Personagem do Universo Marvel com mais de uma personalidade ganha série com sensacional interpretação de Oscar Isaac
Texto por Tais Zago
Foto: Disney+/Divulgação
O Cavaleiro da Lua apareceu pela primeira vez em HQs da Marvel em 1975, criado por Doug Moench e o artista Don Perlin. Na época, Marc Spector era o filho de um rabino e ex–marine americano que trabalhava como mercenário. Em um ataque que resulta na morte do arqueólogo Dr. Alraune na frente de sua filha e também arqueóloga Marlene, Marc é traído e gravemente ferido pelo seu companheiro Raoul Bushman. Abandonado para morrer no deserto, ele adentra a tumba do deus egípcio Khonshu, onde acaba morrendo. Khonshu resolve ressuscitá-lo com a promessa de Spector de passar a defender e vingar apenas os inocentes. Spector se torna assim “o punho de Khonshu”, servindo às vontades e aos interesses da divindade vestindo sua armadura lunar.
É a partir desse momento Marc assume a pecha de Moon Knight (seu nome na HQ original) e recebe uma armadura que dá a ele poderes e força extraordinários. Com o passar dos anos e de suas aparições nos comics, Marc foi assumindo outras personalidades (uma delas é o nerd Steven Grant) até ser oficialmente diagnosticado com transtorno dissociativo de identidade – o outrora chamado transtorno de múltiplas identidades. No universo Marvel, o Cavaleiro da Lua sempre foi um personagem secundário, aparecendo apenas eventualmente, algumas vezes como vilão e outras como mocinho. Essa contradição faz com que ele seja uma figura pouco conhecida, porém bastante interessante. Marc/Steven não sabe quem de fato é. Orbita entre múltiplas realidades (e localidades), assim como na dimensão dos deuses egípcios. A lua é seu símbolo e sua força. Assim como essa muda de fases, o cavaleiro muda de poderes e atitudes.
Com esse material em mãos, chegamos à versão da Disney + em mais uma empreitada do MCU. Quando achamos que o estoque de super (anti-)heróis se esgotou eis que tiram mais uma carta da manga – ou melhor, um underdog do arquivo de personagens. A primeira temporada de The Moon Knight (EUA, 2022) tem no total seis horas de duração. Pessoalmente, achei pouco. Fazia bastante tempo que um personagem não me empolgava tanto e arrancava boas risadas. Jeremy Slater (também da série The Umbrella Academy) foi escolhido como o showrunner e chamou para a direção dos episódios o egípcio Mohamed Diab e a dupla de cineastas de terror Justin Benson e Aaron Moorhead. Para o papel de Marc/Steven, foi chamado o ator Oscar Isaac, que entrega um cavaleiro impecável. Isaac parece claramente estar se divertindo muito com a dualidade do papel. Ele acerta em cheio o tom no peso e na violência do americano Marc e na leveza e no humor do inglês Steven. Um festival de sotaques de um grande ator para um papel complexo.
O primeiro capítulo já inicia nos jogando na centrífuga – ora Steven se encontra no trabalho, no souvenir shop de um museu, ora acorda todo ensanguentado no interior da Alemanha sendo perseguido por um grupo de seguidores de Arthur Harrow (Ethan Hawke). Nós nos sentimos tão perdidos quanto o personagem de Steven que, acreditando sofrer de sonambulismo, dorme acorrentado à sua cama; que marca encontros e não se lembra com quem; que recebe ligações de pessoas que não lembra conhecer e encontra coisas escondidas em seu apartamento que não lhe pertencem. Para alguns, a série pode tropeçar aqui no absoluto nonsense, mas para quem já conhece o trabalho de Jeremy Slater a certeza é que, em algum momento, (quase) tudo terá uma explicação plausível dentro da ficção.
