Movies

Bela Vingança

Como a violência causada pelo estupro de uma mulher pode se refletir não só na vítima mas também em quem convive com ela

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Universal Pictures/Divulgação

O que faz um filme nos emocionar ? Finais felizes? Resoluções de conflitos? O sentimento de satisfação que nos move a dizer se gostamos ou não de uma história? A utopia do “feliz para sempre” da ficção que nos atrai ao cinema? Bela Vingança (Promising Young Woman, EUA/Reino Unido, 2020 – Universal Pictures) subverte essa ordem sem medo. É uma obra ambiciosa e que pode não atender às expectativas de quem o vê.

Cassandra (Carey Mulligan) é uma mulher beirando os trinta anos e que largou a faculdade de medicina após algo ocorrer com sua melhor amiga de infância e colega de classe, Nina. Sem perspectiva de futuro e abalada pelo luto, Cassie trabalha em um café durante o dia e nas noites frequenta bares e baladas, onde finge estar bêbada para atrair homens mal intencionados. 

Essa é a estreia de Emerald Fennell na direção, atriz conhecida por interpretar Camilla Parker-Bowles na série The Crown. O filme é um drama-comédia ácida com sentimento e busca pela verdade. É uma boa ideia vê-lo sem assistir ao trailer antes, eles passam uma ideia deturpada do que será visto. O filme não é um thriller, nem uma jornada tensa por vingança. Embora o sentimento de vingança seja sim um elemento importante do enredo, o luto é a bússola condutora.

Todas as ações de Cassie são pautadas pelo trauma vivido por sua amiga na faculdade e que passa a ser carregado por ela. Quando as duas ainda eram estudantes de medicina, Nina sofre um abuso sexual que, mesmo reportada à insituição, não traz consequências aos abusadores. A indignação por conta da impunidade leva Cassie a virar uma espécie de vigilante da noite. Ao contrário do que o trailer dá a entender, não existe violência envolvida no filme: suas armas são palavras é a humilhação de pegar até o mesmo o mais legal dos homens tentando se aproveitar de uma mulher indefesa. A primeira cena é um bom resumo desse plano de vingança. Fingindo embriaguez, a moça é observada por um grupo de engravatados, o aparentemente mais decente do grupo se oferece para levá-la para casa e tenta se aproveitar de sua fragilidade. É uma interpretação da premissa de que todo homem é um predador em potencial, até os que não parecem ser.

A fotografia em tons pastéis contrasta com a atmosfera pesada da história. Os momentos ácidos de humor, principalmente ao lado de Ryan (Bo Burnham) são ótimos. A trama paralela de romance vivida por ele e Cassie ajuda a entender as dimensões do trauma carregado pela protagonista e é de extrema importância para o ato final do filme. 

O final de Promising Young Woman é controverso. Muitos não vão aprovar a escolha da diretora, mas faz sentido com a mensagem do filme. A justiça às vezes é amarga, triste, obscura. Não é um final satisfatório ou para trazer um sentimento de conforto. Pelo contrário: é dolorido, difícil de engolir. 

Intencionalmente a palavra estupro é pouco falada ao longo filme, sendo substituída por eufemismos e sinônimos. O grande momento catártico acontece quando Cassie consegue fazer um dos culpados proferir o termo. A confirmação da verdade escondida e renegada há anos é a verdadeira justiça.

Com isso, Promising Young Woman acaba sendo um filme bastante atual, pronto para atingir homens e mulheres de maneiras diferentes. É fruto de seu tempo, cria direta da era #metoo. Carey Mulligan, por entregar uma ótima atuação, prova que os efeitos de um abuso se estendem não só à vítima, mas a todos que convivem com ela. Seu amargor, portanto, replica a realidade.

