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Uma Vida – A História de Nicholas Winton

Produção da BBC conta como um jovem britânico salvou 669 crianças da morte e do sofrimento na invasão nazista de Praga em 1938

Texto por Abonico Smith

Foto: Diamond Films/Divulgação

Depois de ganhar alguns anos atrás, o Oscar dando um show de interpretação como o idoso com a doença de Alzheimer em Meu Pai, seria nada anormal se esperar ver o ator voltar logo às telas em outra história carregada de drama, sofrimento e relações com o passado. E é exatamente o que acontece com Uma Vida – A História de Nicholas Winton (One Life, Reino Unido, 2023 – Diamond Films).

Hopkins interpreta também octogenário corretor da bolsa de valores do interior inglês que entrou para a História por um grande feito humanitário em 1938: conseguiu tirar 669 crianças checas de Praga um pouco antes da ocupação das tropas nazistas de Hitler na cidade, dando a elas lares adotivos temporários (e que em muitos casos viriam a se tornar definitivos) oferecidos por famílias da região em torno da cidade de Hampstead. Anthony, no final dos anos 1980, acaba por se pegar confrontado com o que fizera meio século antes e que, de uma maneira ou outra, acaba por lhe atormentar o espírito pela incapacidade de tornar ainda maior em números a sua façanha.

Enquanto Winton se depara com as memórias e os documentos que comprovam suas atitudes, o espectador enfrenta um didático vai-vem temporal, cheio de flashbacks que fazem o filme focar nas ações do jovem corretor para justificar o trocadilho do título original – afinal, a tal vida do nome pode se referir tanto ao ápice da vida do então jovem solteiro e bastante intrépido Nicky (com muita ajuda de sua mãe, por sinal) como a de cada criança que fora levada de trem de Praga a Londres por meio de artimanhas diplomáticas.

Como a produção conjuga a grife da BBC, é tudo mostrado com excesso de sentimentalismo em diálogos, ângulos de câmera e intervenções da trilha sonora. O diretor James Hawes, que tem no currículo dos últimos dez anos um monte de séries para a TV (Black Mirror, inclusive), junta-se aos dois roteiristas (Barbara, filha de Nicky, recebe um terceiro crédito pelo fato da história ser adaptada de um livro que lançara sobre o caso de seu pai) sem muita  ousadia na forma. Tudo bem aos moldes das produções tradicionais da British Broadcasting Corporation voltadas a pessoas ordinariamente comuns mas com algum fato bem interessante no decorrer de sua vida. Sem riscos, mas também sem falhas. Pragmatismo ao extremo.

Hopkins brilha ao encarnar um homem cheio de ambições passadas mas extremamente bonachão e queito nos tempos atuais da narrativa, contudo ele não é o único a se destacar na atuação. Helena Bonham Carter, mais discreta do que nunca na caracterização de um personagem recente, também conquista o espectador nos poucos minutos de tela como a impetuosa coadjuvante Sra. Winton, sempre disposta a ajudar seu jovem filho. A sueca Lena Olin (esposa de Nicky, mãe da então grávida Barbara) e o músico-ator sulafricano Johnny Flynn (o quase trintão Nicky durante os flashbacks) também encabeçam o elenco de primeira desta obra, que por mais que se refira a algo que ocorreu quase um século atrás, torna-se ainda mais atraente por traçar paralelos com as crianças de hoje em dia que estão sofrendo quase o mesmo horror em outro massacrante conflito não muito distante dali de Praga.

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Anatomia de uma Queda

O abismo entre verdade objetiva e percepção subjetiva é brilhantemente tratado sem espetacularização neste longa francês

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Diamond Films/Divulgação

O vencedor da Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, chegou ao Brasil e ao circuito internacional acumulando premiações e elogios. Destaque nas principais corridas do Oscar deste ano, que ocorrerá agora em março, Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute, França, 2023 – Diamond Films) conquista seu público ancorando-se a uma simples questão (que não promete resolver ao rolar dos créditos): ela matou ou não?

Isto porque a trama trata das circunstâncias da morte de Samuel (Samuel Theis), professor universitário e escritor frustrado cuja queda da janela do ático dá nome ao filme. Sua esposa, a bem-sucedida escritora Sandra (Sandra Hüller), é a única suspeita, mas alega que o marido teria tirado a própria vida. Defronte a um promotor inescrupuloso (Antoine Reinartz), ao júri e ao seu próprio filho Daniel (Milo Machado-Graner), ela vê sua vida escarafunchada e invadida em uma tentativa desesperada de livrar-se da acusação.

