Music

Supla – ao vivo

Papito mostra em Curitiba a nova banda Punks de Boutique, o novo disco e a autenticidade que sempre norteou sua carreira musical

Texto, entrevista e foto por Abonico Smith 

Espelho, espelho meu: existe alguém mais punk rock do que eu? Esta indagação, baseada no clássico conto de fadas/desenho animado da Branca de Neve que nunca vai sair do inconsciente coletivo de qualquer ser humano que já teve infância, pode até provocar calorosos debates quanto à condição do que se entende exatamente por “ser punk rock”. De uma coisa, entretanto, ninguém discorda. Se a pergunta – que está na introdução da canção “Suplaego” – fosse a respeito de autenticidade não haveria a menor dúvida de que, no universo do rock cantado na língua portuguesa, pouquíssimas pessoas teriam credenciais para concorrer com Eduardo Smith de Vasconcellos Suplicy.

Supla tem 57 anos de idade e está na atividade musical desde a adolescência. Lançou seu primeiro disco aos 19, em 1985, quando era vocalista do quinteto pós-punk paulistano Tokyo. De lá para cá, nunca mais parou. Já contabiliza dezoito álbuns. O mais recente, chamado Transa Amarrada, acabou de ser disponibilizado nas plataformas digitais de streaming e em versão física. E neste tempo todo, nunca fez concessões, seja assinando trabalho solo ou estando em algum projeto com outras pessoas envolvidas. Sempre foi ele próprio dando vazão aos seus próprios gostos e gêneros que fizeram parte de sua formação musical. Muito punk rock e hardcore, claro, mas também um pouco de heavy metal/hard rock, pub rock protopunk, bossa nova. Nos versos, assuntos referentes ao passado e seu espectro atual e toda a realidade ao redor. Se tem uma coisa da qual ninguém pode acusá-lo é de forjar qualquer simulação. Supla nunca adotou qualquer postura ou discurso que não fosse algo inerente a ele próprio.

E foi este mesmo Supla o grande nome do festival realizado pelo Hard Rock Café Curitiba no último 15 de julho para celebrar, 48 horas depois, o Dia Mundial do Rock (que, na opinião deste escriba, é algo bobo e de bem pouca importância porque todo dia é dia de rock, isso não é nada mundial e sim uma pataquada criada por uma rádio de São Paulo para bombar um evento dela e o rock nunca possuiu qualquer data que merecesse ser ressaltada como um marco do gênero, quanto mais uma mera realização do Live Aid em 1985). Com um line up de três palcos e quase duas dezenas de bandas (a maioria com repertório especializado em covers), estava bem fácil para o Papito de sobressair como a principal atração do sábado. Com o show marcado para a tenda montada na área externa do local e horário superconvidativo para qualquer ser humano, não tinha como não ir vê-lo mostrar ao público curitibano a fase atual, acompanhado por sua nova banda, o trio apoio Punks de Boutique.

Pontualmente às quatro horas da tarde,passou pela turma do gargarejo e logo subiu acompanhado pelo seu novo trio no tablado de baixa estatura, ali bem na cara de muitos fãs. Cabelos descoloridos espetados, calça e jaqueta de couro, óculos escuros, botas, uma camiseta do New York Dolls cheia de furos customizados, simpatia ao extremo até com quem tentava ver o show da rua, através de uma fresta na lateral do palco. A performance de Supla no palco nunca deixou de ser algo dele mesmo. Vai para lá e para cá, se joga no chão, faz gestos, aponta para cima e para a frente, comunica-se com o público que está espalhado por todos os lugares, ensaia coreografias inspiradas pelo boxe que um dia já praticou, tece comentários “bem lokos” sobre os videoclipes mais recentes (dirigidos por ele mesmo). Brilha ao centro de três músicos de extrema competência seguram a onda instrumental. O baterista Ale Iafelice já tocou uma das mais conhecidas e cultuadas bandas da geração que ficou conhecida como o emo brasileiro, o Rancore. Trazidos de Porto Alegre, da banda Doris Encrenqueira, os irmãos Edu Hollywood e Henrique Cabreira seguram nos instrumentos de cordas toda fúria e beleza em fraseados, power chords e floreios necessários – tudo isso sem abrir mão da pose e do visual andrógino que caracterizou os anos de glória do punk no underground do eixo Nova York-Londres.

