Music

Hoodoo Gurus – ao vivo

Apesar do repertório irregular, australianos se garantem no Rio de Janeiro com músicas novas, boas lembranças e performance bem ajustada

Dave Faulkner (Hoodoo Gurus)

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Fotos de Daniel Croce (Rock em Geral)

A noite é a do tipo “fadada a recordações”, diria o velho homem da imprensa, e o momento especial não poderia ser outro, mesmo porque é único. Sim, só aconteceria mesmo no Brasil (só no Rio?), onde a dobradinha de canções, que passaria batida em todo o mundo aqui tem um significado realmente especial e precisa ser tocada. Tem que por no contrato que tem que ser assim. Por isso, quando os primeiros acordes da primeira música aparecem, o público vem abaixo, piração total. E quando a segunda vem quase emendada, aí a loucura é generalizada. É assim que o excelente público que encheu o Metropolitan (ops, Qualistage), reage no auge do show do Hoodoo Gurus, na sexta 14 de março, no Rio de Janeiro.

Explica-se que tanto “Out That Door” – a primeira – quanto “What’s My Scene” – a segunda – cederam trechos para vinhetas para a programação da Rádio Fluminense FM, que marcou fortemente a derradeira passagem da emissora de Niterói pelo dial na primeira metade da década de 1990. Ou seja, motivo de emoção e saudades de um tempo marcante de verdade. Era a época em que a rádio cobria competições de surfe e as músicas que os surfistas brasileiros ouviam quando iam competir na Austrália rodavam forte na programação, ganhando a pecha de surf music, sem ter nada a ver com o subgênero criado por Dick Dale, Beach Boys e afins. A coisa cresceu tanto que todas essas bandas (parte da new wave/pós-punk/rock australiano oitentista) fizeram turnês concorridas nos anos subsequentes por aqui. A do Hoodoo Gurus, em 1997, por exemplo, lotou duas noites seguidas deste mesmo Metropolitan.

Dito isso – saudosismo uma ova! – o fato é que nesse meio tempão a banda acabou, voltou com discos pouco ouvidos e agora está na turnê do novo álbum, o bom Chariot Of The Gods, que saiu no ano passado. Dele são apresentadas quatro faixas: as boas “World Of Pain”, que abre a noite, e “Equinox”, “uma canção sobre boa sorte”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd; e as nem tão legais assim “Chariot Of The Gods”, a faixa-título, e “Answered Prayers”, que emula Echo & The Bunnymen e não esconde as origens 1980s da banda. Uma pena terem ficado de fora, desse disco novo, três das melhores músicas: “Get Out Of Dodge”, “My Imaginary Friend” e “Carry On”, dotada de um refrãozaço daqueles (procure saber!).

Montar set list, veremos, não chega a ser uma virtude desses aussies. Mas compor música boa, sim, e, vamos e venhamos, em mais de 40 anos de estrada, há um bocado delas pro público cantar do início ao fim. Caso de, por exemplo, “If Only…”, da época em que a banda circulou por aqui, com Dave Faulkner (vocal e guitarra) colocando a massa pra cantar; “Come Any Time”, na abertura do bis; e da deliciosamente pop colante “I Want You Back”. Além de Faulkner e Shepherd, estão na formação o baixista Richard Grossman, completando a trinca remanescente dos shows noventistas por aqui, e o batera Nik Rieth, novo na turma, mas cascudaço. É evidente em todo o show a performance bem ajustada do quarteto e os fabulosos backing vocals de Grossman e Brad Shepherd, inclusive nas músicas do disco novo, que se completam com a voz de Dave Faulkner – este, a propósito, com o falsete em dia.

show só engrena da metade para o final, o que se explica, de certo modo, pela escolha do repertório. Músicas como “Tojo” e “Poison Pen”, por exemplo, poderiam tranquilamente ser limadas, e não é porque “Leilani” é a primeira música composta pela banda que tem que ser tocada em todos os shows. De outro lado, que falta fazem temas como “A Place In The Sun”, “Down On Me” e “In The Middle Of The Land”, só para citar três das grandes ausências. O que não invalida momentos lindos com em “Castles In The Air” e “1000 Miles Away”, no bis, além da piração total da dobradinha “Out That Door” e “What’s My Scene”, citada lá em cima. O que, no fim das contas, faz dessa passagem do Hoodoo Gurus pelo Rio uma noite e tanto. Que voltem sempre que tiverem um novo álbum pra mostrar!

Na abertura, a banda cover VAAR Surf Band comandou um bailão daqueles. O grupo parece especializado em tocar as músicas das bandas oitentistas australianas – a tal da surf music australiana, vá lá. E aí é um Gang Gajang aqui, um Midnight Oil acolá e outro Spy Vs Spy, tudo hit que todo mundo conhece e curte o tempo todo. O bom é que o quarteto se garante no palco e se esforça para tocar tudo igualzinho às versões originais, a ponto de o vocalista se dividir entre violão, harmônica e até um trompete. O ruim é a execução no final de um inacreditável medley que incluiu Red Hot Chili Peppers e REM juntos! Mas que animou a turma, isso animou.

