Movies

Conduzindo Madeleine

Passageira idosa e taxista estressado tornam-se cúmplices durante extenso trajeto cheio de lembranças e afetos em Paris

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Dirigir estressa. Que o diga o taxista Charles. Por precisar ganhar dinheiro para pagar dívidas e levar comida para esposa e filha em casa, guia seu táxi por Paris seis dias por semana e muitas horas a cada dia, sempre com os nervos à flor da pele. Reclama de tudo e de todos, xinga clientes, pedestres, ciclistas e motoristas sem parar. Seu dia a dia não parece ter muitas nuances diferentes da previsibilidade e do constante estado de nervosismo. Até uma chamada incomum para atender uma passageira cair no seu colo.

Madeleine Keller é uma tagarela senhora de 92 anos que solicita um táxi para realizar um trajeto longo e incomum. Ela sai de sua casa com destino a uma casa de repouso para idosos. Com um bom dinheiro em mãos, não se furta em pagar o necessário para Charles. De taxímetro ligado (e autorizado para isso) desde antes de buscá-la, o chofer vai pegá-la do outro lado da cidade. Depois, atendendo a pedidos, aumenta o percurso para que a senhora possa visitar locais do passado, relembrar coisas da família e da vida e ainda esticar o tempo no que for possível, para chegar o mais tarde que der ao seu destino final.

Conduzindo Madeleine (Une Belle Course, França/Bélgica, 2022 – Califórnia Filmes), exibido antes por aqui no Festval Varilux, chega agora ao circuito nacional de cinema mostrando o improvável encontro esses dois personagens. Basicamente a trama vai se desenvolvendo durante o trajeto pelas ruas da capital francesa, com direito a flashbacks elucidativos. Neles, Madeleine (Line Renaud nos dias atuais e Alice Isaaz quando jovem) vai contando a Charles (Dany Boon) muito dos perrengues que vivera quando moça. A morte do pai durante a Segunda Guerra. A primeira paixão. O primeiro beijo. Os bailes da juventude. A gravidez inesperada e a maternidade ainda solteira. O namorado egocêntrico que, sem parar, abusava dela física e psicologicamente. A hora da vingança contra ele. A injusta pena imposta ela pela justiça por isso.

Pouco a pouco, o estressado motorista vai ficando para trás, dando espaço a um curioso e atencioso homem, cada vez mais envolvido com a peculiar experiência de vida da simpática idosa que acabou por se tornar um símbolo da resistência feminina contra os abusos da totalmente dissimulada sociedade daqueles tempos mid-century, regida sempre de acordo pelo impiedoso patriarcado. Carregadas de dramaticidade, as relembranças de Madeleine vão provocando profundas mudanças em Charles, mesmo com o pouco tempo de convivência entre os dois. O filme, então, vai se tornando um tocante road movie pelas charmosas ruas parisienses. A pequena bolada que ele vai ganhar pelo extenso e duradouro percurso com a passageira já passa a não importar tanto. Espectadores assistem a uma rápida conversão do motorista em cúmplice da senhora, que, ao mesmo tempo, passa a retribuir com gratidão a atenção dada por ele. Sobretudo depois de uma cena-chave em que ocorre uma perigosa ultrapassagem de um sinal vermelho. Os dois, uma com o dobro da idade do outro, tornam-se cúmplices a ponto de já não se saber mais quem conduz quem, metaforicamente falando. Contribui para isso a química entre Renaud e Boon, que já trabalharam juntos antes (na comédia romântica A Riviera Não é Aqui, de 2008) Com uma história simples, cativante e afetuosa, Conduzindo Madeleine provoca sério risco de derramar lágrimas em espectadores mais incautos quanto ao envolvimento de emoções. Só que não toca na tangente no melodrama e ainda proporciona alguns momentos de humor. Sem falar nos pontos de reflexão a respeito de mudança dos tempos, necessidades pessoais e também as dificuldades que cada um enfrenta no decorrer de sua vida.