>> Bela Vingança concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em cinco categorias: filme, direção, atriz, roteiro original e montagem

Movies, TV

A Festa de Formatura

Com Meryl Streep e Nicole Kidman, musical queer e camp dirigido por Ryan Murphy é um convite à esperança por um mundo melhor após 2020

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Netflix/Divulgação

Responde pra mim: quantas vezes você assistiu a um filme com um sorriso permanentemente plantado na cara? Qual a última vez que você terminou um filme se sentindo leve, de alma lavada, acreditando que o mundo pode ser um lugar melhor? E quanto você acha que 2020 precisava de um filme assim?

Pois isso é A Festa de Formatura (The Prom, EUA, 2020 – Netflix). O musical dirigido pelo man-of-the-hour da Netflix Ryan Murphy que conta a história de uma garota lésbica que, impedida de ir ao baile de formatura da escola, recebe uma ajuda inesperada de astros decadentes da Broadway.

O filme, adaptado de uma peça da Broadway (sinta a ironia!) é estrelado com força, presença e de forma espetacular pela novata Jo Ellen Pellman, estreando em longas metragens como Emma, uma garota simples de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos que vê seu sonho de felicidade no high school ir abaixo quando a preconceituosa presidente da Associação de Pais e Mestres decide que é melhor proibir a festa a deixar a garota levar a namorada como acompanhante. Enquanto isso, em Nova York, um grupo de atores da Broadway se depara com críticas nada enaltecedoras e decide que precisa de um “ato de bondade” para melhorar a imagem. Questão de minutos para que eles se deparem com a história de Emma e decidam que ajudá-la pode ser um ótimo ato de publicidade.

Precisamos lembrar que ainda estamos falando de Ryan Murphy. Então tudo em A Festa de Formatura é brega até a medula. Ou camp como se diz hoje. Números musicais ao mesmo tempo absurdos e encantadores, brilho por todos os lados, dança, coreografias… tudo absurdamente brega. Como o amor.

Claro que as performances de Meryl Streep e Nicole Kidman são um presente à parte. À vontade como poucas vezes, Nicole se deixa brincar em cada cena e Meryl Streep se mostra mais versátil do que nunca. Mas os holofotes mesmo são de James Corden e Jo Ellen.

A Festa de Formatura é o filme para lavar a alma do pesadíssimo 2020 que tivemos. Quando ele acaba, com suas superações, alfinetadas (e aí vai uma estrelinha a mais para o número musical sobre as regras da Bíblia), dramas e lágrimas, nos sentimos leves, felizes, acreditando que mesmo depois de tanta merda, o mundo pode sim ser um lugar melhor. Onde as pessoas podem se tornar seres humanos melhores, onde mães perdoam filhos, onde o preconceito é derrubado com um número musical, onde “a resposta para nossos problemas é sair cantando uma canção”, como diz uma das músicas do filme.

Além disso, o filme faz homenagens a outros longas e espetáculos musicais ou não. A cena com O Casamento do Meu Melhor Amigo e o número musical em homenagem a Chicago fazem a alegria dos fãs de cinema. Deixe-se levar, entre na onda, cante, dance, chore e se comova. A gente está precisando disso. E A Festa de Formatura veio pra nos ajudar a acreditar em um mundo melhor.

Movies

Alice Júnior

Longa-metragem curitibano acerta em cheio ao tratar sobre tolerância e diversidade sexual para o público-alvo de jovens e adolescentes

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

É lamentável que em pleno 2020 os termos sexismo, discriminação de gênero e transfobia ainda estejam tão em voga, mesmo depois da aparição de Roberta Close e Rogéria décadas atrás nos principais veículos de imprensa nacionais. Se por um lado o salto evolucionário tecnológico alcança Marte, o ranço conservador persiste no núcleo de muitas famílias e governos. Por isso um filme como Alice Júnior (Brasil, 2020) – que estreou em cinemas drive-in e agora chega à Neftlix, depois de também ficar disponível no YouTube e em outros serviços de VOD e streaming – é tão necessário. Ele abre a mente dos caretas e afaga o coração dos liberais, dando aquele gostinho de quero mais.

