Drama fora do comum mostra como o baterista de uma banda rock tenta recriar sua vida após perder a capacidade auditiva
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Amazon Prime/Divulgação
O que fazer quando tudo que se ouve é o silêncio? Em O Som do Silêncio (Sound of Metal, EUA, 2020 – Amazon Prime) esse é o súbito destino de Ruben (Riz Ahmed), um músico e ex-adicto. Sentindo-se traído por seu corpo e incompreendido por quem ama procura ajuda de um grupo de surdos para aprender a viver sua nova vida. A direção perfeccionista de Darius Marder e a excelente atuação de Ahmed não deixam dúvidas de que esse é um dos melhores filmes da temporada.
Sound of Metal é um filme feito de sons e da ausência deles. A edição e mixagem de som são exemplares. É uma imersão em um mundo desconhecido. As mudanças de tonalidade e volume são esquisitos no começo, mas essenciais para o entendimento e o desenvolvimento da trama. Ruben é baterista de uma banda de punk metal, formada também pela sua namorada vocalista e guitarrista Lou (Olivia Cooke). A música e a sonoridade fazem parte de seu cotidiano, mas após a perda auditiva ele conta com a ajuda de novos amigos e o mentor Joe (Paul Raci) para se adaptar à nova vida.
O longa subverte a lógica ao colocar o espectador para escutar sem entender boa parte dos diálogos no primeiro ato do filme. Quando Ruben chega à sua nova casa, ainda não sabe se comunicar por meio de libras, assim como a esmagadora maioria do público. Pela primeira vez, a minoria surda é a única que sabe o que se passa na tela. Essa é uma grande sacada do diretor para mostrar a grande deficiência de comunicação que a sociedade tem com aqueles que não escutam. Libras não são ensinadas nas escolas regulares. Como, então, socializar uma pessoa que não escuta?
Riz Ahmed encarna o personagem de forma magistral. O ator (que também atua profissionalmente como rapper) consegue capturar a negação, a raiva e a aceitação da nova condição de Ruben de um jeito emocionante. Suas cenas com Joe são as melhores do filme. Nelas, além de acompanhar mais sobre a jornada do personagem principal, também é possível compreender mais a respeito da comunidade surda. “Surdez é uma cultura e não uma deficiência” afirmou Ahmed em uma entrevista promocional do longa.
O conceito de comunidade é um dos guias de Sound of Metal. Em sua nova casa, Ruben encontra conforto, amigos e experimenta um inédito senso de identidade e pertencimento. É justamente pautado nessa nova identidade que o músico deverá escolher como será seu futuro. Voltar ao passado ou seguir em frente?
Este acaba sendo um drama fora do comum. É o nascimento de um novo homem através de seus ouvidos. O som ao redor pouco importa: o xis da questão é o que Ruben sente. E, apesar das insistências de Joe em dizer que não há nada para consertar, será que ele ainda sente-se quebrado? Ou aprendeu a beleza da adversidade?
>> O Som do Silêncio concorreu no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, ator, ator coadjuvante, roteiro original, montagem e som
Millie Bobby Brown interpreta a intrépida irmã caçula de Sherlock Holmes em divertida história de empoderamento feminino na era vitoriana
Texto por Maria Cecila Zarpelon
Foto: Netflix/Divulgação
Se você estava esperando outro remake do mais famoso e ilustre detetive de todos os tempos, irá ficar desapontado. Enola Holmes (Reino Unido, 2020 – Netflix) é uma refrescante aventura – mesmo que não muito inovadora – que segue seu próprio curso independentemente da grife Sherlock Holmes.
É seguro afirmar que todos conhecem o célebre detetive bolado por Sir Arthur Conan Doyle. Quase um século e meio depois da publicação do primeiro livro sobre o personagem vitoriano, as atualizações e remakes da aparentemente imortal criação do escritor escocês continuam surgindo. Com tantas produções sobre a vida do maior inestigador da literatura (pelo menos até agora), era preciso buscar um caminho diferente para fugir da mesmice. Por sorte, é isso que Harry Bradbeer faz com seu novo filme. Baseado no primeiro livro da série Os Mistérios de Enola Holmes, da autora americana Nancy Springer, o longa de Bradbeer tinha tudo para dar errado. Afinal, seria de se esperar que uma história na qual Sherlock Holmes é um mero coadjuvante ficasse fadada ao fracasso. Contudo, Enola Holmes prova ser exatamente o contrário.