Music

Coldplay – ao vivo

Plateia de Curitiba recebe a banda pela primeira vez e faz parte de um espetáculo com um universo próprio de cores, luzes e protagonismo

Textos por Janaina Monteiro e Carolina Genez

Foto: Coritiba Foot Ball Club/Reprodução

Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal. 

“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse. 

Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas. 

Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.   

A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000. 

Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê ­ – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.

Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.

Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.

E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas.  Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê. 

E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ

De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”.  Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida! 

Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo. 

Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.

Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio. 

Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.

No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas. 

Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)

***

A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.

set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show  tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano  enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.

O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.

O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)

Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).

Music

BNegão – ao vivo

MC do Planet Hemp recria obra praieira de Dorival Caymmi com a participação de Danilo Caymmi e da Orquestra à Base de Sopro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Bernardo Santos teve uma epifania na adolescência, nos anos 1980, deitado no chão do quarto, ouvindo o vinil Canções Praieiras, de Dorival Caymmi. Durante a audição das quatro faixas do lado A, seu corpo tremia todo, a cabeça alucinava com as imagens propostas pelas letras. Quando a agulha chegou ao sulco central do long play, bateu aquele medo de virar o disco. Se a metade inicial já provocara todo esse rebuliço nele, arriscar as outras quatro faixas finais logo de cara passava a ser algo temeroso a se fazer de imediato.

Esta pequena lembrança de sua adolescência foi contada logo após o início do show BNegão Canta Dorival Caymmi com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, a principal atração do último dia 27 de janeiro da tradicional Oficia de Música de Curitiba que há 40 edições enche de harmonias, melodias, cantos e instrumentos a capital paranaense. No Teatro Guaíra, BNegão voltava a receber seu fiel escudeiro neste projeto, o violinista Bernardo Bosisio, para recriar as tradicionais canções registradas na fase “praieira” de Dorival Caymmi, majoritariamente gravadas no formato voz e violão. Juntos, algumas vezes já se apresentaram algumas vezes nos últimos anos para celebrarem este período todo especial da obra desta divindade que representa um período de ligação entre os sambas-canção da era de ouro do rádio no Brasil (todos os anos 1940) e o surgimento da bossa nova (final dos 1950). Desta vez, porém, trouxe novidades.

Dois convidados ilustres da cidade também participaram do concerto. Veio primeiro Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, criada há 25 anos e com extenso currículo de concertos e presenças na Oficina, veio primeiro. Com doze instrumentistas de sopro (um deles seu regente e diretor artístico, Sergio Albach) e mais o acompanhamento de bateria, percussão, contrabaixo acústico e piano. Preencheu alguns dos arranjos com uma sofisticada orquestração que em vários momentos não só relembrou a sofisticação do pop dos anos 1960 como também o tempo em que as canções pré-praieiras de Caymmi era executadas pelos muitos músicos contratados para trabalhar diariamente no auditório da Rádio Nacional no Rio de Janeiro. Isto é, tempos em que a música popular, fosse nacional ou estrangeira, apresentava uma riqueza de possibilidades analógicas que maravilhavam todo e qualquer ouvido. E já na metade final do repertório, Danilo Caymmi, um dos filhos do homenageado (e que também mora em Curitiba há alguns anos), ocupou a cadeira do outro lado de BNegão para dividir com ele os vocais de algumas das principais composições do pai. Por fim, o set list de 16 canções apontou para o que o artista carioca irá apresentar em seu próximo álbum, o primeiro efetivamente solo, que será gravado no decorrer deste ano (e muito provavelmente com o acompanhamento não só de Bosisio mas também da própria orquestra curitibana).

