Books, Movies

Pobres Criaturas

Cineasta grego Yorgos Lanthimos retoma as provocações com uma espécie de Frankenstein feminista e Emma Stone em atuação magistral

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Se alguém ainda poderia ter dúvidas sobre esse cineasta nos últimos anos, Pobres Criaturas (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2023 – Fox/Disney) chega hoje aos cinemas brasileiros confirmando o que muita gente já tinha como certeza: Yorgos Lanthimos saiu da Grécia para chegar em Hollywood para perverter e perturbar. Depois de bem-sucedidos balões de ensaio, adorados pelos fãs de um circuito mais alternativo (Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, obras lançadas entre 2009 e 2017), ele foi alçado simultaneamente à condição de cult e pop com A Favorita, em 2018. Beliscou várias indicações durante as premiações principais da temporada e levou alguns Baftas para casa. Sua protagonista, Olivia Colman, arrebanhou não só o troféu britânico como também o Globo de Ouro e o Oscar de atriz principal.

Agora ele mete de vez o pé na porta com essa adaptação do romance de Alasdair Gray como ainda vem para bagunçar mais o coreto. A obra literária do controvertido escocês já é um primor ao recriar (ou melhor, perverter) o clássico gótico Frankenstein. Trazida para as telas, então, reforça ainda mais o caráter provocativo da trama acrescentando ritmo e imagens ainda mais perturbadores.

Um renomado cientista, cheio de si e nem aí para a ética em nome de pesquisas que podem mudar o curso da humanidade, decide reviver uma jovem grávida que acabara de se matar pulando no rio Tâmisa, em Londres. Sem perder muito tempo, ele tira o cérebro do bebê que ainda estava na barriga e o implanta na moça, a quem passa a chamar de Bella e tratar como filha. Em um corpo de adulto, ela passa a viver novamente mas tendo reações tipicamente infantis. Aos poucos ela precisa reaprender tudo: falar, comer, interagir com as outras pessoas. Tudo de acordo com o que manda a sociedade vitoriana do começo do século 20, com todos os seus absurdos patriarcais e machistas.

Como nada em Lanthimos é comum, ainda mais quando apoiada na fina ironia de Gray, o público pode esperar muitas quebras de paradigmas nesta relação entre Bella (Emma Stone) e o “pai” Godwin Baxter (Willem Dafoe). Para começar, a estética humana é justamente o oposto do que todo mundo aprende ainda criança sobre Frankenstein. A criatura representa a beldade enquanto o horror físico sobra para o criador (a quem ela chamada carinhosamente pelo apelido God – “Deus” em inglês), cujo rosto é todo marcado por grandes cicatrizes. Depois, a inteligência da jovem passa não só a se desenvolver de maneira rápida, como ainda questiona de modo pontiagudo comportamentos e dogmas sociais como também age quase instantaneamente para modificar o status quo do conformismo, da manutenção das elites e da submissão feminina.

Bella volta a se tornar “jovem”, já com desejos sexuais (mas que não cabem muito bem no papel social que todo mundo espera que ela passe a representar) e o desejo de conquistar o mundo para crescer ainda mais por dentro. Ela se casa com um nojento aristocrata (o advogado Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo) e parte em uma longa viagem de navio ao redor do Mediterrâneo. Começa por Lisboa, passa pelo norte africano e acaba em Paris, onde se livra do encosto marital para provocar uma fugaz revolução trabalhando como prostituta e mandando ver em discursos feministas e políticos.

O ritmo rápido e envolvente dado pela montagem e pelo roteiro divertem o público, que se rende ao encanto e talento de Emma Stone em sua atuação durante as várias etapas e facetas de Bella. Não à toa, a atriz é considerada a favorita para levar o Oscar em sua categoria e o filme somou ao todo 11 indicações para a estatueta mais comentada da indústria do cinema, perdendo em número apenas as 13 de Oppenheimer.

Independentemente do que o filme levar para casa ou perder para a concorrência, uma coisa é certa. Seguindo o fluxo da comédia farsesca impresso de modo mais amplo em um filme seu desde A Favorita, Lanthimos se consolida de vez como um dos nomes a serem seguidos de perto pelos próximos anos. Já com o apoio e o reconhecimento de Hollywood e com apenas 50 anos de idade, ele ainda tem muita coisa para trazer às telas. E com certeza trazendo na esteira com muitas provocações, burburinhos e aplausos.