Tendo como gancho o lançamento de Transa Amarrada, o repertório juntou um punhado de faixas novas somou com muitos clássicos espalhados pela carreira de Supla – mais precisamente de 2000 para cá, quando sua carreira no Brasil deu uma impulsionada após passar longo tempo morando em Nova York. Bastante entrosado com os Punks de Boutique – banda formada por ele durante o auge da pandemia, há três anos, ousa inclusive a mudar para melhor determinados arranjos originais, incrementando com crueza e punch o que já era bom anteriormente. A bossa “Green Hair (Japa Girl)” ganhou mais peso e uma cara mais abolerada. “Humanos”, “Cenas de Ciúmes” e “O Tempo Não Vai Curar” também trocaram a veia dançante do pós-punkpor peso e um andamento um pouco mais acelerado. Já “São Paulo” livrou-se da batida glam e virou hardcore. “As It Was” (sim, a releitura do atualíssimohit de Harry Styles!) teve os riffs de teclado substituídos pela notas pontiagudas e mais estridentes da guitarra.“Imagine”, então, encerrou o show de modo bem diferente. A la “My Way”, a balada existencialista criada por John Lennon ao piano encerrou a apresentação para cima e de um modo para lá de rock’n’roll.

Oset montado para Curitiba se dividiu basicamente em três partes temáticas. No início vieram canções de versos sobre o ‘eu, que fazem referência ao lifestyle e a personagens personificados pelo cantor e compositor (“Supla Zombie”, “O Charada Brasileiro”, “Suplaego”, “As It Was”). Depois vieram letras a respeito do “eu com os outros”; isto é  relacionamentos sociais (“Ratazana de iPhone”), amorosos (“Cenas de Ciúmes”, “O Tempo Não Vai Curar”) ou de muita, muita lascívia (“Transa Amarrada”, “Dancing With Myself”, “Porque Só Quero Comer Você”, “Babydoll). No fim, um demolidor bloco com dois hits da era Tokyo (“Humanos” e “Garota de Berlim”, ambos devidamente regravados quando voltou de NY e passou a desenvolver uma continuidade de trabalhos seguindo a linha estética de som e imagem que se mantém até hoje) e um atual (“Não Sou Poeta (É Você que Eu Queria)”, que toca em alta rotação na playlist diárioda rádio parceira do evento no Hard Rock Café). Costurando esses três blocos, covers que serviram de homenagem a Styles, Lennon, Ramones, Billy Idol e a banda garageira sixtie americana Trashmen, artistas distintos entre si mas que, de alguma maneira, conectam-se no gosto e na história de vida do Papito.

Do começo ao fim, naquele palco externo estava um artista autêntico, espontâneo, que não tem a menor vergonha de se mostrarpor inteiro por meio de suas músicas e imagem. Pode encontrar as adversidades mercadológicas que existirem, mas ele segue em frente. Pode sofrer as gozações por causa de suas origens familiares que forem, mas ele dá de ombros. Vai lá, confronta, enfrenta, aposta e se banca sem fazer concessões e ainda faz do humor uma grande arma. Por isso é único. Eduardo virou monônimo. É Supla!

Set list: “Supla Zombie”, “O Charada Brasileiro”, “As It Was”, “Suplaego”, “As Verdades Vão Dizer”, “Green Hair (Japa Girl)”, “Vi o Vil”, “Beat On The Brat”, “Ratazana de iPhone”, “Cenas de Ciúmes”, “O Tempo Não Vai Curar”, “Transa Amarrada”, “Dancing With Myself”, “Porque Só Quero Comer Você”, “Babydoll/Surfin’ Bird”, “São Paulo”, “Humanos”, “Garota de Berlim”, “Não Sou Poeta (É Você Que Eu Queria)” e “Imagine”.

