Movies

The Flash

Estreia solo de Barry Allen acaba ofuscada pela enxurrada de efeitos especiais e intromissão de mais heróis da DC

Texto por Abonico Smith

Fotos: Warner/Divulgação

“Eu sou o zelador da Liga da Justiça”, diz Barry Allen em determinado momento do início de The Flash (EUA, 2023 – Warner). A reclamação em forma de constatação irônica não é infundada. É bem difícil lutar por um espaço ao sol nas produções cinematográficas de uma casa de super-heróis que mantém em seu panteão de principais figuras Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Por isso não deve ser fácil mesmo encarar a resignação de ficar sempre em segundo plano quando o assunto é o holofote da DC para trabalhar seus personagens na sequência de longas-metragens que chegam anualmente às salas de projeção de todo o planeta. Nos quadrinhos era bem mais fácil ganhar projeção e assim o personagem o fez quando foi criado em 1956, durante o início da Era de Prata dos Quadrinhos. Mas quando o assunto vira um blockbuster do cinema, repleto de segredos, altos cachês, incontáveis efeitos de CGI e expectativa de grandes bilheterias, fica sempre mais difícil que a empresa volte seus olhos para nomes de seu elenco de escalões inferiores, a não ser quanto à reserva da cota de seriados de TV e streaming. Com muito dinheiro envolvido não se brinca em Hollywood.

Barry não foi o primeiro personagem a ser chamado de Flash nas páginas impressas com o selo DC Comics na capa. Mas tornou-se o mais conhecido justamente porque chegou quando se apresentava um momento em que a empresa havia decidido dar um reboot em seus heróis e recomeçá-los do zero, trazendo traços e características para o presente. Assim, editoras como a DC e a rival Marvel começaram a se tornar soberanas ao readequar algumas de suas mais conhecidas criações para a juventude daquele período pós-guerra. Foi assim que Allen conquistou popularidade e ingressou na primeira formação da também recém-criada Liga da Justiça.

Eis que é em torno da Liga da Justiça que começa a história do primeiro filme protagonizado e batizado pelo herói cujo poder é correr em uma velocidade fantástica, quase podendo parar o movimento de rotação do planeta e chegando a paralisar os acontecimentos ao redor para mover-se e fazer o que quiser neste intervalo de milionésimos de segundos. O mordomo Alfred tenta localizar os heróis para uma emergência em um hospital de Gotham City. Allen é o primeiro a ir ao local. Logo depois chegam Batman e Mulher-Maravilha e o espectador logo percebe que o tão esperado primeiro longa-metragem do Flash não será somente com o Flash, centrado tão somente no Flash. Para completar, a subtrama principal – e que dá origem à secundária, que une outros heróis e toma conta da narrativa a partir da metade do filme – envolve dois Flashes.

Como é bem comum no cinema de super-herói, aqui a audiência não consegue escapar da inevitável deslizada de quase toda produção do gênero que tenta apresentar um herói para as pessoas mais novas: o flashback contando as origens dele e como foram adquiridos tais poderes que o diferenciam do resto dos humanos. Barry, incomodado com a prisão de seu pai, que alega não ter cometido o assassinato da esposa, descobre como voltar no tempo para consertar a situação e garantir a continuidade da vida da mãe. Nisso, o Barry que veio do futuro ainda se encontra com o Barry do passado quase saindo da adolescência. Antes de se aventurar pelo continuum espaço-tempo, porém, é advertido pelo amigo Bruce Wayne sobre os perigos tenebrosos e irrecuperáveis que a tentativa pode provocar. Claro que, por ser jovem, inexperiente e desastrado, Flash vê a iniciativa dar errado e acaba ficando preso no período onde está, sem poder retornar ao seu tempo.

