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Okupas

Série argentina com astro de La Casa de Papel em início de carreira e antevê os graves problemas de habitação reverberados no Brasil

Texto por Fábio Soares

Foto: Netflix/Divulgação

Quando fui a Buenos Aires pela segunda vez, em 2012, fiz amizade com uma trupe de argentinos originários de Tucumán (norte do país). Entre vários assuntos, a questão da moradia em terras portenhas veio à tona e os relatos de todos ali era unânime: cada vez mais estava difícil arcar com os custos de moradia na argentina com crise econômica e altíssima taxa de desemprego. Falou-se também na “explosão” dos cortiços na capital. Conversa vai, conversa vem, a recepcionista do hostel declarou: “No ano 2000, assistimos na TV daqui a um seriado que tratava deste tema de moradia. Muito bacana, por sinal”. “E qual o nome dela?”, indaguei. “Deixa eu ver. Ah, lembrei! Okupas!”, completou.

Após a explosão mundial de La Casa de Papel, em 2017, a curiosidade sobre os trabalhos paralelos do elenco foi aguçada pelos fãs. Foi assim com Elite, com Jaime Lorente (Denver) e Miguel Herrán (Rio), e Vis a Vis, com Alba Flores (Nairobi) e Najwa Nimri (Inspetora Alícia). Na esteira do sucesso dos demais, uma série considerada cult pelos argentinos no início do século foi repaginada, teve seu áudio remasterizado e compilada em onze episódios pela Netflix. Seu ator principal? Rodrigo de la Serna, o controverso Palermo de La Casa de Papel. Seu título? Okupas.

Na Buenos Aires do ano 2000, o jovem Ricardo (De la Serna), à época com 24 anos), divide residência com sua avó mas o conflito entre as personalidades de ambos o força aceitar a oferta de Clara, sua prima corretora, para ocupar um velho e deterioradíssimo imóvel no centro de BsAs, recentemente reintegrado após despejo coletivo de seus ocupantes. Há apenas uma única condição: não levar absolutamente ninguém para dividir o espaço. Contrariando a vontade de sua prima, não demora muito para que três de seus amigos próximos (Pollo, Chiqui e Walter) sejam seus roommates. Isso dá início a uma série de situações permeadas por drogas e delinquência.

Com orçamento limitadíssimo, são muitas as tomadas externas na série tendo os bairros do Microcentro, Chacarita e San Telmo como cenário. Este mesmo baixíssimo orçamento faz com que um dos principais aspectos do cinema e dramaturgia argentinos venha à tona: roteiros espetaculares. A diferenciada atuação de um jovem elenco aliada a um texto primoroso assinado por Esther Feldman e Bruno Stagnaro faz de Okupas uma série singular. Dramas pessoais, crises existenciais, pobreza extrema e ambientes insalubres trazem o espectador para um cenário de angústia, desalento mas, ao mesmo tempo, também de idealismo – tornando inevitável que a série seja comparada ao ultracultuado Trainspotting, longa-metragem de 1996.

Impossível também passar incólume pelo talento da equipe técnica da série, que, com equipamentos praticamente amadores, transforma a fotografia das cenas quase um personagem à parte.  O retrato da sujeira das ruas e de imóveis caindo aos pedaços faz com que o aspecto de urgente sobrevivência seja evidenciado e a sensação de “e eu aqui, reclamando de minha vida” apareça como um diabinho a nos julgar. Não é muito difícil compreender por que Okupas atingiu o status de cult numa Argentina às vésperas do colapso econômico de 2001, quando o país literalmente deu um calote em seus credores internacionais e mergulhou naquele que seria chamado de Corralito, provocado pelo desastroso governo de Fernando de la Rua.

Okupas acaba por cumprir com louvor seu papel de documento audiovisual de uma época que o povo argentino merece esquecer. Um tempo em que o desejo de revolucionar estava aflorado. E aquela dor, profunda e incessante, permanece.

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