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Caetano Veloso – ao vivo

Show que celebra os 50 anos do cultuado disco Transa ganha mais datas mas se confunde ao ir muito além da recriação das canções da época

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Em agosto de 2023, Caetano Veloso participou do festival Doce Maravilha, fazendo uma homenagem aos cinquenta anos de seu álbum Transa, lançado em 1972. Gravado em Londres, sob o impacto da vida no exílio e em clima de comunhão com vários outros músicos, igualmente refugiados, o disco se transformou num objeto de culto e hype com o passar do tempo.

Como vivemos uma época em que o olhar sobre o que passou é descontextualizado completa e constantemente, muita gente ignora que Transa nasceu para ser uma obra introspectiva e meditativa, cheia de saudade, tristeza e tentativa de sobrevivência/assimilação de estar inserido numa sociedade estrangeira. Para uma parcela crescente do público mais novo de Caê, o disco é uma espécie de celebração de algo que não se compreende bem. Claro, o artista não tem culpa disso, pelo contrário. Sua concepção de show comemorativo do disco passa pela preocupação constante de explicar ao público o que passava por sua mente na época, orientando o público sobre o que fez imediatamente antes e depois de Transa ser lançado.

É assim, com este clima e intenção, que o show comemorativo do cinquentenário do disco, que nasceu para existir apenas numa noite, ganhou mais quatro apresentações: duas no Rio (Arena Jockey Clube, 11 e 12 de novembro) e São Paulo (Espaço Unimed, 25 e 27 do mesmo mês). Sem dúvida, o grande barato da apresentação é que Caetano procura recriar o clima musical do álbum, evocando os arranjos originais e, a partir de um certo momento da apresentação, trazendo os músicos que tocaram com ele nas gravações. Foi aí que subiram ao palco Tutty Moreno, Áureo de Souza e Jards Macalé – este último, responsável pela direção musical do disco. É feita ainda uma menção ao baixista Moacyr Albuquerque, falecido em 2000, e depois os sujeitos atacam as faixas de Transa com vigor e boa vontade. Nesta altura, Caetano já havia cantado algumas canções introdutórias, na intenção de contextualizar o público. Depois de “You Don’t Know Me”, faixa que inicia Transa, vieram “Irene”, “Maria Bethânia”, “London London”, “The Empty Boat” e “Araçá Azul” – esta o título do álbum lançado após “Transa”, em 1973. Mas antes mesmo de Macalé e os outros músicos entrarem em cena, Caetano já tocara ótimas versões de “Triste Bahia”, “Neolithic Man” e “It’s A Long Way”, todas faixas do disco original.

A partir daí, aconteceu, a meu ver, um grave erro de roteiro. Com Macalé em cena, Caetano reprisou “You Don’t Know Me” e abriu espaço para Jards, que manda leituras inspiradíssimas de “Mal Secreto” (de Waly Salomão, lançada por ele em 1972), com direito a citação de “Corcovado” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), e “Sem Samba Não Dá”, originalmente composta pelo próprio Caetano para seu último álbum, Meu Coco (2021), mas que ganhou releitura do próprio Macalé com Criolo há alguns meses. Quando você pensa que o show tinha vindo para o presente, os músicos voltaram para Transa e mandaram “Mora Na Filosofia” e “Nine Out Of Ten”. E então tivemos outro erro de roteiro. A título de chamar ao palco Angela Ro Ro, que participou das gravações de uma faixa do álbum, “Nostalgia”, o set abriu espaço para que ela executasse duas canções gravadas na virada dos anos 1970/1980, “Escândalo” e “Amor, Meu Grande Amor”, totalmente distintas do clima proposto e causando um desvio de 180 graus na programação. Claro, Ro Ro é figuraça e sempre tem recurso para cativar a atenção do público, mas o infeliz que desejasse se ater à carreira de Caetano naquele período, contando com esclarecimentos do próprio, precisou respirar fundo. Fechando o trabalho, a tal canção – “Nostalgia” – com menos de dois minutos, ressurgiu e só. Fechando o percurso musical, um bis de “Nine Out Of Ten”.

É preciso dizer que Transa – Cinquenta Anos é um evento histórico e raro em termos de Brasil, um país tão desmemoriado e sem noção. É emocionante ver Caetano e Macalé no mesmo palco, eles mesmos, dois highlanders da canção brasileira que importa, cheios de relevância e contexto histórico. É bom que se lembre que, apenas pelas versões impactantes de “Triste Bahia” e “It’s A Long Way”, o show já se justificaria e, diante desses argumentos, qualquer exigência de detalhes fica no terreno da chatice absoluta. No fim das contas, Caetano consegue com essas poucas apresentações dar a seu álbum o lugar de destaque em sua discografia. Mas, cá entre nós, eu me emocionaria muito mais se ele se dispusesse a comemorar qualquer aniversário de Cinema Transcendental, seu brilhante – e nosso preferido – disco de 1979.

Set list: “You Don’t Know Me”, “Irene”, “Maria Bethânia”, “London, London”, “The Empty Boat”, “Araçá Azul”, “Triste Bahia”, “Neolithic Man”, “It’s a Long Way”, “You Don’t Know Me”, “Mal Secreto”, “Corcovado”, “Sem Samba Não Dá”, “Mora na Filosofia”, “Nine Out Of Ten”, “Escândalo”, “Amor Meu Grande Amor” e “Nostalgia”. Bis: “Nine Out Of Ten”.

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