O maior desafio para Ezra Miller – contratado para viver o herói nos cinemas desde o longa da Liga da Justiça (2017) – é justamente provar ter sido a escolha mais correta para o diretor Andy Muschietti e os produtores executivos do filme. Badalado como uma das grandes promessas de Hollywood no início da década passada, o ator vinha de performances arrasadoras em obras cult como Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012). A entrega ao personagem, que sempre fica ali no limiar entre o histriônico e o intenso – favorece bastante Miller nos alívios cômicos da história do Flash, embora também não o faça comprometer nos momentos de maior drama. Em dose dupla, na pele dos Barries de ontem e de hoje, destaca-se na interpretação, a despeito de todas as confusões e polêmicas recentes (abusos, brigas, acusações, escândalos) na qual se envolveu e acabou manchando a reputação profissional e ganhando a pecha de enfant terrible do século 21.

Se Ezra passa ileso na primeira metade, acaba caindo na armadilha provocada pelo roteiro para o seu personagem logo depois. Ao voltar no tempo e ficar preso, Flash percebe que um perigo imenso ameaça o mundo (quer dizer, mais precisamente Nova York e as cidades de Gotham e Metropolis): a chegada do general Zod, o maior inimigo kryptoniano de Superman, que vem para dominar a Terra, para onde fora mandado Kal-El ainda bebê para escapar da destruição de seu planeta e garantir a preservação de sua raça. Zod ainda vem atrás do herói, mas ninguém sabe por onde ele anda. Para salvar Superman, os Flashes acabam convencendo o Batman daquela época a lhes ajudar e no meio do caminho ainda topam com uma outra figura de grande heroísmo no universo das recentes séries da DC, a prima de Kal-El que atende pela alcunha de SUpergirl (Sasha Calle, atriz americana de origem latino-americana que ainda vai dar muito o que falar nos próximos filmes da casa). O que esperava-se ser um filme do Flash torna-se embolado por outros heróis, sobretudo quando as cenas de ação e lutas tornam-se mais frequentes a ponto de quase dominar o arco final. Sem falar que as atuações ficam quase todas subjugadas à proliferação massiva dos efeitos de CGI, com presença ostensiva aqui.

A transição de Barry Allen de um universo para o outro vem a calhar no timing reservado à questão dos multiversos, elemento que anda se propagando feito febre em Hollywood (filmes e animações de super-herói e até no Oscar) nestas duas últimas temporadas. Isca certeira para atrair bilheteria e o interesse de cinéfilos mais ligados à cultura pop. Só que este detalhe, além de abrir espaço para a maçante torrente de CGI, ainda traz consigo um festival de easter eggs daqueles de levar a turba nerd a múltiplos orgasmos nas poltronas. Outros heróis da Liga da Justiça e até aqueles que estão batalhando contra Zod aparecem constantemente em pequenas referências na tela em todas as suas versões, do passado e do presente, do cinema e da televisão. Superman, Batman, Supergirl, Mulher-Maravilha, Aquaman… Quase todos os atores que os interpretaram – como os icônicos Christopher Reeve e Michael Keaton – também são trazidos de volta neste filme para as novas gerações de fãs.

Pena que a enxurrada de efeitos especiais que toma conta da tela sem parar mais acabe por apagar o brilho da história humana durante o restante da projeção e transforme a tão esperada estreia “solo” do Flash no cinema em uma experiência enfadonha até quase o finalzinho.

Movies

História de um Casamento

Scarlett Johansson comanda um time de grandes atuações em filme que mostra como um divórcio pode fazer mal sobretudo aos filhos

marriagestoryMB

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Netflix/Divulgação

Existe um ditado que diz mais ou menos assim: você só conhece uma pessoa de fato quando se separa dela. Ou seja, uma gatinha pode se tornar uma leoa da noite para o dia quando se trata de proteger a cria.