O que se viu durante cerca de uma hora de concerto foi um BNegão extremamente emocionado por estar no comando de versos poderosos de Caymmi, que exaltam as belezas, alegrias, tristezas e perigos do mar mais todo o universo que gravita ao redor das ondas: o vento, os peixes, as jangadas e canoas, a praia, as mulheres dos pescadores e também a soberana rainha das águas, Iemanjá. A afinação mais grave do violão usado por Caymmi nas gravações estava reproduzida por Bosisio. O vozeirão tonitruante de Danilo, por sua vez, incorporou a principal característica de seu pai enquanto intérprete. Já o também MC do Planet Hemp, por sua vez, justificou de cabo a rabo a “herança espiritual” daquele repertório. Fala mansa, timbre menos grave do que o de Dorival porém não tão longe assim para se encaixar perfeitamente nas canções, reverência constante ao mestre e ainda um ligeiro quê de esperteza e malemolência para dar brilho à interpretação das obras escolhidas para aquela noite. Do início, sossegado e na brisa de “O Vento” às várias saudações a Iemanjá (“Dois de Fevereiro”, “Promessas de Pescador”, “Morena do Mar” e “Rainha do Mar”), passando por flertes com o PH, como no canto falado da work song “Pescaria (Canoeiro)” ou nos versos violentamente trágicos e impactantes de “A Jangada Voltou Só”.

E não poderia ser algo diferente o final de toda aquela celebração que não com “Canção da Partida”. De vinheta de abertura do álbum Caymmi e o Mar (pertencente a uma história narrada com prosa e músicas entremeadas), a marchinha transformou-se em hino, daqueles de serem cantados a plenos pulmões. Tanto que, segundo contou Danilo no palco daquela noite, tornou-se um grande hit na Rússia de Vladimir Putin. Tudo por conta de uma adaptação do cinema norte-americano (rodada inteiramente na Bahia e falada em inglês) do livro Capitães de Areia, de Jorge Amado. The Sandpit Generals, de 1971, foi fracasso de bilheteria em território norte-americano, mas fez tanto sucesso quando exibido na então União Soviética, com a canção na voz de Dorival na trilha sonora. Se no Brasil pouco se soube sobre a produção, já que ela fora censurada pela ditadura militar, os jovens russos adotaram a melodia, que depois até ganhou uma versão em russo e se transformou em símbolo da entrada no mundo adulto no comunismo da era anterior a Leonid Brejnev, que liderou o Soviete Supremo de 1977 até morrer em 1982). Vale lembrar que aquele período ficou conhecido como era da estagnação. Muitos dos recrutas dispensados de servir ao país durante a Guerra do Afeganistão (que duraria de 1979 a 1989) não encontravam oportunidades de estudar nem trabalhar e viram na obra do baiano o manifesto perfeito para quem se encontrava às margens da sociedade e via o ingresso em organizações mafiosas daquele país como a única tábua de salvação para continuar tocando a vida.

No Guaíra, a pequena multidão não vinha de Moscou e arredores e nem devia saber da existência do tal filme mas reagiu tal qual aquela juventude russa distante dos anos de 1971 (o filme) ou 1957 (Caymmi e o Mar). Quando o arranjo acabou, a alternativa para os cantores e instrumentistas ali no palco foi retomar a música imediatamente, de tanto entusiasmo e efusividade. Sinal de toda a contemporaneidade de Dorival Caymmi, afinal grande parte da plateia do teatro era formada por pós-adolescentes, jovens e jovens adultos que também não eram nascidos no tempo da produção fonográfica praieira de Caymmi ou quando The Sandpit Generals foi rodado. E tal como BNegão, tiveram uma epifania – agora coletiva – naquela noite ao som da obra do baiano que cantou como ninguém o mar (e sem saber nadar, aliás!). 

Set list: “O Vento”, “Noite de Temporal”, “Quem Vem Pra Beira do Mar”, “Pescaria (Canoeiro)”, “Dois de Fevereiro”, “O Bem do Mar”, “Promessa de Pescador”, “Morena do Mar”, “Rainha do Mar”, “Itapoã”, “O Mar”, “A Jangada Voltou Só”, “É Doce Morrer no Mar”, “A Lenda do Abaeté”, “Saudade de Itapoã” e “Canção da Partida”.