Enola (Millie Bobby Brown) cresceu em uma região interiorana da Inglaterra do final do século 19 ao lado de sua mãe. Depois que a jovem descobre, na manhã de seu 16º aniversário, que Eudoria (a sempre incrível Helena Bonham Carter) desaparecera, ela acaba sob os cuidados de seus irmãos mais velhos Mycroft (Sam Claflin) e Sherlock (Henry Cavill). Para escapar de Mycroft, que quer colocá-la em um internato, a garota se recusa a ter sua identidade definida pelos padrões da sociedade da época e vai para Londres em busca de pistas para encontrar Eudoria. Enquanto ela segue pistas deixadas pela mãe e enfrenta outros mistérios pelo seu percurso, a Inglaterra está à beira de grandes transformações sociais. O que, por sinal, não deixará todos contentes.
Em um ritmo quase que frenético, o longa constrói uma história de autodescoberta e amadurecimento, narrada pela própria protagonista, que frequentemente quebra a quarta parede para falar diretamente com o público. Millie domina o filme com carisma e presença evidentes, deixando para trás o ar sombrio da personagem Eleven, da série Stranger Things, para interpretar uma jovem brilhante, peculiar e – claro – excêntrica, como todo bom Holmes deve ser.
A trajetória de autoconhecimento de Enola apresenta discussões mais amplas sobre machismo e questões de gênero em uma época na qual as mulheres eram criadas para cuidar da casa e arranjar um marido. No estilo coming of age, o filme equilibra esses temas na medida em que constrói uma narrativa que prova ser muito mais que apenas uma história de detetive. Ao falar sobre uma jovem em busca de liberdade e de si mesma, a produção tece críticas, mesmo que modestas, a um mundo conservador e patriarcal que está determinado a permanecer o mesmo.
Embora o longa de Bradbeer não inove ao abordar o protagonismo feminino e a discussão em torno da igualdade de gênero, que estão conquistando cada vez mais espaço no cenário cinematográfico, não há um certo fascínio na maneira com que o longa retrata Sherlock. Normalmente a personificação da racionalidade e do progressismo, aqui ele nada mais é do que um homem comum cujas atitudes a irmã tenta combater.
Com a ajuda dos ótimos trabalhos de figurino e fotografia, Enola Holmes cumpre bem o papel de ser divertido e descontraído, apresentando ao público jovem uma nova heroína empoderada. Porém, o longa deixa a desejar quando a questão é a solução de mistérios durante o roteiro. Falta a nós a básica satisfação de resolver um caso que sabemos que apenas a protagonista do filme conseguiria – que diga-se de passagem, é capaz de fazer deduções muito mais ardilosas. O espectador nunca tem aquele prazer de juntar as peças e esclarecer os enigmas. No fim das contas, Enola Holmes, felizmente, não tenta ser mais uma história do detetive Sherlock. Assim como sua protagonista, o longa é inteligente o suficiente para seguir seu próprio caminho e emancipar-se de qualquer um que tente lhe dizer o que deve ser.
Charlie Kaufman usa e abusa de simbologias e flerta com o surrealismo para abordar temas tão (tristemente) presentes no cotidiano
Texto por Andrizy Bento
Foto: Netflix/Divulgação
No currículo de Charlie Kaufman constam os roteiros de Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Sinédoque, Nova York e Anomalisa também carregam sua assinatura, não apenas no texto como na direção. Os fãs de cinema indie conhecem seu estilo e os que ainda não assistiram a algum destes títulos provavelmente nem ficarão surpresos quando os créditos finais surgirem na tela após uma sessão de cinema no meio de Estou Pensando em Acabar Com Tudo (I’m Thinking Of Ending Things, EUA, 2020 – Netflix). Já os desavisados e não habituados ao trabalho dele, bem como os fãs do livro no qual o longa se baseia, correm o sério risco de se decepcionar. Ou de ficar extremamente confusos com as escolhas narrativas e estéticas (que, por vezes, soam absurdas) adotadas por Kaufman para contar a sua versão da história.