Enfrentar um divórcio é como entrar numa guerra. Raros são aqueles que chegam a um acordo de paz sem antes lutar contra justamente a pessoa que, um dia, entrou na sua vida para compartilhar o tempo, o espaço e a genética. Aquele que ontem era seu amigo e emprestava os ombros pra você chorar hoje dá de ombros e te faz chorar, transformando-se num rival. Durante o doloroso processo, muitas vezes é preciso cavar até o fundo do poço para, enfim, desmembrar aquele território edificado a dois com enorme dispêndio de energia, afeto, carinho, amor e, claro, dinheiro.

Casamento, enfim, é como qualquer sociedade. Pode ou não dar certo. Tentativa e erro. Para serem bem-sucedidos, os sócios devem estar muito bem alinhados. Caso contrário, o relacionamento chega ao fim, não se sustenta, desmorona, como tudo na vida que é efêmero. A única diferença é que, sem filhos, o adeus pode ser definitivo. Como é impossível dividir um filho, o desfecho pode tomar outro rumo. Nesse caso, o desgaste é maior e o poder de negociação atinge limites impensáveis, com trocas de acusações na frente do juiz, que revelam segredos e deixam feridas expostas. E todo o amor que um dia talvez tenha existido dá lugar à raiva, à amargura, como nos mostra o tocante longa História de um Casamento (Marriage Story, EUA/Reino Unido, 2019 – Netflix), do diretor e roteirista Noah Baumbach, hoje casado com a atriz, diretora e roteirista Greta Gerwig.

Separação, aliás, é um tema recorrente da filmografia de Baumbach. Em sua primeira obra, a autobiográfica A Lula e a Baleia, o diretor se inspirou na separação dos pais e conduziu a história sob o ponto de vista dele e do irmão. Já em seu mais recente e cultuado História de um Casamento, um dos nove indicados ao Oscar de melhor longa em 2020, ele se debruça em seu divórcio com a atriz Jennifer Jason Leigh, com quem tem um filho de 9 anos, praticamente a mesma idade do filho dos protagonistas vividos por Scarlett Johansson, exuberante no papel da atriz Nicole, e Adam Driver, que interpreta Charlie, um respeitado diretor de teatro.

A história do título (que lembra Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman) começa pelo fim do relacionamento entre Nicole e Charlie. Para quem não vivenciou a traumática experiência de uma separação, é bem possível que História de um Casamento seja percebido como uma obra mediana, com uma direção correta e um roteiro bem-feito. Talvez se fosse distribuído para o cinema e não exibido diretamente via streaming, a recepção fosse outra. Eu, no entanto, tive de pausá-lo algumas vezes por causa de tamanha identificação com a personagem de Scarlett, que também se inspirou na experiência pessoal para transmitir com um realismo pungente toda a angústia, frustração e tristeza do fim de um longo relacionamento.

O drama começa numa sessão de terapia de casal, uma tentativa vã de recuperar algo daquela faísca do amor primordial. Charlie escreve sobre as qualidades de Nicole e as lê em voz alta. Ela, por sua vez, não consegue fazer o mesmo. Para Nicole, não há mais salvação. A relação terminou e por motivos comuns a vários casais, como traição e desencanto pelo parceiro. Quando se casou, Nicole abriu mão de uma carreira promissora de atriz de cinema em Los Angeles para morar em Nova York, onde Charlie dirige uma companhia de teatro. Ao longo dos anos, ela passou a se sentir ofuscada pelo marido.

Com a união em colapso, Nicole aceita a proposta para estrelar o piloto de uma série de televisão e se muda para a casa da mãe em Los Angeles, levando com ela o filho Henry (Azhy Robertson). Charlie continua do outro lado do país. Perdido com toda a situação, parece não se dar conta de que Nicole não voltará mais. Os dois, então, permanecem separados física e emocionalmente e ele se desdobra para viajar até a Costa Oeste para visitar Henry.

