Books, Music

Britney Spears

Um dos livros mais esperados dos últimos anos, a recém-lançada autobiografia apresenta a todo mundo as várias faces da popstar

Britney em foto recente publicada em suas redes sociais

Texto por Lilian Santos

Fotos: Reprodução

O público parece acreditar que sabe tudo sobre a cantora americana, que dominou as paradas no final dos anos 1990 e início dos 2000. Afinal Britney sempre foi presença frequente nos tabloides e revistas de fofoca. Mas com o livro A Mulher em Mim (lançado no Brasil pela Buzz Editora), Britney toma posse de vez da sua narrativa. Autobiografias são difíceis de entender: afinal, não dá pra saber até onde existe verdade e o que é ficção. Este livro não foge à regra, mas a descida ao universo Britney é, sem dúvida, interessante.

Como todo mundo, ela é complicada, cheia de virtudes e defeitos. A menina interiorana, a filha obediente, a girl next door, a namoradinha da América, a mulher e mãe, a superestrela: são as muitas faces de Britney. A popstar é fácil de se entender. Simples como as letras de suas músicas, uma melodia fácil com um refrão pegajoso. A pessoa por trás dos holofotes, entretanto, é muito mais interessante. A mulher Britney Jean Spears é um indivíduo complexo. Um lado seu está em constate busca por atenção, ao mesmo tempo em que a garotinha se esconde no armário, fugindo do pai alcoólatra e abusivo e do julgamento materno.

Em A Mulher em Mim, Spears não se esquiva dos assuntos polêmicos que permeiam sua vida. O relacionamento com Justin Timberlake, o aborto provocado quando se descobriu gravida do cantor. O casamento-relâmpago com Jason Allen Alexander e a união com Kevin Federline, pai de seus dois filhos. Ela não se esquiva dos detalhes e é fácil ter empatia com o breakdown sofrido em 2007, quando raspou o cabelo e atacou fotógrafos com um guarda-chuva. Britney descreve o evento como resultado da pressão psicológica sofrida pela constante perseguição da imprensa e aos efeitos da depressão pós parto.

Britney se apresentando no VMA em 2001 com uma cobra píton

Segundo a cantora, tanto a adolescente quanto a mulher Britney tiveram sua história mal interpretada e são vítimas do patriarcado. Desde a narrativa do rompimento com Timberlake, quando ele a acusou de traição em várias de suas músicas, ao relacionamento com K-Fed, no qual ele a acusou de ser uma mãe inapta, passando pelo próprio pai, Jamie Spears, e a bizarra tutela que extirpou Britney do controle de sua própria vida. Todo mundo pegou carona no sucesso dela e cuspiu os restos aos paparazzi.

Segundo ela mesma descreve, os homens podem tudo: trair, fumar maconha em quantidades absurdas. Só que a mulher, a mãe, a pessoa mais famosa do planeta, é tachada de piranha, bêbada, viciada. Double standards existem para celebridades também. E não apenas aos olhos do mundo inteiro, mas especialmente no convívio íntimo, entre familiares e amigos.

Enquanto conta seus problemas causados pelo vicio em adderal, Britney nos deixa entrar no horror do circo sua interdição. O pai e os advogados dela entraram com o processo para interditar a cantora. A galinha dos ovos de ouro da família Spears passou a não ser nem mais a dona de seu nariz. Jamie e uma linha de advogados determinavam o que ela fazia, onde gastava seu dinheiro. Dinheiro, aliás, que ela continou a fazer, uma vez que não estava proibida de trabalhar e excursionar pelo mundo. Fuck the patriarchy!

A tutela durou treze anos e a artista, agora, vive o ostracismo da indústria. Desde 2016 não lança um novo material sequer e os filhos Sean Preston e Jayden James vivem com o pai. Quem sabe, então, esta biografia não vira o próximo passo para o esperado comeback da eterna princesa do pop? Depois da “liberdade”, isso é tudo o que a sua legião mundial de fãs deseja.