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Pingue-pongue

Você batizou sua nova banda de Supla e os Punks de Boutique, em referência a algo pelo qual sempre chamaram e zombaram de você. O interessante é que usou de muita ironia, justamente pegando o apelido pejorativo e valorizando ele. Tal como torcidas de times de futebol como Palmeiras e Flamengo, que hoje se gabam dos apelidos de Porco e Urubu…

Sempre falaram que o Supla era um punk de boutique por causa do meu background, meu pai, minha mãe, o sobrenome Matarazzo, aquela coisa de Smith de Vasconcellos ser uma família tradicional paulistana… Eu sempre me vi no estilo e para você se vestir de um jeito legal você precisa ter estilo. Não é qualquer um que sabe se vestir num estilo old school e que vai estar de um jeito legal. Então o pessoal falava: “é um punk de boutique”. Aí a namorada de um dos meninos da banda sugeriu dar esse nome para a banda. E é importante você saber levar uma piada no showbiz. Se você se levar muito a sério, o pessoal fala: take it easy, man!”.

Você acaba de lançar um novo álbum. Nestes tempos atuais de consumo de música e comunicação ainda faz sentido apostar neste formato mercadológico?

Faz sim, porque você registra aquele momento daquela época. Estamos lançando um novo álbum chamado Supla e os Punks de Boutique, com 13 músicas. Essas 13 músicas foram feitas neste período. Então a gente registrou isso, deste momento. Foi o melhor que a gente conseguiu fazer nesta época. Então elas estão registradas. Músicas como “Supla Zombie”; como “Transa Amarrada”, que acabou de ganhar lançar um clipe “bem loko”; como “Não Sou Poeta”, que toca muito aqui na rádio Mundo Livre e sou muito grato a eles também pela parceira já de muitos anos. E o meu sucesso com a molecada se dá por estar sempre me renovando, sempre trazendo músicas novas. Eu me lembro de ter tocado com o Brothers Of Brazil, que já era uma novidade total, uma mistura de punk com bossa nova e que saí tocando pelo mundo. Na sequência lancei o álbum chamado Diga o que Você Pensa, que tinha o clássico “O Parça da Erva”. Daí vejo pelo Spotify como meus seguidores cresceram por estas músicas que têm assuntos que têm algo a dizer, que têm essa visão. Porque se você não tem nada a dizer, você só é um punk de boutique mesmo, tá ligado? So what, you know? But you have got something to say. Você tem de ter algo a dizer, ter essa visão. Qual é sua? Agora tem “Ratazana de iPhone” também, olha o que ela está segurando… [faz um gesto rápido e brusco e retira o iPhone da assessora de imprensa que está à frente, registrando em vídeo a entrevista]. Isso é uma questão social que está acontecendo em São Paulo. Então eu não só fiz a música como fui à Fundação Casa, que é antiga Febem, para ver o que realmente está acontecendo. E 90% eu já sabia, porque eu fiz um clipe de “Humanos” na prisão e 90% de quem estava lá eram pardos e negros. Então eu tô ligado. Por que isso? Porque quando foi assinada a abolição da nossa escravidão os negros não foram inseridos em nossa sociedade de verdade. Ficaram de lado, por que têm as periferias e tal. Então eu fui lá e conversei com esses meninos. Não estou passando pano para bandido, não, e que fique bem clara essa porra! Mas eu falei pra eles… “Valeu a pena roubar celular? Você está com 15 e agora vai ficar dois anos aqui e  vai perder os melhores momentos a sua vida. Eu sei, você pode trabalhar no Starbucks e ganhar mil e quinhentos reais, mil e duzentos ou sei lá quanto”. Como Nina Simone disse, é fundamental o trabalho do artista ser isso, do social também. Então é isso o que estou falando. E fazendo. E, lógico, se estou fazendo é porque eu amo o que eu faço. Então é isso!

Você vem lançando com frequência muitos videoclipes. Só deste novo disco, várias faixas já têm o seu. Por que apostar também neste outro formato em um mundo pós-MTV?