A premiada produção que brotou da “República de Curitiba” é dirigida pelo paranaense Gil Baroni e tem roteiro assinado por Luiz Bertazzo e Adriel Nizer Silva. No bate-papo com os jornalistas do coletivo Jaccu (Jornalistas Autônomos Culturais de Curitiba), veiculado no YouTube do Canal Pausa Dramática (assista ao episódio e escute o podcast nos links abaixo), Bertazzo – que também é ator e DJ – revelou que teve o insight de rodar um filme com a temática trans durante uma festa. O roteirista compartilhou sua ideia a Baroni, que prontamente disse querer dirigir a história. E assim surgia Alice Júnior, nome da protagonista interpretada pela recifense Anne Celestino Mota.

O próximo passo, então, seria justamente encontrar uma atriz trans que se enquadrasse na proposta para conferir veracidade à trama sem que soasse caricata como muitos Crôs por aí. Com o apoio da mãe, Anne, que já atuava como YouTube, soube do teste de elenco e… #partiuCuritiba. Após ser sabatinada por Baroni e Bertazzo, a jovem foi escolhida para o papel e, de quebra, fazer história no cinema brasileiro. Por conta disso, o roteiro sofreu uma série de intervenções, incorporando experiências vividas e observadas por ela. 

Ao tratar um tema sério de um jeito leve, o longa-metragem conquistou a plateia de importantes festivais (como Berlim) e Anne levou o candango em Brasília. Uma emoção semelhante àquela vivenciada pelo ator Silvero Pereira, o cangaceiro queer Lunga de Bacurau, que vem abocanhando prêmios e desfilou pelo tapete vermelho de Cannes montado como o alterego Gisele Almodóvar.

Assim como Lunga, Alice não vive no País das Maravilhas. Pelo menos não é pobre e tem o apoio e afeto do pai, fato que não ocorre com muitas jovens trans. Na história, o viúvo francês Jean Genet (Emmanuel Rosset) é bioquímico e foi contratado por uma indústria de perfumes para inventar uma nova fragrância. O único porém é que a tal fragrância é encontrada numa longínqua e conservadora Araucárias do Sul (esta seria um alterego de Curitiba?) e Alice precisa acompanhar temporariamente o pai na nova empreitada. Aqui ainda fica evidente a ironia implícita no roteiro que alude a símbolos tipicamente curitibanos: Jean é francês, assim como vários conterrâneos seus que vieram trabalhar numa montadora de veículos na região metropolitana da capital paranaense, onde também foi erguida uma famosa fábrica de perfumes. 

Em Recife, Alice já havia batalhado para conquistar amizades mais um crush em quem estava prestes a dar seu primeiro beijo, além de ter saído vitoriosa num reality show e desfilado para um estilista famoso. No Sul, a garota precisa enfrentar novamente tortos olhares de preconceito, risadas maliciosas e muito bullying para conquistar seu espaço, assim como acontece com dezenas de adolescentes como ela. Contudo, em vez de se vitimizar e ficar chorando pelos cantos, a protagonista encara como um rolo compressor o período de adaptação à nova escola, onde passa a desfilar com o queixo erguido e ganhar, pouco a pouco, a simpatia de todos. No fim das contas, a garota trans empoderada (que é o termo da moda, aliás!) torna-se um exemplo de autoestima não só para o universo LGBTQ+ mas para todos que já sofreram algum tipo de discriminação, independentemente de gênero ou orientação sexual, origem geográfica e classe socioeconômica.

Como Anne já atuava como vlogueira, houve o prerrequisito da aproximação do olhar do diretor ao mundo digital, o que acaba deixando tudo mais atraente para o público-alvo de produtos populares como Malhação. Indispensável ainda é a trilha sonora deste filme teen. O fato de Bertozzi ser DJ colaborou bastante para a escolha do repertório, que traz nomes não muito costumeiros em soundtracks de obras nacionais, como Karina Buhr, Barbara Eugênia, a banda Verónica Decide Morrer e a cantora curitibana Surya Amitrano. No filme, aliás, Surya interpreta uma das novas melhores amigas de Alice. E  também soma-se ao elenco da história Katia Horn, da tradicional família curitibana de artistas de mesmo sobrenome, fazendo o papel de uma divertida mãe bicho-grilo.