It’s Britney, bitch!

Movies

Longa recria toda a tensão da luta contra a ditadura e da história de resistência de militante morto pelo regime militar em 1973

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

A história da ditadura militar brasileira foi, por muito tempo, particularmente oclusa. Num país que anistiou seus torturadores e assassinos, a história contada era a dos vencedores. Desde os anos 1990, pouco após o fim do regime, houve esforços em busca da verdade do desaparecimento de presos políticos, torturados e mortos pela repressão. Um deles foi José Carlos Novaes da Mata Machado, o Zé.

Vencedor de melhor direção de arte da mostra competitiva brasileira do 12° Olhar de Cinema, festival realizado há poucos dias em Curitiba,  (Brasil, 2023) é um drama de Rafael Conde sobre a história desse militante, dirigente da Ação Popular Marxista-Leninista morto em 1973 no Recife. Mineiro, assim como seu diretor, Zé (Caio Horowicz) se engaja com o movimento estudantil e, após o golpe de 1964, participa da luta clandestina de esquerda, quando se apaixona por Madalena (Eduarda Fernandes). Ambos passam a militar juntos, têm filhos e, no auge do regime, são traídos.

Arquitetando composições contidas e requintadas, Conde retrata essa tensa narrativa com um tripé sempre em mãos. A câmera prepara o palco em que o elenco, muito competente, nos contará as batidas da trama. Contará literalmente, pois o revolucionário protagonista nunca é retratado com as mãos na massa da resistência armada. Passamos de cenário a cenário ouvindo Zé reclamar da dificuldade de engajar na luta ou ouvindo de seus companheiros que o cerco está fechando. Mas a inação é soberana, e a mise-en-scène pacata não é capaz de expressar a intensidade da luta marxista contra a ditadura.

Por isso, a emoção certeira do elenco é sobrepujada pela sensação de que não estamos assistindo às personagens que deveriam estar sendo mostradas. Até mesmo Marighella (dirigido por Wagner Moura, de 2021), com todos seus problemas, faz um retrato mais enérgico da luta armada no país. Logo, a refinada direção de arte, a fotografia embelezante e as benesses técnicas do projeto não sustentam a projeção, que se perde entre passagens de Neruda e pretensos debates filosóficos sem lastro. É um filme que clama por liberdade,  embora insista em nos deixar presos à visão de um só ângulo, uma única abordagem quieta e estática.

Quando a ação aparece, é de viés repressor: ou Madalena grita por direitos para operárias apáticas que a ignoram, abafada pelo alto ruído do maquinário têxtil, ou assistimos à captura de militantes ou até mesmo à tortura de Madalena. A impressão que temos é que a luta é meramente retórica, utilizada como dispositivo para o filme engendrar conflitos pessoais em seu personagem principal. Em dado momento, Zé critica a atuação distanciada do povo que seus familiares tomam durante a ditadura, e sentimos que a crítica é direcionada ao próprio filme.

Uma grande sucessão de dispositivos expositivos, Zé pincela boas ideias em um retrato aterrador da luta armada brasileira. Nos assombra não por sua boa articulação discursiva, que expressaria os males da ditadura e a coragem dos que se organizaram contra o regime, mas justamente pela falta desta – é um filme seguro e pacato, que joga contra seu tema. É emblemático que um filme sobre um dirigente da luta armada brasileira sufoque tanto seu protagonista. Assim como os militares o fizeram.

Movies

Disco Boy

Drama europeu que encantou o Festival de Berlim traz uma trilha sonora eletrônica catártica casada a uma belíssima fotografia

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Além da Mostra Competitiva Brasileira, que estreou esse ano na intenção de valorizar a produção local, o 12° Olhar de Cinema contou com uma robusta seleção de lançamentos em sua Competitiva Internacional. Um deles, talvez o mais aguardado pelo público de Curitiba, foi Disco Boy (França/Itália/Bélgica/Polônia, 2023 – Pandora Filmes), drama que lotou salas no Cineplex Novo Batel e encantou o Festival Internacional de Berlim, a icônica Berlinale.