Pô, eu não tenho mais aquela cara de babyface, tá ligado? Tenho papo, rugas, o caralho… as entradas, os cabelos caindo… mas foda-se! Eu gosto da coisa da imagem. Sempre curti. Quando fui ao cinema para ver o filme Help!, dos Beatles, porra, eu fiquei da primeira sessão, que era umas onze e meia, até a última porque não tinha internet e nunca iria passar isso na TV. E eu dirijo os clipes também, então essa coisa da imagem eu gosto do trabalho como um todo. Como disse Bernie Rhodes, empresário do Clash e um dos inventores do punk: se você tem a imagem, tem a visão e tem o papo, it’s like magic! Se você só tem a música, it’s ok! You know, it’s great! Então beleza, bonito! Mas se você tem a música e o visual, it’s like magic! Tipo os Beatles fizeram, tipo o Elvis ou Joan Jett… Rita Lee, que era uma mistura de Carmen Miranda com Mick Jagger e David Bowie fora as mil outras coisas…

O que diria o Supla de hoje,de 57 anos de idade, para o Supla adolescente do Tokyo, que não tinha nem 20?

Ainda bem que eu fiz tudo. [Começa a cantar um trecho da letra de “My Way” mas se embola e troca algumas palavras]Regrets I had a few/ But then again too few to mention/ I did what I had to do/ I saw it through without exemption/ I planned each charted course/ Each careful step around, around the highway/ And more”… I forgot the lyrics… “I did it my way”! Fuck you, c’mon!

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NX Zero – ao vivo

Adolescentes da geração emocore brasileira cresceram, não se escondem mais e se renderam à nostalgia para celebrar a história da banda

Texto e foto por Frederico Di Lullo

Sexta-feira, dia 7 de julho, estava um pouco receoso, confesso. O último show que tinha visto do NX Zero em Florianópolis tinha sido em 2006 (??), na antiga Creperia da Lagoa junto a bandas como a gaúcha Atrack e algumas outras da cena emo local. E lá fui eu conferir a volta à ativa do quinteto, agora na Arena Opus, situada em São José (SC)

A questão é que eu não sou mais um jovem de 17 anos. Voltar a ver uma banda 17 anos depois, então, tem seu preço. Eu paguei pra ver. E, na real, boa parte dos presentes (em grande número, diga-se de passagem), estavam lá também para sentir um pouco do saudosismo da minha geração.

Com um público majoritariamente adulto, o NX Zero iniciou a apresentação da turnê Cedo ou Tarde passando das 22h. Com um som impecável, Di Ferrero (voz), Daniel Weksler (bateria), Gee Rocha (guitarra e backings), Fi Ricardo (guitarra) e Caco Grandino (baixo) mostraram que o tempo é uma construção social. Ou algo até melhor, que dá para melhorar, mesmo depois de um hiato de pouco mais de seis anos de duração.

set começou com “Só Rezo” e terminou com “Razões e Emoções. No meio, sucessos como “Pela Última Vez”, “Apenas um Olhar”, “Meu Bem”, “Além de Mim” e “Ligação” Na parte acústica, tivemos ainda Di Ferrero, a capella, tocando “Vagabundo Confesso”, do Dazaranha. Sim, praticamente um nativo, que mora na Ilha de Santa Catarina faz mais de seis anos, tendo a particularidade de ter sido uma das primeiras pessoas que teve COVID-19 na cidade. Loucura, mas nem tanto.

Em resumo, este show do NX Zero foi uma celebração da história da banda e uma prova do poder que o emocore brasileiro teve na primeira década deste novo século. Se antigamente o emo se escondia, hoje a nostalgia fala mais alto e mostra que os adolescentes de ontem são os adultos de hoje. Além disso, o visual do palco e a iluminação complementaram perfeitamente a energia do show, com jogos de luzes intensos e um cenário que transmitia a identidade do grupo. 

Ninguém sabe ao certo se este é um retorno definitivo (acredito que nem a banda sabe!), mas a turnê é uma chance dos fãs matarem a saudade. Até porque muitos, talvez, nunca tenham visto a banda tocar ao vivo, bem ali à frente. Contudo, quem tiver vontade não deve pensar duas vezes e colar nas datas restantes de Cedo ou Tarde. A diversão é garantida!