Movies

Guardiões da Galáxia Vol. 3

Encerramento da trilogia do grupo de anti-heróis da Marvel conta a história do carismático guaxinim Rocket Raccoon

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Esta história sempre foi sua, você só não sabia disso”. O filme que encerra a trilogia da equipe mais disfuncional do MCU dá protagonismo ao carismático Rocket Raccoon e é um gigante megalômano com qualidades, defeitos e muito coração. Em suma, um filme muito humano.

Mesmo dentre os marvetes, há quem torça o nariz para os longas dos Guardiões da Galáxia. Mas a característica principal que sempre admirei nos filmes do grupo é o quão autossuficientes e independentes eles conseguem seguir do restante dos exemplares do MCU. Diferentemente dos demais, com seu caráter episódico, as obras dos Guardiões caminham mais com as próprias pernas, obviamente fazendo referências a toda estrutura Marvel nos cinemas, com citações e alusões a personagens e eventos ocorridos nos outros filmes da casa. Mas não é tão descaradamente um tie-in como seus pares, concentrando-se em contar uma história com começo, meio e fim, desenvolver seus personagens e trabalhar a dinâmica entre eles. Desse modo, esses longas têm o mérito (e em termos de MCU, é um mérito de fato!) de poderem ser curtidos independentemente de se ter visto as outras produções do estúdio ou não. O maior responsável por isso é o cineasta James Gunn, que assina a trilogia e é, seguramente, um dos poucos diretores autorais a assumir uma empreitada cinematográfica com o selo Marvel.

O desfecho da trilogia, Guardiões da Galáxia Vol. 3 (Guardians Of The Galaxy Vol. 3, EUA/Nova Zelândia/Frnça/Canadá, 2023 – Marvel/Disney) narra a história do misterioso personagem Rocket Raccoon (Bradley Cooper), que sempre carregou consigo uma revolta pela sua condição mas nunca explicitou, de fato, os motivos que o levaram a ser como é. Ele sempre optou por omitir detalhes sobre a origem de sua natureza adulterada, embora deixasse evidente o rancor consequente das modificações genéticas sofridas. Enfim, temos acesso a esse background e nos deparamos com uma história trágica que envolve experimentos científicos cruéis e desumanos com animais e, posteriormente, crianças. O responsável por isso, denominado Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuji), intenta criar uma raça superior em um mundo perfeito. Já cegado pela sua obsessão, tomado pela ganância e completamente desprovido de qualquer traço altruísta, ele sequer enxerga as falhas em seu plano que resultaram no fracasso e tende a repetir o mesmo trajeto e conclusão de modo sucessivo. Sem se aprofundar muito nas temáticas mais espinhosas, Guardiões da Galáxia Vol. 3 é uma metáfora das próprias falhas da humanidade e do mau uso da ciência e tecnologia, que ultrapassa os limites éticos e morais, e da utilização de animais como cobaias para experimentos genéticos vis em laboratórios. No entanto, essas discussões se restringem a um plano mais superficial, em ordem de privilegiar a diversão e os efeitos especiais – marca registrada de qualquer filme da Marvel.

O longa abre com a toada melancólica de “Creep”, do Radiohead, em versão acústica, que Raccoon ouve no MP3 player de Peter Quill (Chris Pratt) enquanto este se embriaga pelo sofrimento da ausência de Gamora (Zoë Saldaña). A música, acompanhada pela voz martirizada de Raccoon, reflete sua própria natureza, bem como a cena ilustra a essência dos Guardiões da Galáxia no cinema: emocional e bem-humorado. Até agora, todos os filmes da equipe se comprometeram a arrancar risadas e lágrimas dos espectadores, com igual intensidade. E não é diferente neste terceiro exemplar.

Após o ataque súbito de um inimigo desconhecido – mais tarde identificado como Adam Warlock (Will Poulter) – a Luganenhum (QG, refúgio e cenário habitual das aventuras do grupo), Rocket acaba severamente atingido e, devido a um dispositivo letal presente em sua estrutura, não há meios de socorrê-lo. Na correria para salvar sua vida, os Guardiões devem unir a banda toda novamente, inclusive a Gamora da linha temporal ramificada e alternativa que emergiu em Vingadores: Ultimato – rebelde, impulsiva, egoísta, sem um traço da estoica que fora sacrificada por Thanos em Guerra Infinita e que não apresenta um resquício de sentimento por Peter Quill, rendendo sequências verborrágicas do autodenominado Senhor das Estrelas, que não hesita em expressar toda a sua mágoa e ressentimento. Obviamente, essa Gamora não possui qualquer interesse em salvar o guaxinim. Ela entra nessa para um objetivo específico dos Saqueadores, grupo espacial de criminosos chefiado por Stakar Ogord (Sylvester Stallone), ao qual se uniu após a morte de seu pai, Thanos (Josh Brolin).