Set list: “World Of Pain”, “Another World”, “The Right Time”, “The Other Side Of Paradise”, “I Was The One”, “Leilani”, “Answered Prayers”, “Night Must Fall”, “Tojo”, “If Only…”, “Chariot Of The Gods”, “I Want You Back”, “Poison Pen”, “Equinox”, “Castles In The Air”, “Out That Door”, “What’s My Scene”, “Bittersweet” e “I Was a Kamikaze Pilot”. Bis: “Come Anytime”, “1000 Miles Away” e “Like Wow – Wipeout”

Movies

Spencer

Kristen Stewart comove interpretando a princesa Diana nos dias em que ela decidiu se libertar da “prisão” da realeza britânica

Texto por Taís Zago

Foto: Diamond Films/Divulgação 

Não faltam no mercado cinematográfico obras sobre a trágica história de Diana. Fora os numerosos documentários – alguns com a baixa qualidade de matérias de tabloides – a ficção também não perdeu tempo ao fazer uma verdadeira devassa na vida da princesa de Gales. Um dos mais atuais e famosos flops sobre a princesa foi Diana, de 2013, que trazia Naomi Watts no papel principal. O escrutínio ao tom novelesco da obra, tanto da critica como do público, foi arrasador. Desde então ninguém mais parecia querer se aventurar no tema em um longa-metragem. Já a série The Crown (Netflix, 2016-) tomou para si a árdua tarefa no universo dos stream channels. E foi muito bem recebida, inclusive pelo biógrafo de Diana, Andrew Morton.

Isso nos deixa com uma pergunta: seria necessário mais um filme sobre uma das personalidades mais amadas, famosas e perseguidas pela imprensa marrom? À primeira vista, a resposta mais lógica seria um categórico não. Porém, munido de um roteiro do britânico Steven Knight, que, entre outros sucessos, tem Peaky Blinders no seu portfólio, o diretor e produtor Pablo Larraín resolveu topar a parada.

Larraín já nos provou sua destreza ao trazer para a grande (ou pequena) tela as biopics de Neruda (2016) e Jackie (2016). Ambos aclamados entre críticos pelas suas sensibilidade e sobriedade, mas com comedida reação do público. Em Jackie, Natalie Portman (como Jackie Kennedy) vive quase minuto a minuto os acontecimentos e o trauma que envolveram a morte violenta do marido JFK. E no meio do luto ela retrabalha seu passado por meio de flashbacks. Agora, em Spencer (Reino Unido/Alemanha/EUA/Chile, 2021 – Diamond Films), Larraín utiliza a mesma fórmula, optando por explorar um curto período de crise na vida de outra mulher extraordinária.

Para executar essa tarefa, o chileno escolheu Kristen Stewart – que agora em março irá concorrer ao Oscar de melhor atriz por este trabalho. Não sabemos se era a sua primeira opção, mas certamente esta foi uma decisão um tanto interessante. A tarefa mais difícil para ela seria abandonar de vez os maneirismos que, não raramente, ainda a colam de certa forma no papel de Bella, a namoradinha do vampiro da saga Crepúsculo. Realmente, em alguns momentos a performance parece um pouco dura e forçada. Mas em outros consegue brilhar de maneira comovente. Kristen busca a doçura e a fragilidade de Diana – no geral o faz com bastante sucesso. Principalmente quando conta com o apoio de Maggie, sua camareira predileta, interpretada pela maravilhosa Sally Hawkins.

O filme inteiro se passa no espaço de apenas três dias em dezembro de 1991 durante o feriado de Natal, quando Diana, já cansada das traições de Charles com Camilla e de viver em uma gaiola dourada (com algemas e amordaçada), toma a decisão de abandonar a vida real e se separar de príncipe de Gales. Dado esse cenário, não é de se admirar a tensão crescente que se condensa com o passar de apenas horas da princesa na residência de Sandringham. Mas como tudo que se condensa também se precipita, Diana sucumbe à frieza, indiferença e controle aos quais precisa se submeter. Essa precipitação vem em forma de devaneios, sonhos, lembranças de sua infância, lágrimas, bulimia e automutilação.

Spencer é um filme intimista mas não minimalista. É lindo de se ver quando nos relembra a ostentação da vida da realeza britânica e os inúmeros e célebres modelitos de alta costura usados por Diana. Já na primeira tela somos avisados que o roteiro é uma dramatização de fatos e personagens reais – e em alguns momentos, claramente desliza perigosamente no exagero. Por outro lado, somos recompensados com momentos lindos e comoventes entre Diana e os filhos Harry e William, trocas íntimas entre a princesa e Maggie ou ainda conversas com o cozinheiro real Darren (Sean Harris).

Movies

Licorice Pizza

Paul Thomas Anderson faz poesia apaixonada para a sua infância californiana em filme sobre crescer e se apaixonar

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Um filme não precisa de trama. Isso não quer dizer que o melhor cinema é a pura experimentação formal, mas que a significação proporcionada pela linguagem fílmica está para muito além dos limites de atos, antagonistas e um roteiro livre de “furos”. Tudo depende, claro, do que se quer expressar em cena. No caso de Licorice Pizza (Canadá/EUA, 2021 – Universal Pictures), a resposta é bem mais pessoal que em alguns dos projetos mais ambiciosos de seu diretor, o aclamado Paul Thomas Anderson.