O ressentimento, aliado ao fator filho, leva Nicole a procurar a advogada Nora, interpretada pela sensacional Laura Dern (que levou os principais prêmios de coadjuvante da temporada por este papel). Quando os advogados entram em cena, o drama toma o rumo bem ao estilo de Kramer vs Kramer, vencedor do Oscar de melhor filme em 1979, com Dustin Hoffman e Meryl Streep. O dilema que poderia se encerrar num acordo – e que seria mais benéfico para Henry – transforma-se em disputa judicial pela guarda da criança. As economias, até então reservadas para pagar a futura faculdade do filho, agora vão direto para o bolso dos advogados, que cobram honorários astronômicos, dignos de estrelas de Hollywood. Durante o litígio, a vida do casal é totalmente esmiuçada; cada detalhe, cada deslize, por mínimo que seja, pode ser usado perante o juiz, desde tomar uma mísera taça de vinho na frente do filho ou esquecer de acomodar o assento no carro.

Conforme a narrativa se desenvolve, Scarlett cresce no papel e nos envolve com sua personagem, como na cena de sua primeira reunião com Nora, quando subitamente começa a chorar ao contar a história. A advogada desce do salto e consola a atriz, num discurso que expõe toda a pressão sobre a figura materna rodeado pelo mito da irgem Maria: a sociedade tolera que o homem seja um pai ausente, mas à mãe jamais é permitido sair da linha.

Sem dúvida, a sequência mais visceral e desconcertante é a cena em que Charlie e Nicole discutem sozinhos e lavam toda a roupa suja. Não sobra nada, nem um par de meias. Nesse ponto, a direção de Baumbach insere o espectador lá dentro do apartamento, como se testemunhássemos a discussão.

Histórias de um Casamento pode não ter levado o Oscar, mas é um filme sensível e honesto, com foco no roteiro e atuação do elenco (tirando a mãe de Nicole, cujo papel é exagerado). E o belíssimo desfecho nos mostra que, para proteger a saúde mental do filho, a mágoa, a raiva e a culpa devem dar espaço à dignidade, à civilidade e ao respeito mútuo.

Movies

Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

divaldo2019MB

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.

Movies

Obsessão

Oito motivos para ir ao cinema ver a obra que marca a volta do diretor Neil Jordan ao formato de longa-metragem

gretahupertmoretzMB

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Galeria Distribuidora/Divulgação

O mês de junho, normalmente, é dominado pelos blockbuster snos cinemas. Pudera. Os grandes estúdios de Hollywood, de olho no início do período de férias escolares do Hemisfério Norte (quando a primavera passa o bastão para o verão no ciclo das quatro estações), bombardeiam o espectador com opções de histórias fáceis ou com apelo popular, que podem preencher o tempo vago de crianças, adolescentes, jovens e adultos e significar bom alcance nas bilheterias. Somente nas últimas semanas já estrearam o live action de Aladdin, Rocketman, X-Men: Fênix Negra e o novo Homens de Preto. Para o início de julho está sendo aguardado o retorno do Homem-Aranha às salas de projeção. Portanto, é justamente nesse período que ficam mais reduzidas as opções para quem gosta de um cinema mais alternativo, que ofereça algo além da possibilidade de entreter o espectador.

Meio sem chamar muita atenção, Obsessão (Greta, Irlanda/EUA, 2018 – Galeria Distribuidora) acaba de estrear no circuito comercial brasileiro. Não deve durar muito tempo em cartaz por questões de bilheteria. Então, a gente dá uma ajudinha e lista oito motivos para você ir correndo assistir ao filme se ele estiver programado em algum cinema de sua cidade.

Neil Jordan

Diretor, roteirista e produtor irlandês de prestígio nos anos 1980 e 1990, assinou clássicos como A Companhia dos Lobos, Traídos Pelo Desejo e Entrevista com o Vampiro. Sabe envolver o espectador num suspense como ninguém, criando reviravoltas que trabalham como uma montanha-russa nas emoções de quem assiste suas obras. Andava afastado dos longas-metragens nesta última década, reservando suas atividades quase somente a séries.