Juntos novamente, os Guardiões precisam partir para o perigoso território do “criador” de Rocket e se infiltrarem na Orgocorp, uma empresa intergaláctica de bioengenharia fundada pelo Alto Evolucionário. Enquanto permanece desacordado e com a vida por um fio, toda a trajetória do guaxinim vai passando por sua mente e tomando a tela por meio de flashbacks. Há de se destacar o quão expressivos e tridimensionais são Raccoon e seus amigos do passado, também vítimas de modificações genéticas – mais do que muitos heróis que protagonizam as produções da casa, convém dizer.

Um dos pontos fracos dos filmes da Marvel Studios está em criar sólidos vilões, sempre apresentando nêmesis descartáveis para seus heróis (exceto por Thanos, que foi bem construído). Neste Guardiões não é muito diferente, mas pelo menos a performance do ator garante um inimigo deliciosamente histriônico pelo tempo em que acompanhamos a narrativa. Mais uma vez, uma produção do MCU exagera no CGI e na megalomania (maior e mais intensa a cada novo longa lançado). É realmente tão difícil assim criar uma boa história de super-herói sóbria e sem tantos excessos? Não. O último Batman nos provou isso, mas parece que Kevin Feige e sua turma não estão muito interessados nessa conversa. Outro ponto em que o filme peca é nos excessos musicais, nas tiradas cômicas e nas criaturas estranhas.

A trilha sonora dos longas dos Guardiões continua sendo a melhor da Marvel. Contudo, neste terceiro volume nem sempre as faixas surgem organicamente; ainda que pontuais e correspondentes a cada momento, é muito tempo desperdiçado com música embalando cenas que poderiam durar metade do tempo, enquanto diversos subplots são desfavorecidos. Nem todas as piadinhas funcionam, pois algumas soam por demais forçadas e com timing errado diante da necessidade de colorir o longa de humor. Quanto às criaturinhas que invadem a tela… Bem… A estética de sci-fi B dos anos 1970 e 1980 que os Guardiões da Galáxia evocam é sempre deliciosa de se apreciar e mostra que não há muito compromisso de se levar a sério demais, existindo com o propósito pleno de diversão. Nisso, este filme, bem como os demais, é honesto em suas intenções e carregado de despretensão. Mas o terceiro volume, em particular, exagera na concepção visual. De qualquer forma, tem um fundamento, afinal é de forma a alicerçar toda a estética de espaço exterior já introduzida nos episódios anteriores. E, como dito anteriormente, não é para se levar a sério.

Ainda no que se refere ao visual, a cinematografia por vezes vacila ao não valorizar a batalha das cenas com movimentos muito rápidos de câmera, embora no que concerne aos planos estáticos haja muito primor na composição dos frames, especialmente no que diz respeito ao jogo de luz e sombras (em perfeita alusão aos quadrinhos). Também há falhas visíveis e gritantes na montagem, com cortes muito secos e abruptos, que deixam os espectadores desnorteados em vários momentos. Mas o maior pecado do longa é o fato de transformarem Adam Warlock em um bobalhão… O personagem que, nas HQs, já conseguiu derrotar o poderoso Thanos, dá as caras pela primeira vez no MCU e se converte em uma enorme decepção, surgindo não apenas deslocado na narrativa, como estupidamente infantilizado.

Os méritos, ainda bem, se apresentam em muito maior número: além de focar sua narrativa no cativante Rocket Raccoon, preocupar-se em contar uma história com início, meio e fim, e proporcionar uma excelente, ainda que curta, batalha em plano-sequência (uma das mais divertidas e memoráveis do filme), Gunn se arrisca ao investir em mais violência e cenas de horror que tornam louvável o malabarismo do diretor em manter o longa no PG-13.

Guardiões da Galáxia Vol. 3 não é tão emocionante quanto Vingadores: Ultimato, como alguns exagerados afirmaram por aí. É um ótimo filme, superior a Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, e que deve agradar especialmente aqueles que já curtiram os Guardiões nas obras anteriores. Destaca-se como uma das gratas surpresas de uma safra tão esquálida como foram a Fase 4 da Marvel e o início da Fase 5, com o último longa do Formiga. James Gunn é um cineasta vaidoso, excêntrico e, por vezes, caprichoso. Mas sabe como administrar bem um elenco numeroso e contar uma boa história com coração e humanidade nas telas. Sobretudo, nutre evidentes carinho e paixão pelo marginalizado grupo de anti-heróis que ficou incumbido de transportar para o cinema. E só isso já o torna uma das maiores aquisições e uma das mais sentidas perdas para o MCU, já que provavelmente, ele não retornará mais ao posto de diretor de um filme da franquia (não sei se vocês sabem, mas James virou um dos chefes da rival, DC Studios). Mas esperamos que seu exemplo seja seguido.