Set list: “Só Rezo”, “Daqui Pra Frente”, “Bem ou Mal”, “Pela Última Vez”, “Apenas Um Olhar”, “Onde Estiver”, “Uma Gota no Oceano”, “Espero a Minha Vez”, “Inimigo Invisível”, “Cedo ou Tarde”, “Meu Bem”, “Insubstituível”, “Incompleta”, “Vagabundo Confesso”, “Silêncio”, “Cartas Pra Você”, “Mais Além”, “Hoje o Céu Abriu”, “Vamos Seguir”, “Pedra Murano”, “Ligação” e “Nào é Normal”. Bis: “A Melhor Parte de Mim”, “Um Pouco Mais”, “Além de Mim” e “Razões e Emoções”.

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Pelebroi Não Sei?

Idolatrado quarteto de punk rock lança novo álbum depois de longo intervalo e faz show arrasador em Curitiba

Textos por Luciano Vitor

Fotos: Divulgação (estúdio) e Luciano Vitor (ao vivo)

O tempo não atinge determinados artistas ou bandas. É imutável, inclassificável e flui em um caminho próprio, longe dos segundos, minutos, horas, dias e afins pertinentes do que classificamos exatamente como tempo.

O que são 18 anos sem lançar um novo álbum (sem contar os singles lançados em 2018, “Girassois” e “Flores de Ipê”, mais “Lamento Para Mariana, de 2021)? Aos Farsantes Com Carinho, de 2005, foi o último trabalho “cheio” do grupo curitibano Pelebroi Não Sei? com petardos do calibre como “A Triste Figura”, “Alice Clair” e “Sobre o Tempo e Nunca Mais”. Estas são canções atemporais e, de certa maneira, estão em um disco que faz sentido e proporcionou um upgrade à carreira do quarteto até os dias atuais.

Desiderato, o tal novo álbum, é uma trama pessoal. Não procure aqui letras políticas. Não tente achar alguma deferência ou desabafo referente aos últimos anos do momento vivido pelo país. Todas as canções deste mais recente trabalho fazem parte de um contexto pessoal e que atravessa de maneira coerente os últimos 25 anos da banda pela perspectiva de um dos componentes do grupo. Oneide Diedrich, vocalista e letrista do quarteto, soube rasgar a alma para não apenas expor sentimentos guardados mas evitar a beligerância política que vem se arrastando há alguns anos no Brasil. A banda abraçou musicalmente esse fato e o transformou em um trabalho, redondo e certeiro. Sem firulas, sem rodeios e direto ao ponto. Como em todo trabalho com a alma punk, crua, objetiva e direto ao ponto.

E como um álbum abraça, de maneira uniforme, canções de 1999 (“Cinco Pedras”) e 2000 (“Aquele Abraço”), outras mais recentes, um músico do Terminal Guadalupe (Alan Yokohama), uma artista plástica, amores vividos, esquecidos e um dos bardos do Rio Grande do Sul chamado Frank Jorge? Sendo o Pelebroi Não Sei? tudo isso é possível e plausível. Basta ter na mente que mesmo os punks podem se organizar de tal maneira que o improvável acontece. Um álbum de punk rock falando muito de amor e conflitos conquista os ouvidos com uma pegada mais suave. Por isso, mesmo ainda estando na metade do ano, Desiderato já entra na lista dos melhores trabalhos da temporada até aqui.

O baterista da banda, Guilherme Bandeira, conseguiu imprimir a pegada de sempre nas gravações. Mesmo ele tendo um estilo mais rápido e costumeiramente mais pesado, aqui a bateria emoldura de maneira ímpar as já tratadas canções de amor. Já Joca e Paulo Slovenski fecham o quarteto com as cordas em momentos ímpares e de maneira inteligente e simples, sem também deixar a veia punk de lado.