Nova York

A história de Obsessão se passa em Nova York. Para quem gosta da megalópole como cenário, é um prato cheio ver as cenas todas rodadas fora de estúdios, em ruas, locações e apartamentos da cidade. Aliás, isso faz relembrar a época áurea do cinema alternativo, quando uma turma de diretores criativos – como Scorsese e Coppola – souberam como ninguém se utilizar do cotidiano nova-iorquino para fazer grandes filmes nos anos 1970 e salvar a indústria cinematográfica americana.

St Vincent

Um dos turning points mais significativos do filme é regido ao som de uma grande faixa lançada pela cantora e compositora dez anos atrás. Incluída no álbum Actor, de 2009, a música “The Strangers” soa um tanto psicodélica se comparada com o repertório mais recente e, talvez, por isso mesmo, soa tão impactante junto com a cena escolhida para ilustrar no filme de Jordan. Enquanto Annie Clark entoa uma frase que fica martelando na cabeça do espectador (“pinte o buraco negro ainda mais preto”), a sequência de imagens surge distorcida na tela, fazendo todo mundo pensar se seria verdade o que está acontecendo ali ou então simples alucinação ou projeção de expectativa ou um mero sonho.

Stalker tecnológica

Filmes de stalker sempre rendem ótimos subterfúgios para que se faça a perseguição. Nos dias atuais, há um elemento bem poderoso que pode ser incluído no rol das possibilidades: o celular. E a solitária sexagenária Greta sabe usá-lo muito bem para levar terror e pânico à jovem Frances. Tira proveito da instantaneidade de mensagens e fotografias, sem falar no cruzamento de informações após ter acesso a rastros e particularidades do passado no telefone de sua vítima. Em tempos de big brotherhackers e espionagem militar internacional, isso cai como uma luva para apimentar a aflição da trama.

Isabelle Huppert

Bastante famosa na Europa, a francesa só passou a ser badalada nos EUA após concorrer ao Oscar de melhor atriz pela atuação em Elle há dois anos. Obsessão é seu primeiro filme com coprodução norte-americana após o feito. Lógico que Huppert volta a dar show de interpretação. Na pele da imigrante europeia e enfermeira aposentada Greta, ela é uma das responsáveis pela constante alteração de adrenalina de quem está vendo o longa na poltrona do cinema. A princípio, mostra ser uma amável e solitária professora de piano, que parece encontrar na sempre disposta e moralmente correta Frances a substituta ideal para sua jovem filha. Aos poucos vai se transformando na tela, fazendo a doçura virar maldade mas ainda colocando dúvidas a respeito de tudo isso na cabeça do espectador.

Chloë Grace Moretz

Ela só tem 22 anos de idade mas vem se revelando uma das mais poderosas jovens atrizes reveladas por Hollywood, por conta da extrema versatilidade e da aposta em papeis não muito comuns para uma então adolescente. Chloë tem em seu currículo participações elogiadíssimas em filmes como Suspíria: A Dança do Medo (2018), O Mau Exemplo de Cameron Post (2018), Lugares Escuros (2015), Acima das Nuvens (2014), A Invenção de Hugo Cabret (2011) e Kick-Ass: Quebrando Tudo (2010). Obsessão entra nesta lista por causa de sua crédula Frances, que cai na armadilha de Greta e, quando se dá conta, percebe que é tarde demais para escapar. Contar mais do que isso sobre a garçonete vira spoiler.

Maika Monroe

Aos 26 anos, sua atividade principal não é a de atriz, mas sim de atleta – Maika é uma competidora profissional de kiteboard. Mas, nos últimos anos, vem conciliando seu tempo com papéis coadjuvantes em filmes, especialmente de horror. Por ser fã assumida do gênero e ter como filmes de cabeceira clássicos como Halloween: A Noite do Terror (1978), O Iluminado (1980) e A Hora do Pesadelo (1984), tem propriedade e feeling suficientes para entregar atuações convincentes a ponto de, depois de trabalhar em O Hóspede e Corrente do Mal (ambos de 2014), despertar a atenção como potencial nova scream queendo cinema adolescente. Em Obsessão, mostra química na tela com Moretz como a melhor amiga Erica, com quem divide um descolado apartamento. Ambas já trabalharam juntas antes, na distopia teen A 5ª Onda (2016).