Acompanhando o tema do personagem – a Lua – os cenários são sombrios, o tênue azul do luar é a luz quase constante, assim como a areia tem protagonismo. Visualmente pensamos em A Múmia ou os filmes de Indiana Jones. Para os fãs (aos quais pertenço), finalmente chegou a hora de juntar superpoderes, arqueologia, deuses e seres fantásticos da mitologia egípcia em uma única série. E o resultado é muito satisfatório. Mas o que seria de qualquer produção do MCU sem um(a) mocinho (a) como interesse romântico do herói? É aqui que entra a arqueóloga Layla (May Calamawy). Para salvar Steven e ser salva por Marc.
Dados todos esses elementos, não tem como dar errado, certo? Talvez não para todo mundo. Por vezes a narrativa se arrasta além do necessário: algumas cenas ficaram confusas e o Arthur de Ethan Hawke é bastante canastrão. Mas Oscar Isaac está sensacional e carrega a obra nas costas, fazendo valer o nosso tempo. O show é todo dele. Assim como a armadura do cavaleiro, Isaac modela a forma do personagem de acordo com a personalidade assumida. Marc? Steven? Mais alguém? Saberemos isso na segunda temporada…
Um final de semana com grandes shows mais organização e estrutura invejáveis ao sul da ilha da capital catarinense
Bala Desejo
Texto: Luciano Vitor
Fotos: Frederico Di Lullo
Nos últimos dois anos, todo o país ficou órfão de todos os tipos de eventos culturais possíveis. Por causa da pandemia da covid-19, shows, peças de teatro, saraus, cinemas e outros programas artísticos foram proibidos. Com a retomada gradual dos eventos por todo país, os concertos foram retornando ao cenário em Santa Catarina. Um dos mais aguardados, O Arvo Festival, após cinco edições, trouxe de volta um calendário de com 26 atrações reunidas entre os dias 15 e 16 de abril. Puderam apreciar grandes shows e encontros em uma estrutura invejável e enxuta em Florianópolis.
Antes de qualquer menção aos shows, algumas linhas são necessárias para descrever o local, limpeza, organização, presteza, tratamento humano e principalmente o respeito à natureza. O local, o Sítio das Águias, fica no bairro do Campeche, sul da ilha da capital catarinense. O bairro é conhecido não apenas pela extensa comunidade de músicos, surfistas e pessoas que buscam uma qualidade de vida melhor que nos bairros mais centrais de Florianópolis. Não à toa, Campeche é local das melhores praias e pistas de skate da cidade.
Com essas referências, o local mesclou respeito a natureza, organização e muito artesanato presente. Com uma área respeitável de estacionamento (um pouco salgado, mas terceirizado, nada módicos R$ 40), o acesso aos shows era bastante fácil, logo ao lado do estacionamento. Utilizando materiais recicláveis em sua estrutura, bituqueiras artesanais espalhadas por todo o local. Nenhum estande vendia latas ou garrafas de bebidas alcoólicas: eram chopes outros tipos de bebidas e todas em copos retornáveis, também com opção de compra do próprio copo.
A organização do festival era tanta, que até espectador que não tinha como adquirir comida dentro do local e levou sua própria marmita, teve sua condição avaliada pela produção e, em questão de minutos, teve um voucher disponibilizado para se alimentar. O público trans e especial teve ingressos gratuitos disponibilizados antes dos concertos através das redes sociais, transformando o evento em uma verdadeira democracia de acessibilidade e acolhimento. Poucas vezes em mais de vinte anos de cobertura cultural, vi engrenagens humanas funcionarem tão bem e tão rapidamente para deixarem tudo dentro dos conformes. Dito isso, vamos a um resumo do que foram os dois dias.
O que chama a atenção, não apenas no Arvo mas em outros eventos de médio a grande porte, é a conexão do público mais jovem com veteranos da música brasileira. Dois deles eu não consegui ver, infelizmente. Uma foi Dona Onete, a “diva do carimbó chamegado”, que aterrissou direto de Belém, com sua malemolência, carisma e talento. O outro, o Bixiga 70, uma verdadeira instituição, veio com uma série de elogiados trabalhos com sua mistura de afrobeat, música latina e brasileira. Tocou faixas de álbuns como Ocupai, Quebra Cabeça e o homônimo Bixiga 70, que estão entre os mais representativos da música instrumental e são alvo da cobiça dos colecionadores de vinis.