Anderson (ou simplesmente PTA) escreveu e dirigiu seu nono longa-metragem com um olhar intimista e bastante derivado de sua infância californiana. Não à toa, Licorice Pizza retrata a Califórnia dos anos 1970 impressa nos encontros de dois amigos e um romance almejado: Alana (a cantora e guitarrista Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman). Enquanto Alana tem pouco mais de 25 anos, Gary é um ambicioso adolescente de meros 15. Contudo, seus comportamentos dão um nó na expectativa que temos de suas personalidades, suposições ancoradas, claro, no choque etário. 

Gary é um jovem ator que toca uma empresa de relações públicas com a mãe e é respeitado por onde vai, tal qual um adulto. Em paralelo, Alana presta minuciosas contas do que faz ao pai e tem constantes rusgas com as irmãs ainda mais velhas, todas sob o mesmo teto, tal qual uma adolescente. O longa de PTA, então, é muito mais que um romance – é uma crônica do envelhecer, um coming of age que opera pelas perspectivas do adolescente “adultizado” e da adulta infantilizada.

Anderson representa esses polos performáticos por meio da amizade que floresce, inicialmente um avanço de Gary para conquistar Alana, e acaba por mostrá-la o novo e excitante mundo do cinema e do business. Ao mesmo tempo que as personagens se aproximam, elas se afastam – afinal, a idade não deixa de impor um empecilho em suas interações. 

Estas, justamente, são o foco do filme, que se distancia do enredo tradicional para aproximar-se do livre jogo de pequenas trocas e conversas entre Alana, Gary e seus amigos no entorno. Se Era Uma Vez Em Holywood, de Tarantino, é uma carta de amor aos anos 1960 e à indústria cinematográfica da época, Paul Thomas Anderson escreve sua poesia apaixonada pela Califórnia de sua infância por entre versos sobre o crescer e o apaixonar-se.

Afinal, a relação com o outro não existe sem o olhar para si, que inevitavelmente traz à tona conflitos pessoais. Não há momento mais propício para esses debates internos que esse limbo entre a adolescência e a vida adulta no qual convivem a infantilização e a exponencial responsabilização. De modos distintos, tanto Gary quanto Alana estão presos nesse jogo, e cada vez que um vai para o lado, o outro reage pulando para o outro.

Os afetos são construídos sem pressa, de modo que cada ato significa mais no campo não verbal e dos simbolismos que na literalidade do texto – uma decisão que PTA evidencia quando, no momento climático do filme, entrecorta entre Alana e Gary correndo em separado com momentos anteriores em que fizeram o mesmo para ajudar um ao outro. 

Esse apreço pelo simbólico, entretanto, não poderia existir senão pela atenção do diretor à técnica do cinema. Em seu segundo longa acumulando as cadeiras de direção e fotografia, o preciosismo do cineasta com lentes, luzes, ângulos e enquadramentos se torna ainda mais central, num movimento bastante claro de sua filmografia. Por meio de seu estilo já conhecido de takes dinâmicos, tracking shots que acompanham as personagens e mise-en-scènes ora requintadas, ora simples e diretas, Anderson traz à vida sua Califórnia que respira e se move no frescor da infantilidade de Alana e Gary. 

Não ao acaso, a trilha sonora escolhida para o filme é a imagem dos anos 1970 em sua face mais animada e pulsante. A faixa que leva o nome do filme, composta por Jonny Greenwood (integrante do Radiohead e já com diversas colaborações com as obras de Anderson), é a representação musical da leve brisa que entremeia Licorice Pizza.

Em uma análise comparativa da trajetória de Anderson, Licorice Pizza talvez não seja o mais “profundo” de seus filmes. Passa longe de ser o mais sério. Mas é, sem dúvidas, um dos melhores, capturando muito do que há de bom espalhado entre Vício InerenteMagnólia e até Trama Fantasma (meu confesso favorito) para, longe de qualquer pretensão moral ou sequer de enredo, presentear o espectador com duas horinhas de um olhar apaixonado pelo processo, como já mencionei antes, de crescer consigo mesmo ao apaixonar-se pelo outro.

Music

Elza Soares

Cantora, morta aos 91 anos, não hesitava em mostrar sua fome de botar a boca no mundo para exorcizar todos os problemas do passado

Textos por Abonico Smith e Fabio Soares 

Fotos: Divulgaçao/Deckdisc (Elza) e Reprodução (Elza e Garrincha)

No fim da tarde desta quinta-feira, 20 de janeiro de 2022, a conta oficial de Elza Soares no Instagram fez o anúncio de seu falecimento. Com mais de seis décadas de carreira, ela morreu em casa, no Rio de Janeiro, às 15h45, de causas naturais. Tinha 91 anos de idade.

De trajetória profissional longeva, Elza celebrava nos últimos anos não apenas seu renascimento artístico com também o auge de sua carreira. Contando com o apoio e adoração de novas gerações de músicos e fãs, ela ganhou Grammy, apresentou-se no Rock In Rio, desfilou no carnaval carioca como enredo da escola de samba de seu bairro e do coração, lançou álbuns badaladíssimos pela crítica (como A Mulher do Fim do Mundo, em 2015 e o primeiro após oito anos de intervalo, e Deus é Mulher, em 2018). A receita do sucesso – que vinha sempre em dobradinha com o poder arrasador de sua voz rouca, capaz de transformá-la em um vulcão ativo em cima de um palco – ela nunca escondia em suas entrevistas: a simpatia extrema, a veia afiada para críticas (sociais, políticas, de gênero) e, acima de tudo, o fato de manter sempre a cabeça aberta para as novidades do mundo. Sempre em defesa das mulheres, dos negros, dos pobres, do universo LGBTQIA+.

