área, girando com a crueldade de grande carrasco para marcar o terceiro gol. O drama virara pesadelo e os minutos derradeiros machucaram corações em verde e amarelo ao redor do planeta, sobretudo após o milagre operado por Zoff após a cabeçada à queima-roupa de Oscar. O gigante goleiro, à época com 40 anos, pôs ponto final a toda e qualquer tentativa de reação da equipe de Telê.
Após o apito final, silêncio, lágrimas e incredulidade. Paolo Rossi vestiu-se da figura de morte para nos assombrar. O artilheiro que nunca fazia gols marcaria ainda por três vezes naquela Copa: duas contra a Bélgica, nas semifinais, e mais uma sobre a Alemanha, na final em Madrid. Assim como Maradona em 1986, ele fora determinante na glória italiana de 1982. Anos mais tarde, numa entrevista, confessou toda a sua admiração pelo nosso time. “O Brasil de 1982 era de outro planeta. Os melhores que vi jogar mas o que vocês queriam? Que eu não fizesse os gols?”, declarou da forma mais sincera possível.
Paolo Rossi nos deixou nesta última quarta-feira (9 de dezembro), aos 64 anos de idade, vítima de um câncer no pulmão. Para nós, foi um carrasco a ceifar nosso sonho. Mas era um carrasco longe de ser odiado. Fez pelo seu país, afinal, o que cada um de nós faria pelo nosso. E tornou-se um personagem a orbitar em nossas perturbadas cabeças e corações nos últimos 38 anos.
Voltando à minha casa, naquele 5 de julho de 1982, eu e minha irmã ainda quisemos arremessar pela janela a última remessa de papel picado. Meu irmão não permitiu, entretanto. Na hora não entendi, mas hoje o compreendo muito bem. Afinal, papéis picados foram feitos para ornamentar sonhos felizes.
Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Fox/Divulgação
A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.
Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.
Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.
O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.
O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.
Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.
A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.
Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.
O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.
Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.
O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.
No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.
Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.