Na trama, Aleksei (Franz Rogowski) é um bielorrusso que aproveita uma partida de futebol para conseguir acesso à União Europeia e, junto de seu amigo Mikhail, planeja viajar clandestinamente para a França e entrar para a Legião Estrangeira. Lar de imigrantes de todo o mundo, essa divisão do exército francês garante moradia, emprego e até mesmo um novo nome aos seus legionários. Uma chance de recomeçar a vida. 

Em paralelo, no delta do Rio Niger, Jomo (Morr Ndiaye) é o líder de um grupo de resistência à exploração petrolífera na região de seu vilarejo, o MEND. Dotados de uma mística heterocromia, com um olho profundamente escuro e o outro num tom de âmbar, ele e sua irmã Udoka (Laetitia Ky) são figuras particulares em sua comunidade, e dançam juntos uma coreografia misteriosa e ritualística. No entanto, quando o grupo de Jomo sequestra um barco francês, o agora soldado Alex Dupont, novo nome de Aleksei, lidera um esquadrão de resgate que termina por unir os dois protagonistas em uma conexão espiritual obscura. 

Este longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, que esteve presente nas duas sessões do filme em Curitiba, tece uma trama propositalmente elíptica e calada. É preciso falar muito pouco e, como o nome pode aludir, a música eletrônica sequestra o ambiente sonoro com muita frequência e intenção. Junto à belíssima fotografia de Hélène Louvart, vencedora do Urso de Prata de Berlim por este trabalho, as composições originais do produtor francês Vitalic criam um ambiente opressivo e ao mesmo tempo catártico, que imerge todo o filme em uma profunda expressão do conflito e do suspense que o embebe. Disco Boy é, além de um drama, uma experiência sensorial audiovisual instigante.

Se, por um lado, a música não nos deixa respirar fora de tempo, acompanhando a pressão crescente na cabeça de Alex, é a fotografia de Louvart que aclimata a obra e lhe dota de texturas incríveis a cada momento. A frieza europeia é contrastada pelos cenários de devastação ambiental na Nigéria, um mundo destruído cujo delta é lar da sequência mais gutural e criativa vista no festival até então. Em meio à operação, tomamos a vista dos soldados e acompanhamos um conflito intenso por meio de uma câmera térmica. Os corpos quentes se escondem mergulhando nas frias águas do rio, e o resultado é surpreendente.

De volta à França, Alex lentamente perde a cabeça, abrindo um espaço cada vez maior para sua relação transcendental com Jomo e sua irmã, que reaparece em Paris para um clímax memorável. A atração magnética de Alex e o casal de irmãos nigerianos se resolve em uma sequência de eventos que escancaram a contradição do âmago de seu protagonista, interpretado com uma robustez e contenção belíssimas de Rogowski. Um homem quebrado com um passado traumático, sua personalidade ameaçadora o faz a personagem perfeita para a jornada que Disco Boy propõe, amparada pela subjetividade da pulsão contemporânea da música eletrônica.

Aleksei esperava abandonar seu passado e virar francês “pelo sangue derramado”, como clama a poesia escrita nas paredes de seu quartel, mas os eventos traumáticos no continente africano o tornaram algo completamente distinto e inesperado. A conclusão dessa transformação, embora não muito oclusa, merece ser descoberta por cada espectador envolvido pela obra.

Music

RPM

Luiz Schiavon, que faleceu aos 64 anos, foi o principal responsável pela popularidade do sintetizador na música brasileira dos anos 1980

O RPM em 1985: Fernando Deluqui, Paulo Ricardo, Luiz Schiavon e PA

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Divulgação/CBS

Na manhã da última quinta-feira, 15 de junho, recebemos a notícia da morte de Luiz Schiavon, tecladista e fundador do RPM, aos 64 anos. Além de ser precoce, é uma perda enorme para a música brasileira, uma vez que Schiavon foi um dos grandes nomes – talvez o maior – da inserção do sintetizador nas paradas pop dos anos 1980 em diante. Ele não foi exatamente o pioneiro, mas estava neste momento peculiar do tempo, no qual o instrumento de teclas se uniu à produção em escala cada vez mais massificada. A bordo do RPM, grupo que ele fundou em 1983, Schiavon assumiu condição de protagonista criativo, elaborando o conceito da banda e seu direcionamento musical.