Stephen Rea

Também irlandês, Stephen Rea é parceiro constante dos filmes de Neil Jordan. Volta e meia atua em seus filmes. Em Obsessão, ele só aparece em cena na parte final, mas nem por isso sua pequena participação deixa de ser notável. Aqui ele faz o investigador Brian Cody, contratado pelo pai de Frances quando este percebe que a filha pode estar em apuros. Só que o detetive, apesar de perspicaz, acaba se atrapalhando quando justamente vai checar a possibilidade de Greta ter a ver com o sumiço da garçonete.

Music

Marina Lima e Letrux – ao vivo

Na Virada Cultural de SP, cantora resgata velhos hits e mostra uma parceria simbiótica com a nova musa indie brasileira

viradasp2019marinalima

Texto e foto por Fábio Soares

Virada Cultural paulistana, 18 de maio de 2019. Às 19h, o Palco República, dedicado à diversidade, recebe Marina Lima. A primeira parte de sua apresentação é dedicada ao seu mais recente trabalho, o fraco Novas Famílias, álbum lançado no ano passado e evidenciou o que, infelizmente, não dá para esconder: Marina se arrasta no palco. Nada a ver com sua forma física, que vai muito bem, mas sim com o principal instrumento de trabalho: suas cordas vocais, lesionadas devido a um malsucedido procedimento médico, fazem com que a performance da cantora “agonize” em cima do palco. Comovente, porém, é a postura dela diante do problema: não se vitimiza, tenta manter o bom humor e entreter a plateia.

O segundo terço, porém, é dedicado ao que o público quer ouvir: os sucessos oitentistas. Com o violão como parceiro, inicia uma pocket trip à sua época mais áurea com “Pessoa”. Mesmo 36 anos após o lançamento, o clássico composto por Dalto segue a emocionar plateias por onde passa. Ao final da execução, Marina reclama da parte técnica .”Vamo arrumar isso aqui, por favor? Não tô ouvindo nada” diz , referindo-se ao inoperante retorno. “Preciso Dizer Que Te Amo” vem a seguir e a cantora poupa a garganta ao ver o público assumir os vocais.

O último terço da apresentação vem a seguir com a participação da carioca Letrux. A nova musa indie brasileira recebe, desde o primeiro momento em que pisa no palco, gigantescos elogios de sua anfitriã. “Que Estrago” e “Puro Disfarce” evidenciam a simbiose da dupla. O discurso empoderado mais uma vez se faz presente. No clássico xingamento da plateia à figura do presidente, Letrux emenda com ironia: “Gente, o próprio nome do Bolsonaro já é um palavrão. Tomar no cu pode ser uma coisa muito boa. Ele, por si, já é sinônimo de coisa ruim”. “Mãe Gentil”, mais uma parceria da dupla, encerra a participação de Letrux com direito a touca ninja e uma jaqueta com a inscrição #LIBERDADE. Com batida eletrônica lembrando o big beat, o peso da faixa é excelente e merece audição mais apurada.

Para o fim, Marina traz mais releituras eletrônicas de antigos sucessos. “Ainda É Cedo” e “Pra Começar” dão um ar apenas protocolar para o final de um show que evidenciou dois aspectos: o repertório de Marina Lima é de uma grandeza só e sempre jogará a seu favor. Já a triste condição de seu principal instrumento coloca a cantora numa encruzilhada de até quando seguir com medianos trabalhos e praticamente se “arrastar” nos palcos até a correta (e sensata) hora de parar.