Sports

Pelé – Parte 1

Do maior craque do futebol de todos os tempos a Edson: a divindade transcende o homem que se tornou o brasileiro mais conhecido do planeta

Texto por Fábio Soares

Fotos: Reprodução

Ao morrer, na tarde deste 29 de dezembro de 2022, Edson Arantes do Nascimento era a pessoa física mais conhecida do planeta Terra. Rei em outro planeta (chamado Bola), transformou o ofício de seu esporte num ato tão simples quanto tomar um copo d’água.

Na véspera de sua despedida do Santos, no dia 2 de outubro de 1974, ele era dúvida para a partida devido à sua condição física. Entretanto, declarou um pouco antes: “Jogo até de muletas!”. Na vitória santista contra a Ponte Preta por 2 a 0 não marcou mas monopolizou as atenções do mundo ao ajoelhar-se de braços abertos no círculo central, aos 22 minutos do segundo tempo.

Para além da questão futebolística, a imagem de Pelé transcendia a estética fotográfica. O Rei negro com uniforme branco e número 10 às costas transformou-se em ícone pop que encantou, inclusive, Andy Warhol, que imortalizou seu rosto numa serigrafia em 1977 – obra esta que foi arrebatada por US$ 855 mil, cerca de R$ 3,58 milhões num leilão da Christie’s, em Nova York, em novembro de 2019.

“Te conheço há um bom tempo. Sou uma pessoa muito mais curiosa do que vocês imaginam. Inclusive, canto samba. Qualquer dia vamos cantar um samba”, teria dito o artista ao Rei. Coincidência ou não, o álbum The New Brazil’ 77, de Sérgio Mendes, encontrava-se estourado nas rádios norte-americanas.

O mundo de sonhos de Pelé com contornos de parque de diversões dentro dos gramados, no entanto (e por muitas vezes), contrastou com atitudes nada elogiáveis do homem Edson Arantes do Nascimento. Como a falta de engajamento político, a constante onipresença ao lado de presidentes americanos e sobretudo o modo como deixou-se ser usado pela ditadura militar de Médici com ares de alienação. “A gente sabia de muitas coisas que aconteciam no país, mas outras não”. Houve ainda a forma inacreditável que lidou com a questão de sua filha biológica Sandra Regina (morta em 2006). Tudo isso escancarou o lado “santo com pés de barro”, o homem com muitos defeitos, a pessoa real por trás do personagem. 

Desde 1957, quando passou a defender o time dos profissionais do Santos, Pelé é um, Edson é outro. Assim como Diego era um, Maradona era outro e Ziggy Stardust era um ser distinto a David Bowie. Pelé ganhou tr6es Copas do Mundo (o único a consgeur tal feito até agora) em quatro disputadas. Ele elevou o futebol ao status de arte e, como artista, descolou-se de seu corpo físico. Um dos únicos casos da história em que a divindade superou o homem, superou a própria história e o próprio país. Um rosto que, de tão popular, em todo o planeta, teve o mesmo alcance de símbolo máximo de uma religião.

Morre o homem, fica o Deus.  E deuses não morrem. Até para ateus.

>> Leia aqui a parte 2 desta homenagem a Pelé

Music

Liniker – ao vivo

Cantora vai às lágrimas com o público curitibano cantando junto as letras do novo disco sobre amor próprio e sua história

Texto por Pilar Browne (com colaboração de Abonico Smith)

Foto: Pilar Bowne

Um espetáculo sobre entrega. Se tivesse que definir o show da Liniker na último dia 8 de junho, uma quarta-feira, no Teatro Guaíra, com uma palavra, seria essa. 

Após adiar a data curitibana prevista para maio por conta de ter sido diagnosticada com covid, ela lotou o teatro um mês depois. A espera foi mais que recompensada. Em uma apresentação intimista no quesito aconchego para com o público e ao mesmo tempo monumental em termos de presença de palco, Liniker emocionou todo mundo com músicas do seu novo álbum Índigo Borboleta Azul.

Criado em 2020 e lançado apenas em setembro do ano passado, o disco surgiu com o intuito de contar sua história e abordar o amor próprio da cantora. Tema que a levou às lágrimas emocionada, ao presenciar o Guairão inteiro cantando todas as suas letras. Letras de um álbum que expõe buracos causados pela pandemia e que ao mesmo tempo conforta, consola e preenche a artista por inteiro.

Como agradecimento ao amor e carinho entregue pelo público, ela trouxe também músicas antigas, em momentos de nostalgia. Eram canções de seu primeiro EP com a banda de apoio Os Caramelows, como “Sem Nome Mas Com Endereço”, “Calmô” e “Bem Bom”. Também apresentou “Zero”, seu primeiro trabalho, com uma nova versão – trazida como um ressignificado da antiga, mostrando como as letras e cifras podem ser interpretadas como algo vivo, que se movimenta e se transforma ao longo do tempo. Ao longo do concerto, entregou com primor os diferentes alcances e potência vocal. Apresentou “Azul da Cor do Mar”, hit de Tim Maia, fazendo o público inteiro de arrepiar com a semelhança no grave inicialmente e depois a fluidez do gogó, tornando esta uma releitura, mais uma vez, exponencial.

Por falar em fluidez, Liniker é uma voz que compõe um time da nova safra que ainda transcende toda e qualquer questão de gêneros musicais (vai com uma naturalidade incrível do samba ao funk, por exemplo), não só no discurso como também em questões de estética e sexualidade. O que vem dando um frescor ao pop de tintas verde e amarela. Algo novo e necessário nestes árduos e sombrios tempos de resistência social, política e cultural, mas que ficará para a História como um período de expurgo de uma perene alegria vindoura. Tal qual Índigo Borboleta Azul se pronuncia para os vindouros trabalhos da cantora.

Set list: “Clau”, “Antes de Tudo”, “Lili”, “Lua de Fé”, “Presente”, “Lalange”, “Psiu”, “Sem Nome Mas Com Endereço”, “Calmô”, “Bem Bom”, “Zero”, “Azul da Cor do Mar”, “Não Adianta”, “Baby 95”, “Vitoriosa”. Bis: “Brechoque” e “Diz Quanto Custa”. 

Movies

Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.