Texto por Cassiano Fagundes
Foto: Reprodução
Vi o Fall ao vivo duas vezes: em 1989, no Canecão, no Rio; e em 1999, em NYC, aquela cidade lá no grande norte do supercontinente. O show do Rio marcou minha vida. Eu tinha apenas 16 anos, e estava com o meu primo, o Guilherme, meu companheiro de sons até hoje. O show do Rio mudou minha vida.
Por quê? Primeiro, porque a plateia ficava sentada em mesas compridas, dividindo-as com estranhos. E quem sentou conosco? LULU SANTOS. Lá pela terceira canção, ele se levantou e foi embora. Na cabeça de um piá de 16 anos, aquilo significou: “que babaca, que careta do cacete, que bostalhão”. Talvez ele estivesse com dor de dente. Talvez tivesse lembrado de fazer uma ligação urgente e saiu procurando o orelhão mais próximo. Ou talvez tenha sido atingido por uma ideia fulminante de canção, e teve que encontrar o violão mais próximo para compô-la. O lance é que isso ficou em mim como algo não muito legal.
Segundo, porque Mark E. Smith estava particularmente inspirado naquela noite. Não fazia muito tempo que seu casamento com Brix (por quem eu tinha um desejo adolescente muito fértil) tinha terminado. Eu e meu primo chegamos a achar que vimos em determinado momento meia lágrima escorrer de seu rosto.
Terceiro porque foi ali que entendi que músico é uma coisa e artista é outra um pouquinho ou muito diferente – e para mim, bem preferível. No Canecão, nasceu em mim a ideia de que artistas que se servem da música de uma forma pervertida para criar seus esquemas são os únicos dignos de nota, o resto é reprodutor de fórmula, por melhor que sejam (tipo aquele cara que deixou o show cedo demais). Sem menosprezar os galináceos, digo que até galo depenado canta bem (parafraseando um senhor iluminado que me disse isso e de quem nunca esquecerei), mas prefiro a elocução que se tornou uma gema da língua inglesa falada, que é a de Smith em canções como “Wrong Place, Right Time” ou “Frenz”, que tem sussurros de Brix, a responsável por tornar o som do Fall mais “palatável” para os ouvidos mais sensíveis do além-mar estadunidense e de quebra, brasilianos.
Se o Ruy Castro não curte Bob Dylan, ele certamente não gostaria do canto descantado e declamante de Mark E. Smith. Não vou xingar o Ruy Castro por isso, ele é um gigante, talvez não tenha uma ligação suficientemente íntima com as línguas germânicas para entender seus arranjos estéticos (se bem que nem precisaria de muito conhecimento, né? É só curtir a onda, como eu mesmo faço, na maior parte do tempo). E nem vou xingar o Lulu Santos, que, bem ou mal, compôs algumas das canções mais memoráveis da música popular. Já essa gente que reproduz sem nenhuma vergonha a estrutura escravagista luso-brasileira do século 16 sem se dar conta que está na senzala, junto com os famintos e bem longe da Casa-Grande, eu faço questão de dizer: FODAM-SE!!!
Ah, claro: o show de 1999 em Noviorque foi aquilo que John Peel dizia sobre o Fall: Sempre igual, sempre diferente.
Vale terminar esse texto dizendo que Mark E. Smith era da classe trabalhadora inglesa, assim como a maioria esmagadora dos bastiões de sua geração, que compreende o punk e o chamado pós-punk. Gente revoltada com o neoliberalismo desumano de Thatcher e Reagan por princípio e por questão de sobrevivência, que acharia muito estranho alguém gostar de música popular e ser contra os movimentos sociais e o movimento trabalhista. Nos últimos anos, Smith disse besteiras contra imigrantes e refugiados – ele andava irremediavelmente bêbado, Mas também disse coisas como: “o problema da indústria musical é que ela se tornou muito burguesa. Um negócio da classe média, como a polícia”.