A suspeita não é infundada. A relação entre Sandra e Samuel sofrera muito nos últimos anos, afogada em culpa, rancor e frustração devido ao acidente que deixou Daniel permanentemente cego. Aqui, como em muitos relacionamentos, os campos pessoal e profissional se confundem: as discussões do casal variavam da falta de proporcionalidade dos afazeres domésticos ao “roubo” de uma ideia literária de Samuel por parte de sua companheira.

Todos esses pontos não ficam sem nó em um roteiro muito bem tecido por Justine Triet, que também assina a direção do filme, e Arthur Harari. Triet nos lança de cara no meio deste conflito conjugal na primeira e uma das melhores cenas do longa-metragem. Sandra recebe uma jovem entrevistadora e sua casa e, sem nem aparecer na tela, Samuel invade a conversa das duas com sua música ensurdecedora. Sua presença, assim como nessa perturbadora e ansiosa sequência, é sentida em todo o filme, primeiro como sombra e depois como fantasma. Por isso, seus poucos minutos (sempre flashbacks) são profundamente impactantes.

A protagonista Sandra Huller, por outro lado, carrega consigo o peso de ancorar a duração do filme e está presente em quase todas as cenas. Sua personagem, dividida entre o luto e a busca por uma defesa, é profundamente humana. Em meio à inquisição de sua vida, a difícil tarefa de assistir sua vida inteira resumida diante de um júri. Suas fraquezas amplificadas, suas qualidades dispensadas como notas de rodapé.

Esta é, talvez, a principal questão que Triet nos coloca ao longo de Anatomia de uma Queda. A queda é, claro, o ponto focal objetivo do caso. Por detrás dela, o exame completamente subjetivo das possíveis motivações de um assassinato ou um suicídio. Instaura-se o embate profundo de narrativas: uma disposta a condenar Sandra por seu passado, outra a sentenciar Samuel à desistência do próprio futuro. Neste jogo de tênis, a verdade se torna tão distante que é inalcançável, pois o fato em si mesmo jamais será capaz de conciliar tamanhas contradições. Não à toa, o plano que melhor ilustra todo o caso é a majestosa confusão de Daniel, que vira a cabeça num pingue-pongue que responde a duas vozes fora da tela debatendo seu depoimento: o advogado e antigo amigo de sua mãe, Vincent (o competentíssimo Swann Arlaud), e o promotor de acusação.

Assim como Daniel, o espectador se vê em conflito, buscando encontrar verdade e falsidade em reconstruções retóricas que não são capazes de abarcar a complexidade de uma vida a dois. Triet é muito sagaz em operar, nas cenas do julgamento, uma mise-en-scène muito mais errática, com uma câmera na mão que pincela zooms e movimentos bruscos, encontrando a composição certa no andar da carruagem; e primeiros planos com baixíssima profundidade de campo – as personagens sempre em foco, o ambiente judicial sempre num enorme borrão.

Mas, no choque de narrativas, nem o fato é tão relevante que esgota a divergência. Em dado momento, a acusação parte da obra ficcional de Sandra para imprimir nela uma personalidade cruel, fria. Lendo um de seus best-sellers ao júri, o promotor antagonista acende um debate de fundo que faz sucesso na crítica contemporânea: a personagem literária de Sandra é um espelho da escritora? Melhor colocando: é possível separar autora e obra? Triet parece assumir que sim, pois a dissimulação da acusação não nos deixa dúvidas quanto à índole de seus representantes. Assim como Sandra não é o áudio de uma única briga, gravada em segredo por seu marido, como poderia ser uma personagem que ela mesma anuncia ficcional, não obstante a similar situação em que ambas se encontram?

Anatomia de uma Queda é um drama de peso, cuja recepção traduz muito bem a importância. O abismo entre verdade objetiva e percepção subjetiva é brilhantemente tratado sem espetacularização, mas com a perfeita ciência de seu peso. O olhar atento da diretora para mãe e filho enlutados, passando por um trauma sem tamanho, não precisa de certezas para construir algumas das personagens mais impactantes do cinema recente. Se nunca teremos acesso ao fato concreto, só nos basta o sentimento.