Disponível na plataforma de streaming Netflix desde o dia 4 de setembro, o filme adapta o romance homônimo do autor canadense Iain Reid. Mas como Kaufman é, sobretudo, um criador na acepção da palavra – que gosta de esbanjar originalidade tanto no que concerne a questões de roteiro quanto de visual – obviamente, ele dispensou a fidelidade ao material de origem. Portanto, não se limita – tampouco se contentaria com isso – em contar a mesma história presente nas páginas do livro. Inclusive, mudou completamente o final.
Lucy (ao menos, a princípio, é assim que ela se chama), interpretada por Jessie Buckley, decide pegar a estrada em uma curta viagem com o namorado para visitar os pais dele na fazenda em que vivem, mesmo em meio a uma tempestade de neve. O casal ainda está bem no início do relacionamento, tendo se conhecido há poucos meses. A garota percebe as inúmeras qualidades presentes em Jake (Jesse Plemons), declarando que se trata de um rapaz inteligente, simpático, sensível. Contudo, não consegue evitar pensar que há algo de errado com ele. “Estou pensando em acabar com tudo”, ela repete sistematicamente. Ela está se sentindo sufocada, mas é como se estivesse em processo de perceber isso. No carro, durante a viagem, Jake atinge um novo patamar de manterrupting ao conseguir até mesmo interromper os pensamentos da namorada. Ela gostaria de um pouco de silêncio e espaço durante a viagem, apenas para mergulhar em uma rápida reflexão e tentar colocar as coisas em ordem na sua cabeça, enquanto observa a melancólica paisagem ao redor, tão agredida pelo rigoroso inverno.
O filme acompanha toda a viagem de ida e volta de carro do casal, com uma parada na casa dos pais de Jake na fazenda, outra em uma sorveteria 24 horas e, por fim, no colégio onde ele estudou. Todos esses espaços, em sua maioria claustrofóbicos, são reveladores e corroboram a construção do personagem de Plemons, nos oferecendo mais e mais de sua personalidade confusa e sombria. Expandem tanto a percepção que a protagonista carrega quanto a que o espectador tem sobre ele.
Jake fica desconfortável ao lado da namorada na presença de seus pais (Toni Collette e David Thewlis). Em cenas histriônicas, que quase descambam para a galhofa, percebemos que os pais dele são bastante inconvenientes em diversas colocações e questionam tudo. Mas é como se Jake os culpasse totalmente por sua miséria. A sequência na fazenda já deixa explícita a assinatura de Kaufman, pois é quando os personagens começam a sumir e ressurgir na tela, ora mais velhos, ora mais jovens, como se a protagonista tivesse um vislumbre de todo o passado, presente e futuro do namorado ao lado dos pais. Quando ela, enfim, deixa a casa dos sogros, Jake atribui sua confusão ao excesso de vinho que ela bebeu durante o jantar.
Além da família, outra das instituições com a qual Jake revela uma relação conflituosa (o que é sinalizado por meio de algumas linhas de diálogo) é a escola. Outro dos espaços com os quais sua vida possui uma conexão intrínseca. É ao estacionarem no colégio, que a protagonista, já totalmente atormentada pelo que viu na fazenda, pelos diálogos sufocantes com Jake no carro e pela estranha conversa com a atendente da sorveteria – que expressou verbalmente a preocupação com sua integridade –, começa a se perguntar (ainda que não com todas as letras) se está em um relacionamento abusivo.
Ela diz que Jake nunca bateu nela e que suas interações sexuais foram boas, na maior parte das vezes. Mas está tomada por dúvidas. Afinal, em tentativas contínuas de rebaixá-la intelectualmente, ele insiste em corrigi-la ou citar livros que ele sabe que ela não leu. Durante a viagem, ela avisa repetidas vezes que precisa voltar para casa logo a fim de trabalhar em um artigo, mas ele propositalmente distorce suas palavras, perguntando se ela quer voltar para a fazenda. Por meio de pequenas mas suficientemente nocivas manipulações mentais, ele tenta convencer a garota de que o problema está somente nela.