Di Melo e Aláfia
Misturando rap, pop e tecnobrega, Potyguara Bardo trouxe seu disco Simulacre, para os palcos catarinenses. A múltipla artista de Natal detonou uma mistura de ritmos tipicamente brasileiros, letras escrachadas e uma estrutura minimalista, com mais guitarrista e DJ. Com figurinos roxos e fluorescentes, o trio atraiu basicamente, todos que ainda chegavam no local por volta das 18h do primeiro dia. Com pegada, histórias e conversas, a cantora cativou o público. Mostrou carisma, intimidade e deu muitas risadas. É um nome para ficar de olho na nova safra da música brasileira. Me lembrou muito o escracho de uma das bandas mais controversas da década de 1990, o Textículos de Mary, de Recife.
O aumento de músicos no palco, principalmente pela presença da sanfona, já chamava a atenção logo depois. Exatamente às 19h, a paulistana Mariana Aydar, pisou no palco. Com um figurino verde-amarelo, dentro de um vestido tubo, a cantora conquistou de cara o público. Com um set list calcado em Veia Nordestina, disco de 2019, o show foi ganho nos primeiros minutos. Com triângulo nas mãos, a cantora dominou a turba, trazendo de pleno abril um verdadeiro São João. Mas qual o problema se o carnaval deste ano foi realizado nesse mesmo abril? O repertório é conhecido do público, porém (e sempre existe o porém) a cantora ao abraçar um repertório mais popular corre o risco de encontrar a vala comum do dial das FMs atuais. É ruim? Depende do público que Mariana quer atingir. É o nicho onde tão bem trafega Seu Jorge, onde o mesmo consegue manter-se entre o cult e o popular? Ou onde se misturam Luan Santana e Anitta nas FMs? O limite é ínfimo e Mariana Aydar, que além de cantora é produtora e compositora, sabe bem onde quer chegar.
Uma preparação que estressa quem não conhece um artista é o início do show que leva mais tempo do que a plateia deseja. Mas quando são vistas nove pessoas no palco entende-se o porquê da demora. Foi assim no concerto seguinte. Daí veio uma mistura de Carnavais passados, música cubana, música indie, sopros de metais e o que tinha mais pela frente: Novos Baianos, Clube da Esquina e uma profusão de sons e ritmos em uma ebulição louca. Daí você se dá conta do porquê do nome da banda, porque a loucura é tanta e porque o show é catártico. Esta é uma banda pronta, que traz das suas referências uma atualização para os novos anos 2020. Ao beberem em fontes que envolvem Azymuth, Caetano Veloso, Chico Buarque, jazz brasileiro, Marcos Valle, esse pessoal consegue transmutar uma sonoridade para o século 21, tornando-se outra banda e, ao mesmo tempo, soar como algo inteiramente novo.
Julio Sechin, do Rio de Janeiro, é diretor de vídeoclipes de várias bandas e artistas. Tanto envolvimento trouxe naturalmente Julio para a ribalta. Ele faz pop, rap e funk para não iniciados. E encantou desde o primeiro momento no palco, com muita simpatia já se apresentando no sábado. Malemolência carioca à toda prova. E uma rara oportunidade de ver uma vertente atual que já fizera muito sucesso na década de 1990.