Elza não gostava de falar muito de seu passado, embora o fizesse sempre que necessário. Preferia sempre celebrar o presente e projetar o futuro. Por isso, passou longe de se tornar uma mera caricatura daquela genial Elza sambista que o brasil e o mundo vieram a conhecer nos anos 1960. Ligou-se a novidades musicais, novos timbres, roupagens eletrônicas e criou uma nova Elza tão genial quanto aquela da História (embora ainda possa haver discordâncias quanto a isso, como você pode ler no texto final desta matéria). Inclusive parou em fazer “discos cheios” (os famosos álbuns) em 2019 e desde então vinha focando seus lançamentos em “faixas soltas”, distribuídas apenas digitalmente por meio das plataformas de streaming musical entre elas singles em parceria com os Titãs (“Comida”) e o rapper Flavio Renegado (“Negão Negra” e “Divino, Maravilhoso”, o clássico de Caetano e Gil). Aliás, seguiu cantando até o fim: dois dias antes de morrer, gravara, sem plateia, um DVD no Theatro Municipal de São Paulo.

Para homenagear esta que foi uma das maiores cantoras de toda a música brasileira, o Mondo Bacana publica abaixo dois textos. O primeiro reproduz uma entrevista dada em setembro de 2019 ao criador e editor deste site, Abonico Smith, publicada originalmente no portal RicMais naquela época. Na ocasião, Elza Soares havia acabado de lançar seu último álbum, Planeta Fome. O outro, assinado por Fabio Soares, relembra sua vida difícil, marcada por sofrimento e luta e também pela famosa relação dela com um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos, tanto do Brasil quanto do planeta. Aliás, uma curiosidade: Elza, 39 anos depois, faleceu no mesmo dia 20 de janeiro de seu amado Mané Garricha. (AS)

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Nem bem Elza Soares lançou um álbum bastante celebrado por crítica e público no ano passado e, agora, apenas dezesseis meses depois, volta com mais uma pancada tão forte e impactante quanto. Mais uma coleção de faixas, entre inéditas e regravações, todas escolhidas a dedo e formando um repertório que tem um poder devastador sem igual para o enorme guarda-chuva sonoro que convencionou-se chamar de música popular brasileira.

Na verdade o que Elza fez com Deus é Mulher em 2018 volta a repetir com Planeta Fome é algo que não vem sendo comum no mercado fonográfico: chama-se misturar ousadia com a coragem de erguer a voz sobre todas as intempéries para protestar e se expressar. Já faz um bom tempo que a grande fatia do mainstream da música brasileira – isto é, as duas grandes gravadoras mundiais que restaram depois da revolução digital, das estações de rádio de grande audiência, das emissoras de TV que insistem em produzir programas musicais e de auditório, da lista das músicas mais executadas em plataformas de streaming – aninhou-se na acomodação. Sempre reciclagem de mais do mesmo, fórmulas batidas, elementos já conhecidos, ingredientes que funcionam para hipnotizar um povo cujos ouvidos também se acostumaram a rejeitar o novo, o diferente, o inusitado.

Isso não funciona com Elza Soares. Mesmo. “Eu canto o que estou vendo neste país. Vou ouvindo aqui e ali, muitas músicas novas que me apresentam e que de uma certa forma contam o que anda acontecendo por aí. Aí vou formando a dedo o repertório de cada um destes discos”, diz a cantora, em entrevista por telefone.

O título Planeta Fome, segundo ela explica, não precisa ser necessariamente subentendido ao pé de letra. “Não só é comida não, apesar deste ser um período em que o brasileiro precisa de muita força também. Mas também é fome de saúde, de respeito, de cultura, de leitura. Queremos e precisamos de tudo isso.”

Já a arte da capa, assinada pela cartunista Laerte Coutinho, ilustra toda esta diversidade de fomes “do bem” que podem existir em um planeta. “A ideia de todas as ilustrações foi dela”, complemente Elza, a respeito do trabalho gráfico que ainda traz uma boa curiosidade nas entrelinhas: é tanta informação a ser buscada pelos olhos de quem a vê que lembra antigos trabalhos de designers especializados em capas de discos de vinil. Aliás, muito provavelmente em breve deve sair uma fornada de long-plays, já que a fábrica da Polysom pertence à mesma gravadora de Elza, a Deckdisc. Sendo assim, a arte de Laerte vai ficar ainda mais brilhante no mesmo tamanho do bolachão.

