Distopia japonesa provoca sentimentos agridoces ao retratar uma ação governamental oficial para acabar logo com a vida das pessoas idosas
Texto por Abonico Smith
Foto: Sato Company/Divulgação
O Japão, justamente por sua tradição e costumes milenares, é justamente um país que prima por tratar as pessoas mais velhas com muito respeito, carinho e consideração. Certo?
Bom, as coisas não são lá bem assim, pelo menos que tange à história de Plano 75 (Plan 75, Japão/França/Filipinas/Catar, 2022 – Sato Company), obra de destaque na programação Um Certo Olhar do Festival de Cannes daquele ano e que foi escolhida pelo país para concorrer, na temporada seguinte, ao Oscar de Filme Internacional. Aqui, em um futuro de data incerta mas que parece não ser muito distante dos nossos dias, os idosos são submetidos pelo governo a um plano com requintes de perversidade e crueldade. E não só aprovam isso, como também se sentem honrados e orgulhosos de participar.
A intolerância dispensada aos mais longevos aproveita-se da fraqueza dos mesmos, diante de uma sociedade da exclusão. Estes sentem vergonha em procurar ajuda para a previdência. Acham estar ficando diante de uma sensação de inutilidade mais profunda solidão e passam a se considerar aquele fardo. O governo, por sua vez, cria uma proposta “genial”: antecipar uma bolada de dinheiro para quem já alcançou a marca etária que batiza a ação para que estes concordem em se submeter a métodos de eutanásia e passem, como quiserem, quase sempre com a possibilidade de alcançarem em seus últimos dias uma felicidade uma intensidade de vida que nunca tiveram. Tudo em benefício da mesma previdência para os mais jovens, muitos deles que trabalham em prol do Plano 75 sem o menor pingo de culpa ou tristeza. Máquinas substituindo a alma humana. E o negócio parece ter dado tão certo, com tanta adesão, que já se cogita abaixar a idade de participação para pegar também os sexagenários.
Estreando em direção de longa-metragem, a também roteirista Chie Hayakawa – já perto de completar meio século de idade – realiza um competente trabalho de traduzir (a falta de) humanidade por meio de sua lente. Com um elenco encabeçado pela veterana atriz Chieko Baishô, Hayakawa faz de pequenos gestos, olhares delicados e pequenos detalhes cotidianos seu arsenal agridoce para tocar bem lá fundo de quem assiste a seu filme. Planta dúvidas, perguntas e sentimentos angustiantes em profusão nas cabeças dos espectadores até o disparo final, sem muita consideração por quem está, sofrendo, do lado de cá da tela.
O sentimento geral é de impotência diante de tanta barbaridade dita, realizada e provocada, não apenas suavemente mas com um grande sorriso no rosto. Propagandas são feitas como se o que estivesse sendo vendido fosse, de fato, um benefício para o consumidor – tudo com o aval e carimbo de oficial de um governo que nunca é muito destrinchado, permanece sempre na penumbra da obscuridão informacional. Impossível não traçar paralelos com o que temos e vivemos aqui, na realidade. A crueldade desenfreada do capitalismo somada a ações governamentais às quais muitas delas, pelo menos nós, aqui no Brasil, já tivemos a infelicidade de estar submetidos não faz muito tempo assim. Sorte nossa que a distopia política agora é apenas coisa de cinema e literatura.