Depois veio Jean Tassy, de Brasília. Utilizando as bases do hip hop old school, ele consegue com um belíssimo background, trazendo suas letras para a atualidade. O problema é que as batidas soam muito repetitivas. Mesmo as letras sendo bem escritas, com conteúdo, esbarram no lugar-comum. Também notei a falta que uma backing vocal feminina fez ao show do rapper. Isso faria uma enorme diferença…
Quando a Aláfia subiu ao palco, passando um pouco das 20h, as estruturas mudaram! O caldeirão musical envolto em três belíssimos trabalhos lançados colocou fogo no parquinho. A mistura de afrobeat, soul, jazz e hip hop, tudo com muita negritude, não apenas eleva a sonoridade da big band paulistana. Transmuta o som a outro nível. Não foi apenas um show: foi O SHOW. Uma porrada que chegava como uma avalanche de cores, ritmos e aquela funkeada de primeira! O set list se dividu em três partes, tendo deixado a cereja do bolo para o meio. Com alguns ensaios ainda em São Paulo, Di Melo adentrou ao palco, colocando todo mundo para dançar ao som de “Kilariô” e “A Vida Em Seus Métodos Diz Calma”. Findando a participação especial do pernambucano mais manezinho que a cidade conhece, o som da Aláfia continuou reverberando no sul da cidade, trazendo não apenas os caminhos abertos, axé e muita luz no palco. Enquanto isso, um pé torcido me tirava do jogo bem mais cedo do que eu queria…
Agora que venha o próximo Arvo, já prometido para o mês de outubro!
Legado e moldura do clássico que há 50 anos projetou Francis Ford Coppolaà fama e consolidou uma nova geração de diretores em Hollywood
Texto por Leonardo Andreiko
Fotos: Paramount/Divulgação
Nas comemorações que se deram em virtude dos 50 anos de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, foi mais que enfatizado o lugar monumental que a obra ocupa na história do cinema. Desde seu lançamento, em 1972, o impacto da saga de Michael e Don Vito Corleone é dos mais perceptíveis e presentes no imaginário popular.
Não somente o pioneiro da reabilitação do filme de gângster, que teve seu auge de popularidade nos anos 1930, O Poderoso Chefão é um dos pilares da Nova Hollywood, movimento definido pelo protagonismo de uma nova geração de autores egressos das novas faculdades de cinema norte-americanas, que estouraram na década de 1960 e produziram uma geração fortemente influenciada, entre outros, pelo cinema europeu da época. A definição desse período é palco de um conflito, pois é possível considerá-lo uma mudança estética em voga, que renunciaria ao classicismo hollywoodiano em virtude da exploração de um cinema moderno. Ou como uma mudança de paradigmas comerciais para o cinema produzido pelos grandes estúdios.
Entender O Poderoso Chefão em toda sua magnitude é enxergá-lo como esse marco central para a história do cinema. Nesse texto, pretendo introduzir o leitor às particularidades de uma peça tão única da sétima arte. Não como um especialista, o que estou longe de ser. Esse é o papel de teóricos e críticos que cito adiante – sou um mero entusiasta da história por trás da saga do Padrinho e da história do cinema.
Produção turbulenta
Esse não foi o primeiro filme de Francis Ford Coppola, mas sim o responsável por catapultá-lo ao estrelato. Se, ao dirigir a continuação da saga, lançada dois anos depois, em 1974, o então jovem diretor gozou de um controle criativo que beirava o absoluto, em O Poderoso Chefão contava uma história praticamente oposta.
Coppola enfrentara diversas dificuldades de produção, com a insistente e pesada mão da Paramount controlando o orçamento, cortando diárias e insistindo na contratação e demissão de outro elenco. Por pouco não tivemos James Caan (que interpreta Sonny Corleone) como Michael e Robert De Niro escalado para interpretar Sonny.
Esses descompassos dão o tom de uma produção que ainda não usufruía do alto controle e independência conferidos ao diretor, mas certamente teve um papel fundamental num giro de mercado que passaria a ressignificar a relação entre autor e estúdio. A Nova Hollywood, enquanto entendida como uma mudança econômica no sistema de produção cinematográfica dos estúdios, passou por dois períodos fundamentais. Após a derrocada do antigo sistema, pela crise fiscal e surgimento da televisão, que muito bem renderiam outro desses textos, O Poderoso Chefão (1972) se encontrou no limiar que antecedeu a guinada ao modelo de blockbusters integrados aos mercados de multimídias (os blockbusters high concept), brinquedos e afins. Três anos separavam o longa do ápice que se deu a partir de Tubarão (1975) e cinco do “ponto de não retorno” que foi Guerra nas Estrelas (1977).