Com a chegada do vocalista Paulo Ricardo – que também assumiria o baixo – um ano depois e mais as presenças de Fernando Deluqui e Paulo Pagni (conhecido como PA) na guitarra e na bateria, o RPM iniciou sua produção de canções, que resultaria num bom contrato com a CBS da época (hoje Sony) e num álbum, que se chamou Revoluções Por Minuto, lançado em 1985. É possível dizer que o quarteto se tornou, ainda que por cerca de um ano e pouco, a banda mais importante do Brasil em termos de execução e vendas de discos. Isso se devia à figura de Paulo Ricardo, que impunha doses generosas de sensualidade em suas interpretações e, sim, à qualidade das canções apresentadas.

Deste primeiro trabalho, o grupo cravou seis singles nas paradas, “Louras Geladas”, “Rádio Pirata”, “A Cruz e a Espada”, “Olhar 43”, “Revoluções Por Minuto” e “Juvenília”, que tocaram em todas as rádios e programas de auditório do país entre março de 1985 e todo o ano de 1986. A estabilidade econômica do Brasil à época, materializada pelo Plano Cruzado, turbinou as vendas deste primeiro álbum e assegurou o lançamento acelerado do segundo, Rádio Pirata – Ao Vivo, que saiu no fim de 1986.

Com este disco gravado ao vivo, o RPM tapava a lacuna da demanda por mais canções do grupo, que, exausto após turnês subsequentes por dois anos, estava esgotado e à beira do fim por conta dos desentendimentos internos. Ainda que parecesse uma usina de sucessos imparável, o RPM era palco de disputas criativas, sempre com Paulo Ricardo desejando inserir mais elementos roqueiros e Schiavon pendendo a balança para os timbres derivados do tecnopop e do new romantic, então vigentes na produção pop anglo-americana. Mesmo assim, a presença de covers de Caetano Veloso (“London, London”) e Secos & Molhados (“Flores Astrais”) no segundo álbum, além de um dueto com Milton Nascimento em “Feito Nós”, single de 1987, mostrava que a banda tinha mais do que o desejo simples pelo sucesso.

Foi preciso muito poder de convencimento para a CBS recolocar o RPM em estúdio para a gravação do terceiro álbum. Ofertas de discos solo dos participantes, mixagem em Los Angeles, orçamento polpudo liberado, tudo foi posto na mesa para que o grupo entregasse mais uma fornada de possíveis hits. Talvez os conflitos internos, talvez uma mudança de perspectiva, talvez o espírito daquele 1988, no qual a lambada já surgia como uma alternativa viável para o público jovem, sabe-se lá, mas o fato é que o novo disco, intitulado simplesmente RPM, veio muito mais profundo e “difícil” em relação aos dois discos anteriores. A preocupação estética da banda com arranjos, timbres e letras afastava o álbum do sucesso almejado, ainda que canções como “Partners”, “Um Caso de Amor Assim” e “Quatro Coiotes” tenham tocado medianamente nas rádios. Foi uma pena, pois este álbum tem detalhes interessantes e excêntricos, como a presença de Bezerra da Silva em “O Teu Futuro Espelha Essa Grandeza”. Poucos meses depois desse lançamento, o RPM encerrou as atividades. 