Quanto ao caldeirão sonoro, Elza apresenta, orgulhosamente, uma grande mistura sonora. Tem melodias melancólicas (“Tradição”, “Lírio Rosa”) e a fúria verborrágica do hip hop da vertente funky representada pelo Dream Team do Passinho Rafael Mike e do rock com riffs pesados de guitarra de BNegão (“Não Tá Mais de Graça” e “Blá Blá Blá”). Tem batidas dançantes com elementos eletrônicos (“Não Recomendado”) e uma vinheta quase a capella e que puxa pro afoxé (“Menino”). Tem um míssil do BaianaSystem com Virgínia Rodrigues e Orkestra Rumpilezz (“Libertação”) e o resgate de duas canções mais obscuras do repertório autoral de Gonzaguinha (“Pequena Memória Para um Tempo Sem Memória”, “Comportamento Geral”). Tem versos celebrando a necessidade atual da resistência tanto coletiva (“País do Sonho”) quanto individual (“Virei o Jogo”). Tem também citações e referências espalhadas por todo o álbum e que vão de Titãs (“Comida”) a Chico Buarque (“Geni e o Zepelim”), de Tim Maia (“Me Dê Motivo”) a uma canção de Seu Jorge eternizada na voz da própria Elza (“A Carne”). “Canto sempre aquilo que me dá vontade de cantar. Estas duas músicas do Gonzaguinha são demais. Dizem bem o que está acontecendo no Brasil hoje. Ele escrevia para o futuro. Cazuza é outro que também fazia isso.”

As letras das doze faixas, de uma certa forma, fazem um grande coro de descontentamento e indignação de Elza com a situação apresentada há alguns anos no Brasil. Social, econômica e sobretudo politicamente falando. “Esta nova geração está dormindo muito. O que será que aconteceu com a juventude? Está um silêncio profundo por aí… Não vemos mais os estudantes na rua, como já vimos antes. Gente que brigava e buscava alguma coisa. O que colocaram na água do brasileiro, meu Deus? Anda todo mundo amedrontado, só na internet. Parece que não se dá mais liberdade para o povo”, queixa-se a cantora, sem, porém, ousar esconder o brado de insatisfação com a apatia geral de adolescentes e jovens adultos.

Elza reclama e também está longe de querer ficar parada, esperando algo acontecer. Por isso, está sempre ligada ao quem está vindo aí no seu futuro, sem querer muitas amarras com o que já foi. “Vem o filme com a Taís Araújo no papel de Elza Soares. Também vou ser homenageada no carnaval carioca no ano que vem. Serei o tema da minha escola de coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Vou cantar no Rock In Rio no fim deste mês. Já lancei três discos de 2015 para cá. Aliás agradeço a Deus por ter dois produtores tão carinhosos e competentes como o Juliano Almeida e o Pedro Loureiro. Eles vão atrás, agilizam tudo, fazem as coisas acontecerem. Pedro ainda canta, toca, compõe. Ele se envolve na questão na criação. Pena que só chegaram agora há pouco na minha vida.”

Antes tarde do que nunca. Porque, afinal, com Elza o negócio é sempre falar, gritar, botar a boca no mundo. “Blá blá blá é comigo mesmo”, brinca. (AS)

***

Elza Soares tinha 53 anos no dia 20 de Janeiro de 1983 quando Garrincha, seu companheiro por 17 anos, sucumbiu a complicações decorrentes do alcoolismo.

Aliás, a palavra “fácil” jamais caminhou lado a lado na vida de Elza Gomes da Conceição. Nascida em 1930 no bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro, foi molestada aos 12 e obrigada, pelo pai, a casar com seu abusador. Aos 14, deu à luz o primeiro filho. Viu seu segundo filho morrer de fome como o primogênito. Trabalhou num manicômio onde conseguia, ao menos, realizar uma refeição por dia. Aos 20, teve uma filha recém-nascida sequestrada em 1950 e conviveu com esta angústia por três décadas. Reencontrou sua Dilma em 1980, que não sabia que era filha da cantora. Devido ao tempo decorrido, o casal responsável pelo crime fora beneficiado com a prescrição da pena.

Em 1953, Elza apresentou-se no programa de Ary Barroso, chamado Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, no Rio de Janeiro. O episódio é dissecado na biografia Elza, escrita por Zeca Camargo e lançada em 2018. “Cantar ali era o sonho de muitos cantores e cantoras aspirantes, um caminho para o estrelato. ‘Entrei segurando minha roupa para ela não desmontar e arrastando uma sandália muito vagabunda, que era a única que eu tinha, e o Ary logo me olhou com aquela cara de quem ia aprontar alguma comigo’, lembra a cantora.”

As gargalhadas só cresciam e com elas o apresentador se sentiu ainda mais à vontade para ironizar a candidata ‘fresquinha’. ‘O que você veio fazer aqui?’, perguntou, impiedoso. ‘Vim cantar’, respondeu Elza, achando que era melhor não ceder às brincadeiras. Ele dobrou então a provocação: ‘E quem disse que você canta?’ Outra resposta curta: ‘Eu, seu Ary.’ Apesar da aparência risível, parecia uma caloura difícil de ‘quebrar’ com qualquer piada. Por isso, talvez, a próxima pergunta tinha beirado a grosseria: ‘Então, agora, me responda, menina, de que planeta você veio?’ Elza: ‘Do seu planeta, seu Ary!’ O apresentador, já perdendo a paciência, insistiu: ‘E posso perguntar que planeta é esse?’ Parecia que a resposta já estava na ponta da língua: ‘Do planeta fome.’