O filme-produto e a ida aos cinemas como um espetáculo em si mesmo são duas noções já concretizadas na discussão contemporânea, mas cuja gênese foi justamente esse período. Os estúdios perceberam, a partir desse momento, novas estratégias de lidar com a criatividade norte-americana e torná-la monetizável para além do valor do ingresso. A sociedade de consumo setentista, que culminaria na globalização que vivemos pouco tempo depois, percebeu o frescor da filmografia dessa Nova Hollywood e a abraçou completamente.
É sensato afirmar que houve uma flexibilização dos códigos morais dessa sociedade a partir dos anos 1960. A Era de Ouro e a Nova Hollywood representavam duas americanidades muito distintas, uma mudança de tom que acompanhou a maré social e aceitou e até convidou a margem para o centro da tela. O cinema passou a tratar da sujeira das grandes metrópoles: os criminosos, gigolôs e prostitutas, traficantes e usuários de drogas, os desajustados e psicopatas. A Nova Hollywood não fantasiava um mundo que não existe, mas partia das contradições e feridas reais de uma sociedade em crise para criar sua expressão.
O movimento deu ao público o que ele queria mas não sabia ainda. Se o primeiro grande longa-metragem de Francis Ford Coppola, de cerca de seis milhões de dólares, alcançou lucros vinte vezes maiores que seu custo (ao contar os relançamentos, estratégia muito comum na época), restou aí prova suficiente do sucesso de um novo modelo estético e econômico. Estava dado um precedente que reformularia o relacionamento dos grandes estúdios com os diretores responsáveis por seus lançamentos seguintes.
Heranças e legados
A esses jovens autores, dos quais podemos citar Coppola, Martin Scorsese, Steven Spielberg (é claro!) e também Brian de Palma, Michael Cimino e Paul Schrader, coube uma maior liberdade criativa. Seu cinema poderia respirar para além dos paradigmas mercadológicos que, nos últimos anos, teriam trazido Hollywood a uma de suas baixas históricas, ao mesmo tempo em que crescia a influência dos cineastas europeus sobre o público geral e os novos cinéfilos estadunidenses.
Fernando Mascarello, historiador do cinema de grande relevância, assinala em um dos artigos do livro História do Cinema Mundial, do qual foi organizador, como a mudança estética, no fim das contas, não se permitia tomar tanta distância do cinema clássico hollywoodiano quanto se esperava. O cineasta Peter Greenaway, um pouco mais polêmico, afirma que Scorses fazia o mesmo cinema que HW Griffith, um dos pais da sétima arte nos EUA, ainda em 1910. Mas isso não quer dizer que longas desse período não se caracterizem pelo rico desenvolvimento de um discurso cinematográfico por meio da linguagem – e Francis Ford Coppola o faz com primor.
O Poderoso Chefão já começa na panela de pressão de Don Vito Corleone. Enquanto o agente funerário Bonasera relata o violento abuso de sua filha em uma cena sem cortes, a câmera lentamente se abre para revelar a impassível silhueta da personagem de Marlon Brando. O pedido por vingança (ou justiça) é impassivelmente negado e o Don é categórico ao dizer “você nunca quis minha amizade”. Respeito é essencial e sem ele não há devolutiva do Padrinho. Afinal, a Família não é um bando mercenário.
