Documentário acompanha à distância os últimos momentos em que Dilma Rousseff ocupou a presidência do Brasil

Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Vitrine Filmes/Divulgação
Quanto mais distantes os eventos históricos definidores de uma época, mais tem-se de certo a respeito de sua natureza. Por exemplo, tornam-se muito mais evidentes a nós os impactos do Plano Real agora, em contraste com sua interpretação no início do século. Da mesma forma, o impeachment de Dilma Rousseff marca, inequivocamente, a ruptura do país com certa instituição política – e torna-se cada vez mais evidente ao coro do povo, por sua vez, a trama do golpe que a destituiu.
Justamente nesse contexto que se insere o documentário Alvorada (Brasil, 2021 – Vitrine Filmes) de Anna Muylaert e Lô Politi, que acompanha passivamente os últimos momentos de Dilma no poder. As diretoras assistem, à distância, o dia a dia não somente da então presidente do Brasil, mas de toda a equipe que opera em seu entorno. O poder não é o cargo da presidência, mas a própria instituição que o fundamenta; a Alvorada, portanto, é a representação espacial desse poder.
Além de reuniões da presidente com seus assessores e ministros, ou da equipe de defesa do caso de impeachment, Muylaert e Politi espiam a papelada que troca de mãos, a definição dos cardápios de Rousseff e até a troca da água da piscina. Para tanto, o olhar passivo da câmera de Politi e César Charlone estabelece uma relação vital com o espaço negativo de seus quadros. O palácio é gigante e, assim, vazio. A ‘casa de vidro’ é suntuosa por fora, o aterramento do trabalho “de escritório” que figura ao longo do filme não deixa enganar – por dentro, o Palácio da Alvorada é tão vazio quanto o trono de quem o ocupa, que se esvazia de quatro em quatro anos para dar lugar a outro ocupante.
Contudo, essa abordagem fundamental da cinematografia não seria tão eloquente caso não estivesse ancorada na montagem a seis mãos de Muylaert, Vânia Debs e Hélio Vilela Nunes. Ela não vê necessidade em fiar-se em uma grande linha narrativa e, pelo contrário, arquiteta suas sequências indicando, quando muito, local, data e personagens envolvidos. Antes de um estudo íntimo de Dilma, é uma análise de diferentes braços do mandato justapostos por meio de um olhar paciente e distenso que vê, à distância, o julgamento político se aproximar – e quando ele chega, o acompanhamos pelas funcionárias e funcionários da casa, não pelos olhos da presidente.
Assim, Alvorada se revela como uma colagem de fragmentos cotidianos da instituição Presidência, não da pessoa Presidente. Com uma entrevista aqui e ali, temos mais acesso a conversas informais de Dilma ou suas interrupções da filmagem – claros limites estabelecidos entre o que se mostra e o que se planeja, indicando novamente que não assistimos a um retrato pessoal de sua figura – do que longos monólogos de suas opiniões.
Num olhar que transcende o filme em si mesmo, é de se esperar de quem assista uma desconstrução da persona que se assumiu popularmente de Rousseff devido ao processo do golpe. Quem a imagina uma pessoa despreparada, estúpida e incapaz se surpreenderá imediatamente com sua clareza, asserção e capital cultural. Num futuro próximo, é quase certo dizer que Alvorada não chegará nesse público. Entretanto, quanto mais distantes os eventos históricos definidores de uma época, mais tem-se de certo a respeito de sua natureza.