Movies, Music

Elvis

Oito motivos para não deixar de assistir à cinebiografia do ídolo do rock, escrita, produzida e dirigida por Baz Luhrmann

Texto por Abonico Smith

Foto: Warner/Divulgação

Nesta quinta-feira estreia em circuito nacional o primeiro longa-metragem em nove anos assinado pelo diretor, produtor e roteirista Baz Luhrmann. Elvis (Austrália/EUA, 2022 – Warner) chega aos cinemas simultaneamente a outros países da América latina, como México e Argentina – portanto, não dá para se cravar que a “coincidência” de data com a estapafúrdia ideia de se celebrar do Dia Mundial do Rock um dia antes (13 de julho). Por vários motivos, aliás. Primeiro, porque não existe um dia ou sequer um marco específico para se comemorar como o mais significativo para o gênero, que não brotou do nada, não foi inventado por ninguém em especial e foi formado graças a toda uma conjuntura de fatos históricos e sociais. Depois porque escolher 13 de julho por causa de realização do Live Aid em 1985, simultaneamente em dois continentes, é de uma tacanhice só em relação a toda a história do rock. Em relação à trajetória dos grandes festivais, aliás, todo mundo sabe da insignificância do Live Aid perante a antecessores como Woodstock (1969, o que levou mais gente na história), Monterey (1967, o realmente primeiro evento gigante do tipo) e ainda mesmo o nosso Rock In Rio (que, seis meses antes, colocou o Brasil na rota dos grandes festivais e ainda trouxe o Queen de volta aos palcos antes mesmo do Live Aid). Por fim, nada disso de Dia do Rock é mundial. A alcunha nasceu de um papo-furado inventado por uma estação de rádio paulistana para justificar um evento com vários shows com a participação de bandas de rock da cidade (e brasileiro adora acreditar em fake news!).

Mondo Bacana destrincha oito motivos pelos quais, apesar do tal do “Dia do Rock”, você não pode perder o filme que leva às telas um pouco da biografia daquele que não só foi um dos grande pioneiros do gênero, como também cravou seu nome no panteão dos maiores ícones musicais de todo o século 20.

Baz Luhrmann

Todo mundo sabe que os filmes do australiano são intimamente ligados à música. Sua estreia nas telas mundiais, em 1996, foi com a recriação da história shakespereana de Romeu e Julieta para o fim do século 20. Cinco anos depois, recriou o mundo de amor, boemia, sexo e drogas do salão de festas/bordel Moulin Rouge na Paris da virada do século 19 para o 20. Na releitura do clássico romance literário O Grande Gatsby, de 2013, mergulhou Leonardo DiCaprio na vida hedonista dos anos 1920. Para a Netflix, assinou a série The Get Down, com onze episódios com uma história de ficção passada no Bronx nova-iorquino com elementos históricos e alguns fatos reais ligados aos primórdios do hip hop. Por falar em rap, o ritmo-e-poesia – em peso igualmente dividido com o soul, a disco music, o rock e a música pop em geral – é algo valioso para as trilhas sonoras destas produções. Luhrmann também capricha demais nos cenários e figurinos, sempre exagerando em cores, brilhos, plumas, paetês, maquiagens e purpurinas. Sua montagem é ligeira e cheia de referências pipocando de tudo quanto é lado da tela, que fazem as histórias se parecerem com extensos videoclipes. Portanto, nada mais natural do que agora apostar em um nome de suma importância na música de todos os tempos: Elvis Presley. E com duração de 2h39min que passa voando!