Como o crítico Pablo Villaça, um dos maiores conhecedores da trilogia no Brasil, apontou em sua recente palestra sobre o longa para o Cine Passeio, o primeiro episódio dessa saga de poder nos introduz ao contraste entre a Família, a soturna máfia e sua verve impassível que opera sob um código moral bastante rígido, e a família Corleone: Don Vito e seus filhos, filha e relações agregadas. Michael (Al Pacino) é o mais novo dos irmãos homens e, ao contrário dos demais, recusa-se a participar do negócio da família. Nosso primeiro contato com o próximo Don, que se tornará cada vez mais cruel, é o vislumbre de um jovem oficial do exército que almeja a faculdade e um relacionamento saudável com Kay (Diane Keaton) bem distante das sujeiras da Família.
Assim, alavancado pelo belíssimo jogo fotográfico de Gordon Willis, que justapõe o claro e vivaz jardim onde ocorre o casamento de Connie Corleone (Talia Shire) e as lúgubres sombras dos “negócios de Família” que se dão no escritório do Padrinho sem contrapô-las – pois são indissociáveis, uma contraparte inerente da outra –, Coppola desenvolve temática e esteticamente todo o arco de Michael. E, aqui, aqueles que ainda não assistiram ao clássico devem se atentar: Al Pacino pode não ser o poderoso chefão da família Corleone, mas é o protagonista dessa história. Esse é o filme sobre sua virada de chave – o declínio moral de quem esperava manter-se distante das tramas de poder da máfia.
O roteiro de Mario Puzo e Coppola é categórico ao ilustrar o primeiro momento em que Michael toma as rédeas de seu lado mafioso: a cena do hospital, que marca com precisão a primeira hora do filme. Quando percebe a emboscada em que seu pai se encontra, além de recentemente baleado em um atentado, o protagonista consegue salvá-lo e clama ao Don: “estou com você”. Os planos desse diálogo vão se afunilando, modo de Coppola deixar claro o envolvimento emocional entre Vito e seu filho mais novo.
As duas horas seguintes ocupam-se da destruição da família Corleone, que perde o primogênito Sonny (aquele James Caan que quase fora Michael); tem de conviver com Carlo (Gianni Russo), o esposo abusador de Connie; e mais tarde sofre com a perda definitiva de Don Vito. No meio do caminho, Michael ainda deve exilar-se na Itália, apaixona-se por Appolonia (Simonetta Stefanelli) e a perde num atentado projetado para matá-lo – o segundo ponto-chave de sua história, que o sacramenta como o sucessor impiedoso e implacável dos negócios da Família. O ritmo de uma narrativa tão movimentada é invejável – o trabalho de montagem de William Reynolds e Peter Zinner jamais deixa a peteca cair, mas não comete o pecado de tornar O Poderoso Chefão uma obra que se reduz aos acontecimentos sequenciados de seu enredo.
A densidade das personagens jamais teria sido possível sem a parceria de Mario Puzo, o autor do livro que dá origem às partes I e II da saga, e Coppola. Os Corleone e seus inimigos vivem e respiram. Sentimos com eles o peso dos atritos e traições, por mais reprováveis que possam ser seus códigos morais. Uma qualidade cada vez mais rara no cinema comercial contemporâneo: são filmes sobre pessoas inerentemente falhas. Pessoas, nesse sentido, normais. Torna-se mais simbólico o pano de fundo da máfia, pois não somente o movimento mas o cinema como um todo se permitia explorar ambiguidades morais, alçar más pessoas como personagens ou até deixar de lado o julgamento ético, posturas que o pânico moral contemporâneo reduziu ao maniqueísmo ingênuo do herói contra o vilão, o bem imaculado contra o mal sem substância.
Contudo, não há nada de “normal” nos retratos de Coppola, se pelo termo entendermos algo próximo do real, verossímil. Os Corleone são figuras para além da realidade, quase que como munidos de uma atmosfera imponente e espetacular. O Poderoso Chefão é, também, espetáculo, e para sê-lo não precisa sujeitar o espectador à lógica da montanha-russa que Scorsese, grande amigo de Coppola, tanto critica. Esse é um dos exemplos mais bem-sucedidos (em recepção e no mercado) da movie magic do cinema americano após seu período clássico – e a magia do cinema não precisa de seres sobre-humanos voando cá e lá, mas de boas histórias. Não há nada mais fantástico que a humanidade.