A obra investe em alegorias para tratar de assuntos sérios e delicados como se toda a narrativa ocorresse em um plano de delírio. Intercala a verborragia dentro do carro (inclusive com um diálogo brilhante sobre o filme Uma Mulher Sob Influência, de John Cassavetes), com cenas altamente nonsense, que emulam musicais e trazem porcos em animação e jingles persuasivos de uma franquia de sorvetes. Desse modo, jamais traindo seu estilo, Kaufman explora a toxicidade das relações, a solidão, o abandono, a perda de identidade, o sexismo tão enraizado na sociedade – que trata de maneira cruel aquelas que têm sua juventude apagada pelos anos e ousam envelhecer. Compõe tanto uma narrativa aterradora com um toque lúdico, quanto uma fantasia com contornos de suspense, garantindo uma experiência inquietante ao espectador.
Se Kaufman erra a mão em algum ponto, é no fato de, desde o começo, apresentar sua história sob a ótica da personagem de Jessie Buckley – até mesmo contando com a narração desta e deixando inequívoco que se trata de uma visão feminina para os temas que planeja tratar – para, então, transferir o protagonismo da metade em diante a Jake. A namorada passa a ser uma peça ou esquecida de sua memória ou a figura idealizada que fica ao seu lado – à sombra do homem. Sabemos que, infelizmente, não deixa de ser uma realidade com a qual nos deparamos através de décadas e que vem dando passos gradativos (não por falta de empenho, mas de oportunidades e igualdade entre gêneros) em direção a mudanças. Mas, ao final, a história toda parece ter girado em torno de Jake, tendo sua narradora simplesmente como aquela que o coadjuvou.
É particularmente curioso quando alguém diz que os filmes de Kaufman são complexos, comparando-os a labirintos e alegando que o espectador possui a difícil tarefa de montar as peças de seus alucinados quebra-cabeças. Eu, pelo contrário, acho que seus filmes são perfeitamente estruturados e suas metáforas, compreensíveis. Óbvio que há uma coisa ou outra que continua parecendo sem sentido após as sessões de seus longas (mas o quanto disso é realmente simbolismo na tentativa de transmitir uma mensagem e o quanto se trata apenas de conceito, de caprichos e idiossincrasias para corroborar a assinatura do autor?). De qualquer maneira, acredito que a forma é que é insana e absurda; a mensagem, entendível e bastante lúcida.
Como o próprio Kaufman diz lá pelas tantas, por meio de uma das falas da personagem sem nome (ora Lucy, ora Louisa, ora Amy), trata-se de imprimir universalidade ao específico. Nisso, o cineasta continua sendo um especialista.
Certas vezes a gente precisa escrever notas de falecimento e umas sempre são mais duras do que outras. No caso de Gerson Côrtes, mais conhecido como o rei do soul Gerson King Combo, afirmo que é tarefa bem árdua comunicar o seu falecimento em 22 de setembro, por conta de infecção generalizada, decorrente de diabetes. Foi tudo bem rápido e eu, sinceramente, espero que ele tenha partido sem sentir dor. Vocês sabem, a gente acompanhou a internação dele no sábado anterior, dia 19, e o adiamento do show que ele faria com a banda Supergroove no mesmo dia. A ausência de notícias e o temor pelo pior se dissiparam com a informação de que ele fora pra casa na manhã de segunda, dia 21. Depois a confirmação de seu falecimento veio em seu perfil oficial no Instagram.
Gerson começou cedo. Foi dançarino na Jovem Guarda e logo viu-se que ele tinha jeito para cantar e encarnar muito da alma negra rebelde e consciente que vinha de fora do Brasil da ditadura militar. Logo ele tornou-se crooner, cantando em discos de Renato e Seus Blue Caps e Fevers, para depois fazer parte do time de cantores da Banda Veneno, do maestro Erlon Chaves. A partir disso, começou a viajar pelo país e exterior, chegando a conhecer nessas andanças James Brown e Stevie Wonder.