Music

Lulu Santos – ao vivo

Show realizado no dia do aniversário de 70 anos do artista mostra erros e acertos e dá início à nova turnê Barítono

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo showBarítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.

Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável?  Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.

Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.

De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.

No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).

Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.

Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”,  “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”,  “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”,  “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.

Movies

Coração de Neon

Filme independente acerta ao fugir da Curitiba para turistas e levar às grandes telas a vida e as ruas periféricas do Boqueirão

Texto por Abonico Smith

Foto: IHC/Divulgação

Estreia nesta quinta-feira nos cinemas de Curitiba e outras capitais brasileiras mais uma produção feita por profissionais da área que são e vivem na capital paranaense. Coração de Neon (Brasil, 2023 – International House of Cinema), entretanto, corre o risco de ser o mais curitibano de todos os filmes que, recentemente, estão colocando a cidade no mapa nacional.

Misturando elementos de drama, comédia e ação, o filme foi rodado em 2019. Correu alguns festivais, ganhando inclusive prêmios em alguns destinados a produções iniciantes, e ganhou diversas matérias em televisões, sites e rádios locais a respeito do fato. A expectativa em torno de sua estreia chega ao fim no dia de hoje, quando muita gente da cidade – especialmente quem mora ou já morou no Boqueirão – pode se ver, enfim, representado na grande telas das salas de projeção.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não perder a oportunidade de assistir à obra. Que não fala só de e para quem está na capital paranaense. Consegue transpassar a localização geográfica e contar uma história universal, mas sem abrir mão de pinceladas bem curitibanas. O que ainda é raro de se ver no cinema independente nacional.

Novo polo de cinema

Curitiba , claro ainda está distante do volume de produções de outras cidades brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, como Porto Alegre, Recife ou Brasília, claro. Mas já se começa a perceber uma movimentação mais frequente de produções feitas para cinema, streaming e internet por aqui. Realizadores como Aly Muritiba, Paulo Biscaia Filho, Gil Baroni, Ana Johann, Heloisa Passos, Willy e Werner Schumann volta e meia aparecem com alguma (boa) novidade. Muritiba, inclusive, chegou a quase disputar o Oscar por duas vezes. Agora é a vez do trabalho de estreia em longa-metragem de Lucas Estevan Soares chegar às salas de projeção. Para uma grande cidade que possui boas opçòes de graduação e pós em cinema, é fundamental que se crie um mercado constante de trabalho para profissionais da área

Faz-tudo

Lucas Estevan Soares é quase onipresente na ficha técnica de Coração de Neón. Ele não é apenas o diretor do filme. Assina também produção executiva, roteiro, montagem e trilha sonora, cantando e compondo várias das músicas feitas para esta produção. Não bastasse se virar feito o Multi-Homem dos Impossíveis do desenho animado de Hanna-Barbera, ele ainda é o protagonista da história. Rapaz de versatilidade e talentos distintos.

Cinema de guerrilha

Não foi só Lucas a função de coringa neste filme. Por trás das câmeras, houve um trabalho hercúleo de apenas doze pessoas envolvidas no set de filmagem, o que exigiu acúmulo de funções técnicas. Isso fez com que Lucas cunhasse para a obra o status de “cinema de guerrilha”. Orçamento baixo (R$ 1,6 milhão, segundo o autor), bem verdade, mas diante das condições econômicas do país nos últimos quatro anos (leia-se o período em que houve desgoverno em Brasília e um intencional corte de apoio às artes) foi feito o possível para conseguir a verba necessária para a produção e a pós-produção. Sem falar no fato de que nenhuma grana de captação de qualquer lei de incentivo foi usada aqui. Mas o que poderia se tornar um grande empecilho, na verdade, tornou-se trunfo para Coração de Neonbrilhar na tela imbuído num total espírito punk. Do it yourself no talo, concebido com o que se tinha na mão, muitas vezes recorrendo ao uso da criatividade para driblar a adversidade.