Thriller de Steven Soderbergh traz Zöe Kravitz como uma isolada techie que cuida de uma assistente virtual até sua vida virar do avesso
Texto por Taís Zago
Foto: HBO Max/Divulgação
Em tempos de Siri e Alexa, a IoT (Internet of Things) tá cada vez mais presente na vida cotidiana das pessoas e já anda ocupando espaço no audiovisual também. Kimi é a versão fictícia da Alexa, mas não, aqui não se trata de mais uma distopia dos computadores querendo dominar o mundo. Kimi não é Hal. E também não tem outro papel na trama de Kimi (EUA, 2022 – HBO Max) a não ser atender aos pedidos e responder às perguntas de Angela (Zöe Kravitz).
Angela, por sua vez, trabalha como techie desfazendo bugs de Kimi. Passa seu dia escutando trechos de áudios gravados pelos usuários que não tiveram seus pedidos atendidos pela secretária virtual. Ela se ocupa de adicionar ao código todas as novas questões que são levantadas, ampliando assim a base de dados de dispositivo.
Boring. Sim. Uma das atividades mais metódicas e maçantes do TI junto a testing é o bug fixing. Mas Angela gosta e precisa da organização, da solidão e da previsibilidade do seu trabalho. Ela sofre de agorafobia, episódios de pânico e extrema ansiedade desde que foi atacada na rua. Nunca sai de casa. Nem mesmo com um dente infeccionado. E a pandemia do coronavírus só colaborou para agravar ainda mais o seu quadro.
Tudo parece certinho: ela trabalha, come ou se exercita em casa, tem até um caso com um vizinho do prédio da frente que volta e meia aparece para visitá-la. De forma geral, ela vê o mundo pela janela e também é observada. É Steven Soderbergh fazendo homenagem a Hitchcock em seu pequeno porém bem feito thriller. Zöe interpreta Angela como uma pessoa nervosa, rígida e frágil, consumida pelos seus medos, mas que também não faz nada para escondê-los. Ela assume suas limitações, carrega esse fardo publicamente. Dos poucos contatos de sua vida, a mãe, parece ser a muleta emocional. E a mãe tá meio de saco cheio. Assim como o quase namorado.
E é nesse clima que as coisas viram do avesso na vida da protagonista. O isolamento tão confortável, de uma hora para outra vira correria, com direito a perseguições e escapadas fantásticas. Angela é literalmente empurrada de sua zona de conforto. E ela não é personagem alguma da Marvel e nem uma Elisabeth Jennings (The Americans), é só uma geek cheia de manias. Porém, tem ao seu lado um superpoder que apenas os ansiosos têm: ela funciona sob pressão, pois já sofreu todos os cenários possíveis antecipadamente dentro de sua cabeça.
A trilha sonora também é um bom pano de fundo como em momentos de tensão – no maior de todos a “virada de mesa” ocorre ao som de “Sabotage”, dos Beastie Boys – e tudo termina com “Connection”, da banda de britpop Elastica. Nada mais sunny side of life do que isso. Não tem mais filme sem banda noventista, meus amigos. Pelo menos por mais alguns anos. E acho que tá bom assim.
Lázaro Ramos assina a direção de adaptação contundente de peça teatral que brada contra o racismo estrutural de nosso país
Texto por Abonico Smith
Foto: ELO Company/Divulgação
Nos últimos anos Hollywood vem emplacando adaptações de peças teatrais que tratam de questões sociais, culturais e histórias cruciais dos afro-americanos. São espetáculos bem-sucedidos (público e crítica) e que, quando ganham as telas e a linguagem cinematográfica, não perdem a sua contundência e ainda abocanham uma ou outra indicação para algumas das principais premiações da temporada. Foi o caso de Fences, One Night In Miami… e Ma Rainey’s Black Bottom (que, no Brasil, ganharam os títulos de Um Limite Entre Nós, Uma Noite em Miami… e A Voz Suprema do Blues), por exemplo.