O cantor iniciou os anos 1970 em sintonia com os primeiros passos do Movimento Black Rio. Enquanto os DJs Ademir Lemos e Big Boy (também radialista e visionário) levavam as noites do Baile da Pesada adiante, Gerson, que voltara cheio de roupas coloridas, moderníssimas e desconhecidas por aqui, decidiu que era o momento certo de assumir o posto – vago – de James Brown brasileiro.
Nosso herói não era o único em sintonia com a música moderna americana e suas andanças pelos novíssimos bailes de subúrbio (antecessores classudos dos bailes funk e charm) o levaram a conhecer muita gente que participava daquele momento de criação, como Tim Maia, Sandra de Sá, Carlos Dafé, Dom Salvador, Cassiano, Hyldon e Oberdan Magalhães. Em pouco tempo, participaria de encarnações primitivas da Banda Black Rio e assumiria o posto de cantor da banda União Black em 1975. Já como Gerson King Combo, nome inspirado no grupo americano de jazz King Curtis Combo, ele estava pronto para fazer história com o primeiro disco da União Black, lançado em 1977. Logo ficou evidente que Gerson era maior que o grupo. Com contrato assinado com a Polydor, o homem soltou seu primeiro disco solo ainda no mesmo ano. Gerson lotava shows no subúrbio chegando num Dodge Dart e com um funcionário pago apenas para retirar e colocar sua capa nas apresentações.
Gerson King Combo, o disco, é uma obra-prima da música negra brasileira, aquela mistura perfeita de soul e funk com uma inefável malandragem de subúrbio, surgida aqui, mas com um dado interessantíssimo: a postura herdada do movimento negro americano. Na época, início dos anos 1970, havia algo interessante no ar, a ideia da existência de um “negro universal”, que estava em construção. Era uma identidade que trazia conhecimento adquirido na África, por conta dos processos recentes de independência das colônias francesas, inglesas e portuguesas no continente negro; uma “rodagem” contra o racismo obtida no sul dos Estados Unidos. Essa universalidade recente à época, era traduzida em grupos como os Panteras Negras, em gente como Martin Luther King, Malcolm X e nos artistas como James Brown, Marvin Gaye, Stevie Wonder e Smokey Robinson. Todos engajados e conscientes – em diferentes intensidades e demonstrações – do papel deste homem negro universal em construção. Essa noção estava contida no orgulho negro que se estabeleceu no Black Rio, da elegância das canções à elegância das roupas.
Canções erguidas sobre fortíssima base instrumental, que deixavam pouquíssimo a dever em relação ao melhor da música americana da época, eram a tônica do primeiro álbum de Gerson. Com discurso e indumentária cheia de mensagens assimiladas da universalidade negra, “Mandamentos Black” chegava como uma carta de intenções. Versos do calibre de “dançar como dança um black, cantar como canta um black”, logo na abertura do disco, mostravam que o homem não estava para brincadeira. Outros momentos em que há a conjunção Brasil versus mundo, em termos de cultura negra, são “Ele é o Nosso Black Brother”, “God Save The King” (em homenagem a MLK) e a sentimental “Andando nos Trilhos”, na qual a epopeia pessoal de Gerson serve como ilustração perfeita dos caminhos percorridos pelos negros, pobres e suburbanos brasileiros – e do mundo – naqueles tempos.
A união entre sonoridade e discurso dá uma qualidade inestimável ao primeiro disco de Gerson. Foi o momento em que a sintonia entre a música brasileira e a música mundial se estabeleceu contra todos os prognósticos e suposições. No ano seguinte, ele lançaria Volume 2, ainda bastante interessante, mas sucumbiria – como quase todos os artistas negros daquele tempo – diante da disco music feita no país.
A música negra não sambista ainda ficaria uma década sem manifestações de peso, mas iniciaria os anos 1990 com uma geração inteira de artistas cariocas, paulistas e de vários cantos do país, devidamente influenciados por luminares como Gerson – que gravou novo disco em 2000, outro em 2009 e vinha se apresentando com a banda Supergroove por várias cidades do país. Em julho deste ano, ele soltou “Eu Parei”, um single. Há gravados também um show e um documentário sobre a vida de Gerson, ambos esperando por chance de lançamento.