Em 1962, iniciou um romance com Garrincha logo após a conquista do bicampeonato mundial no Chile. O craque, casado, recebeu um ultimato: ou a assumiria ou a perderia. Garrincha desquitou-se da esposa mas o público não reagiu bem ao fato. Acusada de ser “destruidora de lares”, Elza era hostilizada por onde passava. Entretanto, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 20 de Janeiro de 2013, o gigante Ruy Castro, desconstrói esta história. “Para os desinformados, ela ajudou a destruí-lo. A verdade é o contrário: sem Elza, Garrincha teria ido muito mais cedo para o buraco. Quando ela o conheceu (em fins de 1961, e não em meados de 1962, durante a Copa do Chile, como até hoje se escreve), Elza estava em seu apogeu como estrela do samba, do rádio e do disco. E ninguém imaginava que Garrincha, logo depois de vencer aquela Copa praticamente sozinho, logo deixaria de ser Garrincha. Ninguém, em termos. Os médicos e preparadores físicos do Botafogo sabiam que Garrincha, com o joelho cronicamente em pandarecos (e agravado pela bebida), estava no limite. Mas ele não se permitia ser operado – só confiava nas rezadeiras de sua cidade, Pau Grande. O que Garrincha fez na Copa foi um milagre. Mas, assim que voltou do Chile, os problemas se agravaram. Um outro Garrincha (gordo, inchado, bebendo às claras ou às escondidas) incapaz de repetir seus dribles e arranques pela direita continuou se arrastando pelos campos, vestindo camisas ilustres (do próprio Botafogo, do Corinthians, do Flamengo, do Olaria e da seleção) por mais inacreditáveis dez anos, até o famoso Jogo da Gratidão, organizado por Elza Soares. Foi sua despedida oficial, a 19 de dezembro de 1973, com um Maracanã inundado de amor”.

Artisticamente falando, os últimos trabalhos de Elza Soares foram um calvário a céu aberto a quem quisesse ver. Nestes sete anos, discos sofríveis foram lançados. A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019) nem um pouco lembraram o assombro de genialidade de álbuns como Com a Bola Branca (1966) e o espetacular trabalho com Wilson das Neves, de 1968. Tempo quando estava com Garrincha, aliás.

Seja como for, com muito mais genialidade que erros, o nome de Elza Soares ecoará pela eternidade fazendo não só fazendo jus ao título de Voz do Milênio, concedido em 1999 pela BBC, de Londres. Para sempre reinará absoluta no panteão de nossa cultura brasileira. (FS)

Movies, TV

Tarcísio Meira

Oito longas-metragens para relembrar sempre a excelência e a versatilidade das atuações deste que foi o grande galã das telenovelas

Texto por Abonico Smith e Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Divulgação

Na manhã de 12 de agosto de televisão a história da televisão brasileira ficou bem mais triste. O hospital Albert Einstein, em São Paulo, anunciou a morte do ator Tarcisio Meira, aos 85 anos de idade, por problemas de saúde decorrentes da covid-19. Ele estava internado havia alguns dias. A atriz Gloria Menezes, sua esposa de quase seis décadas, também internou-se com covid no mesmo hospital. Mas ela, ao contrário do marido, reagiu bem, não precisou ser deslocada do quarto até a UTI e teve alta hospitalar dias após ser informada do falecimento do marido.

O nome de Tarcísio Meira se confunde com o da história da TV nacional. Ele é um dos maiores símbolos da teledramaturgia, tendo somado durante a trajetória profissional 78 participações em produções seriadas (novelas, séries, minisséries), programas documentais e teleteatro (quando as encenações eram transmitidas ao vivo, o que era comum até o começo da década de 1960).

De formação teatral clássica e biotipo de galã, Tarcisio não precisou de muito para assumir o posto de protagonista de telenovela. Desde a primeira, aliás. E já em 2-5499 Ocupado, feita pela TV Excelsior em 1963 a partir de uma adaptação do texto original argentino, atou ao lado de Gloria, com quem, pelas próximas duas décadas, fez par constante em vários outros títulos. 

Mas foi a partir de 1969 que ele ajudou a construir junto com a Rede Globo uma indiscutível excelência nesse formato de folhetim diário, fazendo da emissora carioca um nome mundial da televisão com sucessivas exportações de produções para exibição em dezenas de outros países. Também ajudou a consolidar a chamada “novela das oito” (que com o passar do tempo foi começando mais tarde e atualmente começa às nove e meia da noite) como elemento principal do horário nobre da Globo, formado ao lado do Jornal Nacional e de um produto da linha de shows e entretenimento. Afinal, Tarcisio protagonizou muitas histórias de sucesso e popularidade, que ficaram na memória do público brasileiro tanto no formato de novela quanto de minisséries. Entre os títulos mais importantes da telinha que contaram com o ator no elenco estão 2-5499 Ocupado (1963), Irmãos Coragem (1970 – foto acima), Cavalo de Aço (1973), Espelho Mágico (1977), Guerra dos Sexos (1983), O Tempo e o Vento (1985), O Rei do Gado (1996) e Saramandaia (2013).