Muito além do olhar do turista

Qual é a imagem que a capital paranaense transmite a quem não vive nela? Curitiba é encarada além de suas fronteiras como uma cidade exemplar, que contrasta com muitas outras regiões e localidades do país. Certo? Não. Jardim Botânico, Ópera de Arame e outros pontos turísticos podem ser muito belos aos olhos de quem vem de fora e anda pelo ônibus verde double decker, mas a cidade não é só isso. Vai bem além e, por isso, mostra-se uma decisão acertadíssima de Soares mostrar o que está na periferia. Para começar, a história se passa toda no bairro do Boqueirão, onde tudo também foi filmado e de onde vieram as origens familiares de Lucas Estevan Soares – muito do que se vê vem de parte da história da própria vida dele. Neste long estão as casas simples de famílias de classe média da região, a torcida organizada e para lá de fanática pelo futebol amador, as furiosas brigas desses torcedores em estações-tubo e terminais de ônibus, as mensagens de amor transmitidas por chamativos carros coloridos, o garoto sonhador que gosta de rock e tem cabelos compridos, o pai empreendedor, a guria casada que leva uma pacata vida de dona de casa, o vendedor de algodão doce que caminha tranquilamente pela rua do bairro e ainda o carro dos sonhos (de comer, claro).

Trilha sonora

Se o filme fala sobre o Boqueirão, claro que não poderia faltar rap nele. E dos bons. O canto falado dos MCs não estampa somente a frente de algumas das camisetas mais bacanas do figurino utilizado por Dinho, o coadjuvante que ancora as ações do protagonista Fernando. Tem também duas faixas incluídas na trilha sonora que dão peso e um charme todo especial a momentos-chaves da trama. Uma delas vem embalada pelas vozes dos irmãos gêmeos PA & PH. A outra é trazida pela libertação feminina cantada em versos e rimas pela brasiliense Belladona. A cantora pode não ser de Curitiba, mas sua canção “Coração de Neon” não apenas se encaixou como uma luva na narrativa como também acabou dando nome ao filme. Ela inclusive veio ao Boqueirão para rodar o videoclipe para a música sob a direção de Soares (que também participa das imagens como ator e ainda empresta o carro carinhosamente chamado de Boquelove em várias cenas). Como já disse Karol Conká – que, por sinal, também veio do Boqueirão, é do gueto ao luxo, do luxo ao gueto.

Violência contra a mulher

Arte é entretenimento mas também pode cumprir uma função bem maior quando possível. Deve servir para questionar e transformar o mundo ao redor. Coração de Neon acerta em cheio ao incluir como cerne de sua trama um dos eventos infelizmente ainda muito corriqueiros na sociedade brasileira: a violência contra a mulher. A cada dia o noticiário da vida real conta a história de muitos feminicídios. Na ficção curitibana, o companheiro ultraviolento, armado e sem o mínimo de equilíbrio emocional no trato com outras pessoas (especialmente se forem do gênero feminino) está presente levando a tensão necessária para várias sequências mostradas em tela. Lógico que a trama gira ao redor de seus atos, que ainda são engrossados por um coro de machismo e misoginia que corrobora com a triste situação. 

Elenco com caras novas

Este não é apenas o filme de estreia de Lucas Estevan Soares. Quase todo o elenco também faz sua primeira participação cinematográfica. São atores vindos do palco curitibano, que sempre foi muito feliz em revelar grandes nomes para a dramaturgia nacional. Se na última década a cidade exportou para as produções de TV, cinema e teatro do eixo Rio-São Paulo, a renovação de bons nomes vem sendo feita para que uma nova geração de qualidade não deixe passar em branco a condição de celeiro que a capital paranaense sempre teve. Tanto que todo ano um grande festival movimenta intensamente os palcos daqui por duas semanas cheias. No caso de Coração de Neon, deve-se prestar atenção aos nomes de Ana de Ferro (que interpreta Andressa, a jovem agredida pelo companheiro com quem divide a casa), Wenry Bueno (o guarda noturno que rivaliza com o trio de personagens centrais da história) e Wawa Black (Dinho, o amigo de fé e irmão camarada de Fernando). Mesmo atuando em poucas cenas, Paulo Matos (Lau, o pai de Fernando e criador do carro que leva as mensagens de amor pelas ruas do Boqueirão) também se destaca.

Iconografia curitibana

Quando se fala em Curitiba é impossível não pensar no Oil Man visto só de sunga pelas ruas mesmo no frio extremo do inverno. Ou no super-herói Gralha. Ou então na capivara, bicho comum nas redondezas do Parque Barigui que se tornou o animal-símbolo da cidade. Agora esta galeria iconográfica ganhou mais um integrante: o antigo corcel azul customizado por Lau e Fernando, carinhosamente chamado por este último como Boquelove. Tanto que Lucas agora leva o automóvel para onde pode, sempre no intuito de chamar a atenção para o filme em eventos pela cidade.