Nos anos seguintes até a semana passada, quando lançou o fraquíssimo single “Liberdade”, o RPM veio e foi, em diferentes encarnações. Na mais importante delas, em 2002, a banda gravou um disco ao vivo para a MTV, além de canções inéditas (como “Vida Real”, que se tornou o insuportável tema do não menos insuportável Big Brother Brasil). Alguns discos foram lançados, shows e apresentações aconteceram, além de mais e mais disputas judiciais entre os integrantes da banda. Nada do que foi feito depois de 1988 vale a pena ser considerado seriamente na antologia da banda.

Luiz Schiavon, por sua vez, também trabalhou em trilhas sonoras para a TV, como as das novelas O Rei do GadoTerra Nostra e Esperança, para as quais também escreveu canções originais, além de selecionar músicas que fizeram parte das tramas. De 2004 a 2010, foi diretor musical do Domingão do Faustão, interagindo frequentemente, ao vivo, com o apresentador do programa de auditório da Rede Globo.

Movies

The Flash

Estreia solo de Barry Allen acaba ofuscada pela enxurrada de efeitos especiais e intromissão de mais heróis da DC

Texto por Abonico Smith

Fotos: Warner/Divulgação

“Eu sou o zelador da Liga da Justiça”, diz Barry Allen em determinado momento do início de The Flash (EUA, 2023 – Warner). A reclamação em forma de constatação irônica não é infundada. É bem difícil lutar por um espaço ao sol nas produções cinematográficas de uma casa de super-heróis que mantém em seu panteão de principais figuras Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Por isso não deve ser fácil mesmo encarar a resignação de ficar sempre em segundo plano quando o assunto é o holofote da DC para trabalhar seus personagens na sequência de longas-metragens que chegam anualmente às salas de projeção de todo o planeta. Nos quadrinhos era bem mais fácil ganhar projeção e assim o personagem o fez quando foi criado em 1956, durante o início da Era de Prata dos Quadrinhos. Mas quando o assunto vira um blockbuster do cinema, repleto de segredos, altos cachês, incontáveis efeitos de CGI e expectativa de grandes bilheterias, fica sempre mais difícil que a empresa volte seus olhos para nomes de seu elenco de escalões inferiores, a não ser quanto à reserva da cota de seriados de TV e streaming. Com muito dinheiro envolvido não se brinca em Hollywood.

Barry não foi o primeiro personagem a ser chamado de Flash nas páginas impressas com o selo DC Comics na capa. Mas tornou-se o mais conhecido justamente porque chegou quando se apresentava um momento em que a empresa havia decidido dar um reboot em seus heróis e recomeçá-los do zero, trazendo traços e características para o presente. Assim, editoras como a DC e a rival Marvel começaram a se tornar soberanas ao readequar algumas de suas mais conhecidas criações para a juventude daquele período pós-guerra. Foi assim que Allen conquistou popularidade e ingressou na primeira formação da também recém-criada Liga da Justiça.

Eis que é em torno da Liga da Justiça que começa a história do primeiro filme protagonizado e batizado pelo herói cujo poder é correr em uma velocidade fantástica, quase podendo parar o movimento de rotação do planeta e chegando a paralisar os acontecimentos ao redor para mover-se e fazer o que quiser neste intervalo de milionésimos de segundos. O mordomo Alfred tenta localizar os heróis para uma emergência em um hospital de Gotham City. Allen é o primeiro a ir ao local. Logo depois chegam Batman e Mulher-Maravilha e o espectador logo percebe que o tão esperado primeiro longa-metragem do Flash não será somente com o Flash, centrado tão somente no Flash. Para completar, a subtrama principal – e que dá origem à secundária, que une outros heróis e toma conta da narrativa a partir da metade do filme – envolve dois Flashes.