Ouvir o disco de maneira contínua é ouvir canções sobre o mais belo dos sentimentos. Nunca imaginei um dia escrever isso: os punks também amam e ainda sabem fazer um disco tão ou mais maduro que os indies ou mesmo artistas tarimbados na arte de escrever e cantar a respeito do amor na MPB.

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Para quem está acostumado a assistir a shows que começam às 23h ou meia-noite, estar em uma apresentação de punk rock prevista para um pouco além das 21h é novidade. E se não fosse a live do Instagram da banda, publicada pela assessora de imprensa, Gisela Garcia, eu não teria sinceramente sobre o que escrever.

Chegando esbaforido ao Armazém Garagem Bar, em Curitiba, deparo-me com um local gigante, digno das grandes bandas, digno do retorno dos punks mais amados de Curitiba, o quarteto Pelebroi Não Sei?. Em um minuto estava de frente para o palco, quase colado (os óculos para a miopia levados por engano para outro estado não fizeram muita falta), tendo tempo de ver no palco, Frank Jorge (sim, o próprio ícone gaúcho!), Fabio Elias (frontman da Relespublica), Emanuel Moon (também Relespública) na bateria, Oneide, Joca e Paulo completando a formação e impondo a icônica canção “Amigo Punk” aos mais de 400 presentes. Foi simplesmente avassalador!

Com a saída de Frank, Fabio e Moon, a banda retomou seu quilométrico repertório, que resgatava “Lagrimas Alcoólicas” e manteve a plateia de maneira ensandecida! Apesar da minha chegada, próxima das dez da noite, o que vi foi um show de digno de várias questões. Primeiro: por que o Pelebroi, não conseguiu furar a bolha do independente para o mainstream?  É uma banda com mais de 25 anos de carreira, que já tocou em dezenas de lugares Brasil adentro, e o que vemos em pleno 2023 não passa um rock made in Brazil acéfalo, burro e com carinha de bom moço. Segundo: por que as letras do quarteto são mais inteligentes do que a maioria dos versos cantados em canções por artistas novos nos últimos anos? O Pelebroi tem letras contundentes, irônicas, satíricas, sem perder a essência popular. E, por último, onde mais pode se estar em um show que congrega senhoras do alto dos seus 75 anos (D. Graciosa!), crianças, pais, adolescentes e um público mais velho (que ia dos 25 aos 55) pulando enlouquecidamente ao som de 32 canções?

Tudo isso é uma apresentação ao vivo do Pelebroi Não Sei?, uma das melhores bandas de punk rock que existe no Brasil. Mas a grande mídia, aquela que ainda se arrasta no eixo Rio-São Paulo, não quer que você saiba disso. Então, procure saber!

O show daquele dia 7 do mês 7 último foi insano, profano e com uma energia juvenil de quatro senhores do alto dos seus mais de quarenta anos nas costas – algo que não se vê sempre. Presenciar Oneide, Joca, Paulo e Guilherme entregando tudo foi de alegrar o coração e deixar um sorriso no rosto.

Perto da meia noite, o show no Armazém já terminava. Restava a certeza que dias melhores virão.

Set list: “Velhos Dias”, “Because Que”, “Alice Clair”, “Teddy Holiday Club”,  “Tum Tum Pah Yeah!”, “Só Para Disfarçar”, “O Intransigente”, “A Triste Figura”, “Sem Açúcar, Sem Afeto”, “Sobre o Amor”, “Mais um Blá Blá”, “Desiderato”, “Blue”, “Mini Punk/Amigo Punk”, “Lágrimas Alcoólicas”, “Se Viver Fosse Doce”, “Onomatopeia”, “Não Dá Nada”, “O Rolê”, “Aquele Abraço”, “Odontalgia”, “5 Pedras”, “Fantasminha”, “Sádica e a Rosa”, “Tá Foda/Yaskara”, “Céu Sem Cor”, “O Funil”, “Contra Senso II”, “Contra Senso I” e “Somos Assim”.

Movies

Oppenheimer

Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa. 

Apreciador também das artes, seu  negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados  Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.

Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.

Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o  vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.

Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.

Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente. 