Só que Tarcísio Meira não foi apenas um profissional a serviço das telenovelas. Também encenou 31 peças teatrais e rodou 22 filmes. Em homenagem ao ator, o Mondo Bacana disseca oito presenças fundamentais de Tarcisão (apelido pelo qual era carinhosamente chamado, em contraponto ao filho Tarcísio Filho, o Tarcisinho), na tela grande. E entre eles não está A Idade da Pedra (1981), o confuso último filme dirigido por Glauber Rocha… (AS)

Quelé do Pajeú (1969)

Não seria exagerado dizer que Anselmo Duarte seja o artista brasileiro mais próximo do italiano Vittorio De Sica. Ambos iniciaram carreira no cinema como atores. No caso de Anselmo, na segunda metade dos anos 1940. Pouco depois já começou a escrever roteiros e no final da década seguinte estreava na direção de longas. Sua obra maior, O Pagador de Promessas, feito em 1962, ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Quelé do Pajeú, de 1969, foi seu quarto longa e marcou a estreia de Tarcísio Meira como protagonista em um filme. A história, criada por Lima Barreto (do sucesso O Cangaceiro, de 1953), foi roteirizada pelo próprio Anselmo Duarte. Temos aqui o mais próximo em nosso cinema de um faroeste. Tudo começa quando a jovem Marizolina (Elizângela) é violentada. Seu irmão, Quelé, mente e Celidônio (Meira) sai pela região em busca de vingança. A ação se passa nos anos 1930 no interior do nordeste brasileiro. Quelé enfrenta perigos em sua jornada, além de fazer amigos e conquistar o coração da jovem Do Carmo (Rossana Ghessa). Também conhecido como A Fúria do Vingador, temos aqui uma obra faz bom uso dos elementos clássicos de bom bang bang, porém, com um toque bem brasileiro. Além disso, Meira convence plenamente no papel-título e a trama mantém nosso interesse até o final. (MM)

Independência ou Morte (1972)

Quando das comemorações dos 150 anos da independência do Brasil, em 1972, Oswaldo Massaini e Aníbal Massaini Neto produziram um dos grandes épicos do cinema nacional. Com direção do paulista Carlos Coimbra, que vinha de uma série de filmes populares tendo o cangaço como premissa, a obra teve roteiro escrito pelo próprio Coimbra junto com Anselmo Duarte, Dionísio Azevedo e Lauro César Muniz. Acompanhamos aqui a trajetória de Dom Pedro I (Tarcísio Meira) responsável pelo famoso grito dado às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, e que proclamou a independência de nosso país de Portugal. Misturando aventura com política e romance, o filme procura traçar um painel multifacetado do primeiro imperador brasileiro ao abordar sua grande paixão pelo Brasil, sua postura política e seu envolvimento com a Marquesa de Santos (Glória Menezes), sua amante. Meira esbanja carisma no papel principal, a exemplo do que viria a fazer, 13 anos depois, na minissérie O Tempo e o Vento, quando interpretou o capitão Rodrigo Cambará. Sucesso de público quando de seu lançamento, Independência ou Morte continua sendo a melhor cinebiografia do filho mais velho de Dom João VI. (MM)

O Marginal (1974)

O diretor carioca Carlos Manga foi um dos maiores nomes das chanchadas da Atlântida, que reinaram absolutas nas bilheterias nacionais dos anos 1950. Mais conhecido por suas comédias, tanto no cinema como na televisão, Manga dirigiu O Marginal, em 1974, e surpreendeu todo mundo ao abandonar o gênero que o consagrou. Com roteiro do próprio diretor, escrito junto com Lauro César Muniz, a partir de um argumento de Dias Gomes, o filme segue a cartilha dos policiais hollywoodianos. Incluindo alguns flashbacks e razões psicológicas para justificar o comportamento de Osvaldo de Moraes (Tarcísio Meira), na época o grande galã da TV buscando aqui fugir um pouco do estereótipo de bom moço. Ele, quando criança, fugiu de um orfanato, onde sofria maus tratos, e acabou por entrar, já adulto, para o crime. Ambicioso, Valdo termina dando “um passo maior do que a perna” e acaba preso. No melhor estilo femme fatale dos clássicos policiais noir dos anos 1940, a mulher, ou como é o caso em O Marginal, as duas que cruzam o caminho de Valdo, têm papel decisivo em sua vida. Manga imprime ritmo e realiza uma obra que não nega sua inspiração made in Hollywood, mas também não a compromete. E este filme ainda tem trilha sonora composta pela dupla Roberto e Erasmo Carlos. (MM)

República dos Assassinos (1979)

É curioso perceber que Tarcísio Meira procurou no cinema, pelo menos entre meados dos anos 1970 até o final da década seguinte, fugir do estigma de galã que a televisão lhe havia imposto. Essa busca fica mais do que evidente em República dos Assassinos, com direção de Miguel Faria Jr. A história tem por base o romance de mesmo nome escrito por Aguinaldo Faria, que assina o roteiro junto com o próprio diretor. A ação acontece no Rio de Janeiro e gira em torno de um Esquadrão da Morte composto por policiais e liderado por Mateus Romeiro (Meira). Alçado pela mídia ao posto de heróis da sociedade, o grupo é chamado de Homens de Aço. No entanto, o modus operandi é de uma milícia. Macho até a medula, na pior acepção da palavra, Mateus trata as mulheres com quem se relaciona como meros objetos. Apesar da presença forte de Tarcísio Meira à frente do elenco, quem “rouba” o filme é Anselmo Vasconcelos, no papel do travesti Eloína. Mesmo tendo envelhecido mal, República dos Assassinos traz um retrato preciso do Brasil daquela época. Um retrato que, em muitos aspectos, infelizmente, continua o mesmo. (MM)