Agora é esperar que Alice Júnior e toda a sua diversidade nos mostre que existe esperança de um mundo mais tolerante no fim do arco-íris. Enquanto isso fica a torcida de que a gente, de alguma maneira, já esteja bem perto de onde ele termina.

Movies, Music

Mystify: Michael Hutchence

Morte do icônico vocalista do grupo INXS é desnudada em documentário… e você a compreenderá muito bem

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Texto por Fábio Soares

Foto: Netflix/Divulgação

Para quem já passou dos 40 anos como eu, a pronúncia da sigla INXS ativa sinapses cerebrais que nos teletransportam a arenas lotadas, uma banda calcada em dançantes batidas que claramente flertavam com o r&b e à imagem de um vocalista que usava e abusava de seu sex appeal e das caras e bocas quando estava em ação. Ele era o rosto do conglomerado. Peça para uma pessoa citar os nomes de três integrantes do INXS com exceção de Michael Hutchence. Ninguém vai saber. Eu também não sabia até 1997.

Mistify: Michael Hutchence (Austrália/Reino Unido, 2019 – Netflix), documentário dirigido e roteirizado por Richard Lowenstein, tem a missão de mostrar o ser humano por trás daquela imagem de australian lover. Ao contrário do que se imagina, o aquariano Hutchence era tímido. Não se autoelogiava, achava que não tinha qualquer talento e necessitava estar rodeado por seus pares 24h por dia.

Freud explicaria esta exacerbada carência. Segundo de três irmãos filhos de uma modelo e de um executivo que não levavam o menor jeito para lidar com crianças, Michael somente sentiu o real significado da palavra família ao lado de seus companheiros de estrada e de Michelle Bennett, namorada entre 1982 e 1987.

Esta foi o maior de seus amores e musa inspiradora da letra de um dos grandes petardos dos anos 1980. Em entrevista concedida nos intervalos das gravações do videoclipe de “Never Tear Us Apart”, o vocalista foi indagado sobre finalmente o INXS cantar o amor em meio a tantas músicas tendo o sexo como tema central. “Não canto o amor mas obviamente esta canção foi composta para uma garota”, respondeu. “Ela sabe?”, disparou o repórter. “Sim, mas ela me deixou e não posso fazer mais nada em relação a isso”, completou.

O frontman desejado por nove entre dez garotas australianas (e de outras nacionalidades também!) na reta final dos anos 1980 era um leitor voraz e grande apreciador das artes plásticas. E encontrou na também cantora Kylie Minogue a parceira ideal para exercitar este aspecto de sua personalidade. Em meio às agendas lotadas dos jovens astros, é comovente ver o esforço empreendido por ambos para se comunicarem através dos aparelhos de fax das recepções dos hotéis.

Em sua reta final, o documentário dá ao espectador todas as respostas do complexo quebra-cabeça de motivos que levaram o vocalista a desistir de sua existência em um quarto de hotel em Sidney, em novembro de 1997. De um acidente sofrido na Dinamarca em 1992 durante um simples passeio de bicicleta à conturbada e destrutiva relação com Paula Yates (celebridade televisiva britânica e ex-esposa se Bob Geldof), Mistify: Michael Hutchence conduz o espectador a uma sinuosa estrada sinuosa de frustrações, corações dilacerados e tristezas sem fim. No final, vem a certeza de que julgar os suicidas é um dos principais erros da sociedade moderna. Michael era como um de nós. Nada mais nada menos.

Separe a caixa de lenços para assistir a este documentário. Você vai precisar dela.