Tom Parker

O filme se chama Elvis e se passa durante quase todo o tempo de carreira profissional do cantor. Entretanto, Luhrmann acerta em cheio ao mudar o ponto focal da narrativa contada nas telas. Presley vira o protagonista das lembranças daquele que foi seu grande empresário e criador artístico, Coronel Tom Parker. Vivido por Tom Hanks (foto abaixo), Parker mostra neste filme como usou suas habilidades de ilusionista – profissão que exercera antes de mergulhar na persona de poderoso chefão do entretenimento – para cravar seu pupilo na história da música do Século 20 e no coração de milhares de fãs. Hanks pode entregar uma atuação não muito com o seu brilho habitual, mas certamente seu personagem se revela uma peça fundamental para que o espectador compreenda de fato toda a mitologia que passou a cercar o artista dos anos 1950 para cá.

Sangue branco, coração negro

Elvis era um comportado menino de família de classe média baixa do interior dos Estados Unidos. Só que ele vivia na região de Memphis, cidade do estado Tennessee, onde, apesar do conservadorismo da região do Cinturão Bíblico, havia uma forte efervescência cultural dos negros. Quando criança, encantou-se não só com a sonoridade como também toda a performance do gospel. Depois, aos poucos, entrou em contato com o blues e o rhyhtm’n’blues da Beale Street, a rua boêmia que abrigava apresentações de cantores como Sister Rosetta Tharpe, Arthur “Big Boy” Cudrup, BB King e Little Richard. Aos poucos, foi pegando do repertório destes ídolos uma canção aqui e outra ali, modificava os arranjos acrescentando toques de country’n’western, apresentava-se sacolejando o quadril e “recebendo todos os santos possíveis” e montou um poderoso repertório inicial com mísseis como “Trouble”, “Hound Dog” e “Tutti-Frutti”. 

Galã em duas frentes

Quando James Dean bateu seu carro e morreu aos 24 anos de idade, no dia 30 setembro de 1955, Hollywood perdeu o ator em quem apostava todas as suas fichas para ser o maior galã pronto para ser consumido pela juventude daquela década. A lacuna entretanto, não demorou muito a ser preenchida. Em janeiro de 1956, já sob o comando de Parker e com seu passe comprado pela gigante RCA do pequeno selo local Sun Records, Elvis, com seus 21 anos recém-completados, lançava seu álbum de estreia e mal poderia prever o futuro estrondoso que logo viria a atropelar sua vida. Charmoso, estiloso (com seu topete e até mesmo um impecável terno cor-de-rosa), bonito e, o principal, com um gogó invejável, capaz de confundir muita gente que, sem conhecer sua imagem, achava se tratar de um cantor negro. O terreno não tardou a ser preparado para que o grande amante do cinema também perseguisse o reconhecimento na carreira de ator. Em virtude da voracidade financeira do Coronel, houve uma overdose de Elvis cantando e atuando em longas-metragens – muito por causa de um prévio trabalho de antecipação para ocupar o vazio provocado pelo seu afastamento dos holofotes nos dois anos em que serviu o exército americano em uma base alemã. Tudo um amontoado de história descartável mas feito sob medida para manter o mito em voga e colocar a caixa registradora tocando sinos com a entrada de muitos dólares em caixa. No filme de Luhrmann, a velocidade com que se passa a fase hollywoodiana de Elvis dá um belo exemplo de quanto tudo isso no fundo foi esquecível para sua carreira na música.

Dores de amores

Interpretado pelo iniciante Austin Butler, o Elvis Presley retratado por Baz Luhrmann é um sofrido ser que sofre de amor o tempo todo. Amor pela música, pelo extenso fã-clube, pela mãe Gladys (foto abaixo), pela namorada/esposa Priscilla, pelos primos e amigos inseparáveis da Máfia de Memphis e até mesmo por aquele que viria a tornar o maior algoz de sua vida pessoal, seu empresário. Sempre aparece em cena sofrendo, perseguindo alguma satisfação por completar um eterno vazio interior. Por isso mesmo acaba se jogando de cabeça em tudo e talvez receba como consequência uma frustração nunca devidamente trocada por recompensas e prazeres. Esta é uma visão humanizada do ídolo fornecida pelo roteiro escrito pelo diretor em parceria com outros três nomes, o que acentua a carga dramática na história contada e com certeza garante uma proximidade emocional com muito espectador sentado na poltrona do cinema.