O Beijo no Asfalto (1981)

Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, escreveu uma de suas peças mais conhecidas, O Beijo no Asfalto, em 1960. A primeira encenação ocorreu no ano seguinte e três anos depois ganhou sua primeira adaptação para o cinema, chamada simplesmente de O Beijo, dirigida por Flávio Tambellini e com o jovem Reginaldo Faria à frente do elenco. Esta segunda versão, de 1981, com direção de Bruno Barreto, teve o roteiro adaptado por Doc Comparato. No papel de Arandir temos Ney Latorraca, um bancário que ao presenciar o atropelamento de um homem por um ônibus, vai em seu socorro. Um ato de bondade termina por transformar inteiramente a vida de Arandir, tornando-o alvo de preconceito, além de investigado pela polícia. Sem contar o que acontece em sua própria casa na sua relação com a esposa, Selminha (Christiane Torloni), a cunhada Dália (Lídia Brondi) e o sogro Aprígio (Tarcísio Meira). A abordagem de Barreto procura ser fiel ao texto de Rodrigues e consegue seu objetivo. Existe uma terceira versão dessa peça, mais sofisticada em sua abordagem, dirigida em 2018 pelo ator Murilo Benício e com Lázaro Ramos e Débora Falabella nos papéis principais. (MM)

Eu Te Amo (1982)

Quem só conhece Arnaldo Jabor de seus comentários políticos na imprensa não faz ideia de que ele fora um grande cineasta antes. Jabor iniciou sua carreira na segunda metade dos anos 1960, na esteira do Cinema Novo e construiu, ao longo das décadas seguintes, uma sólida filmografia. Eu Te Amo, de 1981, é a parte dois da chamada Trilogia do Apartamento, iniciada em 1978 com Tudo Bem e concluída em 1986 com Eu Sei Que Vou Te Amar. O roteiro, do próprio Jabor, parte de uma história criada por Leopoldo Serran e apresenta o empresário Paulo (Paulo César Pereio). Duplamente falido, nos negócios e na vida pessoal, ele convida Maria (Sônia Braga), que conhecera na noite anterior, para visitá-lo em seu apartamento cheio de aparelhos de televisão. Abandonados, ambos se encontram em suas solidões. Ele, pela lembrança de Bárbara (Vera Fischer). Ela, pela de Ulisses (Tarcísio Meira). Há um misto de dor e desespero na forma como Paulo e Maria se relacionam. E Jabor, ciente do talento de seu elenco e da força ácida dos diálogos que escreveu, tira todo proveito das situações apresentadas. Com produção de Walter Clark, o então todo poderoso da Rede Globo, Eu Te Amo, apesar de marcado pela estética neon do cinema feito na época, conseguiu envelhecer bem e manter-se relevante 40 anos após seu lançamento. (MM)

Eu (1987)

Assim como o autor de novelas Manoel Carlos tem suas Helenas, o cineasta Walter Hugo Khouri tinha seus Marcelos, que apareceram em dez dos 25 longas que ele escreveu e dirigiu. Eu, de 1987, marca a oitava aparição do personagem, vivido aqui pelo ator Tarcísio Meira. Marcelo é um empresário muito rico e possui um desejo incontrolável por belas mulheres, que sempre estão ao seu lado. Apesar disso, nunca fica satisfeito. Na verdade, ele nutre uma paixão secreta e proibida por Berenice (Bia Seidl), sua única filha. A ação se concentra na casa de praia do milionário, no período das festas de fim de ano. É para lá que ele vai acompanhado de Renata (Monique Lafond), Lila (Nicole Puzzi) e Diana (Monique Evans). Para sua surpresa, a filha também aparece levando Beatriz (Christiane Torloni), uma psicóloga amiga sua. Marcelo é um homem, pode-se dizer, que tem tudo e, ao mesmo tempo, nada. Já que, por mais que seus desejos sejam realizados, sempre parece faltar alguma coisa. E Tarcísio Meira transmite esse vazio interior misturado com arrogância de maneira perfeita. (MM)

Não Se Preocupe, Nada Vai Certo (2011)

Em quase 60 anos de carreira, Hugo Carvana atuou em muitas frentes na TV e no cinema, seja como ator, roteirista, produtor e diretor. Foram mais 100 obras e dentre elas, nove longas dirigidos por ele. O penúltimo foi Não Se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, de 2011, derradeiro trabalho de Tarcísio Meira na telona. O roteiro de Paulo Halm apresenta Lalau Velasco (Gregório Duvivier). Ele viaja pelo interior do nordeste brasileiro com seu stand up onde conta histórias hilárias das trapalhadas de seu pai, Ramon Velasco (Meira). Certo dia, no Ceará, ele recebe uma proposta irrecusável de Flora (Flávia Alessandra) para se passar por um guru indiano contratado para uma palestra motivacional. Sem que seu pai saiba, Lalau vai para o Rio de Janeiro, onde, mais tarde, é encontrado por Ramon. Esta é uma comédia que se sustenta em situações de pura farsa que, em certa altura, assumem uma aura de mistério policial. Meira e Duvivier acertam na química, que fica melhor ainda quando entra em cena um velho amigo de ambos, Zimba, vivido pelo próprio Carvana. (MM)