Tive chance de vê-lo ao vivo no Teatro da UFF, em Niterói, em 2015. Sempre amável, ele concordou em ser entrevistado por mim para a minha pesquisa de mestrado sobre o Black Rio, algo que aconteceu em algum ponto de setembro daquele ano, quando me recebeu em sua casa em Madureira, Zona Norte do Rio. Ali, por mais de duas horas, contou-me boa parte de sua vida, lembrando histórias e casos que aproveitei em minha dissertação, posteriormente dedicada a vários heróis da música negra mundial, ele incluído.
Sua partida é uma tristeza sem fim. Seu lugar ficará vago, talvez pra sempre. Eu te amo, brother. Vá em paz e anime o bailão lá em cima.
Documentário procura colocar os pingos nos is ao revelar a intimidade e o amadurecimento pessoal da megaestrela da música pop
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Netflix/Divulgação
Ela apareceu para os holofotes em 2006 como uma romântica cantora country. Aos poucos foi se consolidando como a mais nova princesinha da América (branca, loira, alta e de olhos azuis). Em meio a músicas de sucesso, prêmios, namoros públicos e polêmicas muito especulou-se sobre sua verdadeira personalidade. E agora, em Miss Americana (EUA, 2020 – Netflix), Taylor Swift coloca os pingos nos is.
O documentário dirigido por Lana Wilson é o mergulho mais profundo já feito na vida e na mente de uma das personalidades mais famosas no mundo. Embora em suas canções Taylor nunca tenha tido medo de expressar seus sentimentos, pouco se sabia o que acontecia quando as cortinas se fechavam. Conhecida por ser bastante cuidadosa com sua imagem, a popstar passou anos tentando controlar a própria reputação ao se encaixar nos moldes do que os outros queriam que ela fosse.
Logo no início do documentário, a artista afirma que sempre sentiu a necessidade da aprovação de terceiros e isso influenciou para tornar-se a eterna “garota boazinha”. Não reclamar, não se revoltar, ser sempre agradável e jamais falar sobre política. Influenciada pela execração sofrida pela grupo country Dixie Chicks, que viu sua carreira ruir ao posicionar-se contra a Guerra do Iraque, Swift decidiu ainda no início de sua carreira que nunca iria abordar o tema. Mal sabia ela que nesse caso ser uma “garota boazinha” também lhe renderia muito hate.
Uma das missões do filme é abordar o renascimento da popstar para, agora, uma mulher com posicionamentos políticos definidos. Se em 2016 foi criticada por não ter falado sobre as eleições, inclusive foi acusada de ser eleitora de Donald Trump, Taylor deixa claro que agora será diferente. Miss Americana mostra os bastidores da decisão da cantora de quebrar seu silêncio em relação à política. Em um debate acalorado com seu pai e sua equipe, Swift defende que desta vez precisa estar do lado certo da História.
Já repassada milhões de vezes, a briga com Kanye West também tem seu tempo de tela. É admirável vê-la falando de forma tão crua sobre um episódio que poderia ter destruído sua carreira. A mulher que antes sempre procurava evitar o assunto – ou falar apenas por partes – abre-se sobre o que sentiu e o que viveu nos meses em que foi “cancelada” pelo público. Muitos podem achar uma oportunidade para inserir drama (afinal, todo filme precisa de um pouco de drama!), mas a abordagem do assunto no documentário é essencial. Miss Americana provavelmente não existiria sem esse episódio, Swift nunca precisaria se reinventar em 180 graus se não tivesse visto o fim de tudo tão perto.
O melhor e mais surpreendente momento é quando Taylor fala sobre seu transtorno alimentar. Em um carro em movimento, vemos o lado mais vulnerável da megaestrela que, assim como milhões de mulheres do mundo, também sofre para amar seu próprio corpo. A exposição de um assunto delicado como esse mostra um esforço de Swift em dividir mais de quem ela é com seu público, incluindo os lados do qual não se orgulha.
Miss Americana é um documentário sobre o despertar político e o retrato da intimidade de uma personalidade mundialmente famosa. Porém, acima de tudo, revela o amadurecimento de uma garota que queria ser o que os outros pediam para a mulher que a cada dia adquire mais voz.