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Jeanne Dielman

Slow cinema de Chantal Akerman perturba ao retratar a rotina de três dias de uma mãe solo em um bairro modesto de Bruxelas

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

No final de 2022, a tradicional lista de melhores filmes da História da revista britânica Sight & Sound foi publicada e carregou consigo uma surpresa: pela primeira vez, um filme dirigido por uma mulher foi considerado o melhor de todos. É Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, Bélgica/França, 1975), da cineasta Chantal Akerman, que foi exibido nas telas do 12° festival Olhar de Cinema, em Curitiba, neste mês de junho.

Essa é uma obra disruptiva na história do cinema. Com seu olhar feminista, a belga Akerman traz à tela o trabalho doméstico não pago e toda a pressão psicológica que o acompanha ao retratar três dias na vida de Jeanne (Delphine Seyrig), sua protagonista. Assistimos a ela descascando batatas, lavando a louça, se vestindo e despindo, preparando as refeições para si mesma e o filho, Sylvain (Jan Decorte), e por aí vai. A rotina agonizantemente dedicada ao outro de uma mãe solo num bairro modesto de Bruxelas.

slow cinema de Chantal, estética que privilegia a ação sem cortes, a câmera parada e a reflexão sobre a passagem do tempo, não faz do filme uma experiência vazia. Muito pelo contrário. Cada plano tem um propósito, cada detalhe se torna gritante quando encarado por vários minutos em uma tela de cinema. Há um motivo para cada gesto da interpretação de Seyrig, que se mescla à parede do quarto, faz-se sumir em seu pijama. Há uma razão para a ausência de contrastes nos cômodos desta casa, sempre preenchida por uma luz chapada que deve ser apagada sempre que se caminha do banheiro à sala, à cozinha, ao quarto. 

Ao sentir o tempo despendido por Jeanne, embarcamos em um estado de reflexão constante sobre sua condição consigo mesma, com aqueles com que se relaciona e com o mundo patriarcal da Europa setentista. Neste sentido, um olhar particularmente brasileiro percebe como a arte desse período e local discutia temáticas que tardaram muito a serem introduzidos por aqui.

Ainda assim, o longa-metragem ganha fôlego na história do cinema em sua qualidade universal. O retrato da mulher de baixa renda, com o filho encostado, presa a rituais e rotinas das quais não deseja fazer parte, toca a todos – ou pelo menos deveria. Vê-lo não é uma experiência tranquila e este empacamento é absolutamente essencial à compreensão da obra. Se não aguentamos nem três horas da vida de Jeanne Dielman, uma mulher entre várias a estar presa neste papel, quem dirá uma vida inteira? Chantal Akerman cria um exercício provocativo de alteridade, olhar e reconhecer a diferença, e por isso causa tamanho incômodo.

A maioria do público que esteve na sessão que acompanhei no Olhar de Cinema, em um domingo à tarde em Curitiba, era masculina e cisgênera. É uma declaração indissociável da recepção do filme, que explica a hesitação nas palmas e os comentários de “esperava outra coisa” que rondavam o público. Se este é o caso aqui, não é preciso muito esforço para perceber o tamanho do choque causado pela estreia da obra no festival de Cannes em 1975.

Na esteira da criação de Akerman e Seyrig, que também foi uma cineasta engajadíssima no feminismo na sétima arte, toda uma nova tradição formal, temática e de voz pode ser percebida. A quem interessa o estudo do Cinema, é uma obra indispensável. A quem interessa a reflexão crítica sobre o modo de vida e trabalho que nossa sociedade leva, é uma obra indispensável. Muitos podem não gostar, mas não vejo quem não poderia se beneficiar da experiência de acompanhar, por meros três dias, a vida de Jeanne Dielman. 

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