Narrativa pela música

Um dos pontos fortes do roteiro fica no uso da trilha sonora como ligação para as cenas seguintes, com determinados trechos de canções clássicas gravadas por Elvis e usadas na trilha de forma remixada, até mesmo com a voz (e versos inéditos) de outros artistas contemporâneos. Duas delas, depois da metade do filme, despertam bastante atenção: “Can’t Help Falling In Love” (ligada a questões pessoais) e “Suspicious Minds” (sobre as dificuldades encontradas após a retomada da carreira musical em 1968, após um badalado/polêmico especial feito para a TV). Quanto a esta última, Luhrmann martela à beça os dois versos iniciais (We’re caught in a trap/ I can’t walk out”) para reforçar a deterioração da relação com o mentor que o levou à fama e fortuna.

Trilha sonora estupenda

Filme com a assinatura de Baz Luhrmann é uma festa só na trilha sonora. Literalmente. Neste além de algumas tradicionais canções cantadas por Elvis são incluídas novidades remixadas com a participação de gente como Jack White, Tame Impala, Diplo, Doja Cat, Nardo Wick, Pnau, Swae Lee e Stuart Price mais samples de trechos gravados por Presley e alguns contemporâneos. Há também outras faixas em que o próprio Austin Butler se arrisca nos vocais sem fazer feio ao personagem que interpreta. Por sua vez, profissionais da música (Gary Clark Jr, Yola, Shonka Dukureh) também aparecem no filme na pele e no gogó de artistas como Arthur “Big Boy” Cudrup, Sister Rosetta Tharpe e Big Mama Thornton, respectivamente. De quebra, aparecem também nomes como Chris Isaak, Steve Nicks, Kacey Musgraves, Eminem, Cee-Lo Green e Måneskin.

Contundência na fase Las Vegas

A imagem de um Elvis inchado, quase sem mobilidade e sempre de indumentária de pedrarias e gosto duvidoso marcou os anos em que o cantor tinha residência em Las Vegas (foto acima). Exatamente por isso, é sempre vista como piada e aquela pálida sombra do que um dia o ídolo fora e representara para a juventude. Luhrmann escancara em seu filme os porquês dessa caricatura grotesca. (Atenção: aqui não há spoiler porque tudo isso faz parte da mais do que conhecida biografia de Presley). Imigrante ilegal, o holandês Andreas Cornelius Van Kujik criu uma naturalidade falsa de estadunidense e assumiu a identidade de Tom Parker – o que, claro, fazia com que não tivesse passaporte e não pudesse mais sair do país. Com a retomada da carreira musical e a fama levada para o resto do mundo por causa dos filmes, Elvis começou a pressionar o empresário para fazer turnês no exterior, especialmente pela Europa e inclusive arrumou um produtor para cuidar disso. Para não perder de vez sua mina de ouro (os contratos assinados com o hotel-cassino lhe garantiam o perdão das altas dívidas contraídas com o vicio na jogatina), usou seu todo o seu poder de persuasão e truques de ilusionista (que sempre tira o foco do público de onde realmente se faz as manobras na cena) para ludibriar Elvis e convencê-lo a trocar o giro por outros países por algumas cidades americanas e realizar um show no Havaí transmitido via satélite para o resto do planeta, o que permitiria – quando toda a tecnologia disponível para isso era cara e ainda pouco acessível ao ramo do entretenimento – as fãs de todo lugar ver um concerto seu. Para garantir o controle total de Presley, fez um médico colar no astro e receitar boletas contra a exaustão, ansiedade e depressão. Este é o momento de maior drama de todo o filme, aliás.