Agora o cinema nacional segue a tendência com Media Provisória (Brasil, 2022 – ELO Company), gravado em 2019 e que chega nesta semana às salas de projeção depois de ter sido exibido em festivais e no Festival do Rio no ano passado. A história é baseada na peça Namíbia, Não!, escrita pelo ator e dramaturgo baiano Aldri Assunção e que estreou nos palcos em 2011 com a direção de Lázaro Ramos. Lázaro, por sinal, assumiu a mesma função no cinema, ainda assinando o roteiro adaptado em parceria com o próprio Aldri mais Elisio Lopes Jr e Lusa Silvestre. A história apresenta um Brasil em um futuro nada muito distante que apresenta uma condição sociopolítica arbitrária implantada por meio da canetada de uma medida provisória implementada pelo governo represente de uma classe dominante branca, babaca e preconceituosa. De uma hora para outra, todos os pretos que estiverem nas ruas ou em qualquer outro local público podem ser capturados imediatamente para que se cumpra a nova lei de deportação pessoal para o continente africano. A tal medida seria um jeito de se fazer a grande reparação social pelo passado escravocrata que durou até quase o encerramento dos tempos do império. Então, nada “melhor” do que mandar todos os descendentes de escravos de volta para a terra de onde vieram seus antepassados.
Em sua estreia na direção de longa-metragem, Lázaro acerta em cheio na questão irônica que permeia toda a trama distópica que junta elementos do drama e da ficção científica. Não só o baiano alcança as entranhas do racismo estrutural que ainda permanece em nosso território como ainda salpica metáforas que podem se estender bem além da questão da negritude. A sombra da política autocrata que se projeta em nossa democracia nos últimos anos também é citada levemente em tiradas bem-humoradas. O confinamento ao qual o trio de protagonistas se rende para evitar a captura nas ruas também vale algumas equivalências com a pandemia.
A trinca do elenco principal está afinada e garante mais um ponto bem positivo ao filme. Alfred Enoch (ator anglo-brasileiro que durante os anos da adolescência interpretou um dos bruxinhos de Hogwarts na série de oito filmes de Harry Potter) é o advogado Antonio, um dos grandes líderes da resistência preta que luta de todas as maneiras contra a atual narrativa imposta pelos opressores brancos. Taís Araújo interpreta a sua cara-metade Capitu, médica resiliente e igualmente insatisfeita, de quem ele acaba se afastado pelas circunstâncias das fugas e lutas contra o ato higienista promovido pelo governo autoritário. Fecha a escalação Seu Jorge, que se equilibra entre as falas bem-humoradas de seu jornalista André e a intensidade emocional de quem também se mostra profundamente revoltado com toda violência e injustiça que passam a ser cometidas contra as pessoas de melanina acentuada (termo cruel e indecentemente eufemista para se referir aos pretos). Entre os coadjuvantes, Adriana Esteves e Renata Sorrah se destacam como as duas antagonistas caucasianas. Já na turma rebelde, o rapper Emicida, em sua estreia como ator de longa-metragem, não faz nada feio em seu pouquíssimo tempo de tela.
Manifesto de profundas reflexões sociorraciais, Medida Provisória ainda carrega uma maravilhosa trilha sonora de vozes pretas brasileiras (Elza Soares, Baco Exu do Blues, Liniker, Rincon Sapiência, Flora Matos, Tássia Reis, Xênia França, Tuyo e Agnes Nunes em uma tocante releitura de “Preciso Me Encontrar”, clássico de Cartola) e traz em seus créditos a maior lista de “gente de melanina acentuada” já reunida em um filme brasileiro.
Enfim, tudo indica um resultado catártico durante as exibições pelos cinemas de todo o país. Não há como não soltar o grito preso há décadas na garganta de milhões e milhões de brasileiros (sim, porque a miscigenação também é uma das nossas maiores características sociais) quando começam a subir os créditos finais.