Como é bem comum no cinema de super-herói, aqui a audiência não consegue escapar da inevitável deslizada de quase toda produção do gênero que tenta apresentar um herói para as pessoas mais novas: o flashback contando as origens dele e como foram adquiridos tais poderes que o diferenciam do resto dos humanos. Barry, incomodado com a prisão de seu pai, que alega não ter cometido o assassinato da esposa, descobre como voltar no tempo para consertar a situação e garantir a continuidade da vida da mãe. Nisso, o Barry que veio do futuro ainda se encontra com o Barry do passado quase saindo da adolescência. Antes de se aventurar pelo continuum espaço-tempo, porém, é advertido pelo amigo Bruce Wayne sobre os perigos tenebrosos e irrecuperáveis que a tentativa pode provocar. Claro que, por ser jovem, inexperiente e desastrado, Flash vê a iniciativa dar errado e acaba ficando preso no período onde está, sem poder retornar ao seu tempo.

O maior desafio para Ezra Miller – contratado para viver o herói nos cinemas desde o longa da Liga da Justiça (2017) – é justamente provar ter sido a escolha mais correta para o diretor Andy Muschietti e os produtores executivos do filme. Badalado como uma das grandes promessas de Hollywood no início da década passada, o ator vinha de performances arrasadoras em obras cult como Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012). A entrega ao personagem, que sempre fica ali no limiar entre o histriônico e o intenso – favorece bastante Miller nos alívios cômicos da história do Flash, embora também não o faça comprometer nos momentos de maior drama. Em dose dupla, na pele dos Barries de ontem e de hoje, destaca-se na interpretação, a despeito de todas as confusões e polêmicas recentes (abusos, brigas, acusações, escândalos) na qual se envolveu e acabou manchando a reputação profissional e ganhando a pecha de enfant terrible do século 21.

Se Ezra passa ileso na primeira metade, acaba caindo na armadilha provocada pelo roteiro para o seu personagem logo depois. Ao voltar no tempo e ficar preso, Flash percebe que um perigo imenso ameaça o mundo (quer dizer, mais precisamente Nova York e as cidades de Gotham e Metropolis): a chegada do general Zod, o maior inimigo kryptoniano de Superman, que vem para dominar a Terra, para onde fora mandado Kal-El ainda bebê para escapar da destruição de seu planeta e garantir a preservação de sua raça. Zod ainda vem atrás do herói, mas ninguém sabe por onde ele anda. Para salvar Superman, os Flashes acabam convencendo o Batman daquela época a lhes ajudar e no meio do caminho ainda topam com uma outra figura de grande heroísmo no universo das recentes séries da DC, a prima de Kal-El que atende pela alcunha de SUpergirl (Sasha Calle, atriz americana de origem latino-americana que ainda vai dar muito o que falar nos próximos filmes da casa). O que esperava-se ser um filme do Flash torna-se embolado por outros heróis, sobretudo quando as cenas de ação e lutas tornam-se mais frequentes a ponto de quase dominar o arco final. Sem falar que as atuações ficam quase todas subjugadas à proliferação massiva dos efeitos de CGI, com presença ostensiva aqui.

A transição de Barry Allen de um universo para o outro vem a calhar no timing reservado à questão dos multiversos, elemento que anda se propagando feito febre em Hollywood (filmes e animações de super-herói e até no Oscar) nestas duas últimas temporadas. Isca certeira para atrair bilheteria e o interesse de cinéfilos mais ligados à cultura pop. Só que este detalhe, além de abrir espaço para a maçante torrente de CGI, ainda traz consigo um festival de easter eggs daqueles de levar a turba nerd a múltiplos orgasmos nas poltronas. Outros heróis da Liga da Justiça e até aqueles que estão batalhando contra Zod aparecem constantemente em pequenas referências na tela em todas as suas versões, do passado e do presente, do cinema e da televisão. Superman, Batman, Supergirl, Mulher-Maravilha, Aquaman… Quase todos os atores que os interpretaram – como os icônicos Christopher Reeve e Michael Keaton – também são trazidos de volta neste filme para as novas gerações de fãs.

Pena que a enxurrada de efeitos especiais que toma conta da tela sem parar mais acabe por apagar o brilho da história humana durante o restante da projeção e transforme a tão esperada estreia “solo” do Flash no cinema em uma experiência enfadonha até quase o finalzinho.