Cinebiografia italiana faz um retrato nada romantizado da maior das musas punk em seus dois últimos anos de vida
Texto por Igor Filus (Charme Chulo)
Foto de Supo Mungam/Divulgação
Senti antes de tudo um grande frisson ao saber de Nico, 1988 (Itália/Bélgica, 2017 – Supo Mungam). Um título como este. Roteiro e direção de uma mulher (ponto de vista feminino) italiana (Susanna Nicchiarelli). Uma biografia musical. O propósito de retratar a tão cultuada Nico, em seus dois últimos anos de vida – e não em seu auge, no Velvet Underground, com Andy Warhol, Lou Reed e companhia. Eu já estava arrebatado logo de cara.
Seres humanos assim possuem, em seus anos de vida menos conhecidos, as histórias mais interessantes, sempre. Algo que nos aproxima. Dessa forma, a película acerta em cheio em seu retrato nada romantizado da nossa “heroína”. Uma deusa que parece mais uma tia sua qualquer, à beira dos 50 anos, se picando com seringas na perna e fazendo turnês baratas em um carro com cinco pessoas, como o Charme Chulo ou qualquer outra banda faz (aliás, familiaridades de cenários, experiências e meio roqueiro sempre assustadoras a este que vos escreve!).
Não é fácil entender o que pode se tornar uma criança sensível, que é a própria personificação da derrota de uma Alemanha nazista, sentindo toda a tragédia que soluções extremistas de um governo de direita podem causar em uma pessoa, quando descobrimos que Nico (batizada Christa Päffgen) buscava aquele som dos escombros de Berlim que sentira na infância, com um imenso gravador que andava consigo para cima e para baixo. Trata-se de algo muito, muito além da música.
A sala vazia da deliciosa poltrona reclinável do cinema onde assisto ao filme é o reflexo direto do próprio desprezo da nossa estrela pela palavra “comercial”. Desprezo que sempre sustentou (“I wanna be me”), como bem ela expõe para entrevistadores de rádios despreparados, que mal a conheciam na época. Durante a biografia, o mau humor, o niilismo e o cheiro de cigarro exalam de Nico, que é capaz, seja como for, de fazer vários à sua volta se apaixonarem involuntariamente ou lhe concederem todas as permissões e perdões que um mito vivo mereceria.
É verdade também que quando o aviso, ao final do filme, diz que o mesmo se baseou em fatos contados por pessoas que viveram as experiências e que existem licenças poéticas na criação de alguns fatos não verídicos, ao meu ver, tira um pouquinho seu mérito realista. Porém não a emoção e a beleza de ser este, antes de qualquer coisa, um bom filme de uma fase específica de um artista específico. Então é bom que se diga mais uma vez.
Nico, a passageira, a caminho das luzes essa noite, dentro desse carro, em plenos anos 1980, mito cult do gótico, fazendo turnê no underground ao lado do filho não reconhecido pelo pai, tentando tê-lo de volta. Filho este em crise existencial de cortar os pulsos, ao som de “Big In Japan” no rádio, vendo do vidro do passageiro o Dia dos Mortos celebrado na Checoslováquia. Ela só pode ser mesmo uma superestrela e mãe de todas as musas punk. Existe romantismo maior do que este?