Movies

Barbie

Filme sobre a boneca mais famosa do mundo fala, acima de tudo, sobre os humanos de um mundo  nem tão cor-de-rosa assim

Texto por Carolina Genez

Foto: Warner/Divulgação

Nesta semana presenciamos um momento histórico para o cinema internacional com o grande evento apelidado de Barbenheimer, com os dois, mais aguardados, lançamentos de 2023. Oppenheimer, escrito e dirigido por Christopher Nolan, traz a dramática biografia do “pai da bomba atômica”, Julius Robert Oppenheimer, com as primeiras cenas em preto e branco feitas para a tela de cinemas Imax. Do outro lado do ringue, um mundo mais leve e (por que não dizer?) cor-de-rosa. Barbie tem direção de Greta Gerwig, que também assina o roteiro com o marido Noah Baumbach, e traz uma divertida aventura com tom humorístico e sarcástico girando em torno do universo da mais famosa boneca do planeta.

Barbie (Reino Unido/EUA, 2023 – Warner) tem uma sinopse simples, mas um roteiro abrangente que não se prende em somente um gênero e aborda diversos temas como o amadurecimento, o existencialismo, problemas cotidianos, o sexismo, vocações e sobretudo a experiência feminina. Na aventura das telas, a boneca passa por diversas descobertas sobre o mundo real e analisa a própria “perfeição” das Barbies dentro da Barbielândia. Com isso, há cenas que misturam magia e realidade, passando por momentos de drama, comédia e até musical, sempre muito bem conduzidas e elaboradas.

Tanto em Lady Bird ou Adoráveis Mulheres, Gerwig conseguiu trazer uma visão específica, única, mas ainda assim de fácil identificação sobre a vivência humana. Em Barbie não é nem um pouco diferente. A nova obra de Greta destaca a importância da boneca para a História, mas também foge de ser uma propaganda e criticar o consumismo e o foco que essas grandes empresas como a fabricante Mattel têm em cima do lucro. O humor, maravilhoso, chega a arrancar gargalhadas em determinadas horas.

Além disso, o filme consegue se destacar em seus momentos mais dramáticos justamente pela facilidade com que a diretora trata de temas universais, vividos por todos em determinado momento da vida, e critica pontualmente a relação entre homens e mulheres no mundo real.  Por abordar muitas questões, entretanto, algumas vezes acaba dando mais importância para alguns temas e menos para outros, o que pode ocasionar certas frustrações. 

Um dos fatores mais impressionantes de Barbie sem dúvidas é a construção de mundo e ambientação impecável do universo da boneca. O longa traz referências muito vívidas de como é brincar com uma Barbie, com a casa, o carro, os adereços, tudo funcionando como funciona na vida real – o que, claro, gera cenas de humor maravilhosas. A direção de arte, design e figurino fazem um trabalho maravilhoso referenciando diversas bonecas ao longo da história e recriando um mundo cor-de-rosa cheio de sonhos e diversão. O mundo da Barbie é construído dentro do filme com muito cuidado, se tornando até mesmo palpável para quem assiste. 

As atuações também não ficam para trás, principalmente do duo Margot Robbie e Ryan Gosling. Ambos têm timing cômico e se entregam aos papeis com muita autenticidade e carisma. Margot está perfeita no papel, encarnando na pele de uma boneca que, apesar de estereotipada, é doce, muito corajosa e disposta a servir como uma boa influência. Sua Barbie, nesta história, após uma crise existencial, precisa ir até o mundo real tentar solucionar seus problemas. Já Ryan rouba a cena em diversos momentos traz um divertido e ingênuo personagem, completamente obcecado pela protagonista. Assim, entrega algumas das mais engraçadas cenas do longa. 

Vale destacar também a presença da comediante Kate McKinnon, que interpreta a Barbie Estranha, responsável por abordar as questões mais existenciais dentro do filme.Não descreveria Barbie como revolucionário, mas o filme é uma experiência maravilhosa e extremamente nostálgica. Com facilidade transporta qualquer um para o mundo plástico cor-de-rosa da boneca mais cultuada de todos os tempos.