Music

Killing Joke

Um relato próximo de quem conheceu a banda de perto e se tornou amigo do guitarrista Geordie Walker, cuja “harpa dourada” silenciou para sempre

Youth, Coleman, Ferguson e Walker: o Killing Joke em 2022

Texto por Guto Diaz

Fotos: Divulgação (banda) e Guto Diaz (banda ao vivo e selfie com Geordie)

No último dia 26 de novembro, um domingo, às 6h30 da manhã, a “harpa dourada” silenciou para sempre. Kevin “Geordie” Walker, guitarrista e um dos fundadores do grupo pós-punk britânico Killing Joke, faleceu em sua casa, na cidade tcheca de Praga. Ele tinha 64 anos e sofreu um AVC. 

Walker nasceu dia 18 de dezembro de 1958, em Chester-le-Street, distrito de Durham, no nordeste de Inglaterra. Quando tinha 14 anos, a família mudou-se para o distrito de Bletchley, em Buckinghamshire. Foi nessa época que ele adquiriu o apelido Geordie, devido ao forte sotaque do norte. Desde cedo mostrou uma obsessão pela guitarra. Fechava-se no seu quarto, após a escola, para praticar durante longas horas. Foi para Londres para estudar arquitetura e tornou-se membro fundador do Killing Joke quando respondeu a um anúncio enigmático colocado pelo cantor Jaz Coleman e pelo baterista Big Paul Ferguson na edição da Melody Maker de 24 de fevereiro de 1979.A dupla procurava por um guitarrista e um baixista. Esse anúncio trouxe, além de Walker, o baixista Martin “Youth” Glover. Com esta formação foi dado início às atividades do Killing Joke. 

Seu estilo pouco ortodoxo, caracterizado por melodias angulares, harmonias dissonantes, experimentação e o jeito de tocar sem esforço e ao mesmo tempo produzindo um som monstruoso, tornou-se a pedra angular do Killing Joke e foi amplamente aclamado por nomes como Jimmy Page, James Hetfield e Dave Grohl. Esta sonoridade, muitas vezes descrita como “atmosférica” e “visceral”, foi alcançada através de uma combinação de pedais de efeitos, afinações não convencionais e a utilização de uma guitarra semiacustica, a Gibson ES-295 (carinhosamente chamada pelos fãs de “harpa dourada”), com uma afinação inteira num tom abaixo (DGCFAD), tornando a tensão do encordoamento mais confortável com o benefício adicional de deixar a guitarra mais pesada.

Este modelo Gibson ES-295, que se tornou seu instrumento principal a partir de 1982, desempenhou papel fundamental em todas as gravações subsequentes, até o último álbum, Pylon, lançado em 2015. A abordagem da guitarra de Walker era tão enigmática que influenciou artistas como Ministry, Faith No More, My Bloody Valentine, Metallica, Helmet, Prong, Nirvana, Soundgarden e, inclusive, meus projetos primal…, Secret Society e OUTONO, que misturam perfeitamente elementos de rock, industrial e música de vanguarda.

Geordie, Youth, Coleman e Ferguson: o Killing Joke em 1980

Meu primeiro contato com a música do Killing Joke foi na metade dos anos 1980, com os álbuns NightTime (1985) e Brighter Than A Thousand Suns (1986), que tiveram lançamentos em território nacional. Tudo mudou pra mim quando ouvi o álbum What’s This For! (1981) na casa da empresária da comunicação Moema Zuccherelli (na época empresária do meu grupo, o Epidemic). Desde então, eles se tornaram minha banda preferida, abrindo a mente para outras possibilidades sonoras, além do espectro do heavy e do thrash metal que eu escutava na época. 

A primeira vez que assisti ao Killing Joke ao vivo foi nos dias 29 e 30 de setembro de 2008, em Bruxelas (Bélgica), na turnê de reunião da formação original. Foram diversos concertos pela Europa, com eles tocando duas vezes seguidas em cada cidade, executando na integra os álbuns Killing Joke (1980), What’s This For! (1982) e Pandemonium (1994), além de singles e lados B. Na primeira noite, encontrei pessoalmente diversos gatherers (nome dado à legião de fãs do quarteto espalhada pelo mundo). Eram pessoas que eu já conhecia através da internet e das antigas mailing lists. Após o show fui convidado para ir até um pub, onde eles iriam receber alguns fãs. Fui apresentado aos integrantes. Todos foram extremanente cordiais comigo. Ficaram admirados por eu ter saído do Brasil só para vê-los. Tiramos fotos juntos e fui convidado para, no dia seguinte, assistir à passagem de som. Daí em diante criou-se uma relação muito bacana entre nós. Nos anos seguintes segui trocando mensagens com eles por e-mail, inclusive mostrando alguns de meus trabalhos musicais.

Em 2018 a banda anunciou sua primeira turnê pela america latina, com passagens pelo México, Peru, Chile, Argentina e Brasil. Fui a dois shows (São Paulo e Buenos Aires) e dessa vez eu que recebi e acompanhei alguns gatherers no Brasil, levei eles em uma churrascaria e bares em São Paulo. Viajamos juntos e ficamos hospedados nos mesmos hotéis. Eu tive acesso livre às passagens de som e ao camarim, ganhei presentes da banda e passei momentos inesquecíveis junto dos meus ídolos. Passeamos de taxi por Buenos Aires, fomos a uma churrascaria típica argentina, participei de festas no hotel após as apresentações, com queijos e vinhos – uma certa tradição no universo Killing Joke.

Mas o grande momento de todos foi quando Jaz Coleman nos convidou para ouvir com exclusividade em seu quarto de hotel, ao novo álbum Magna Invocatio, com releituras orquestradas de músicas do Killing Joke e gravado com a Filarmônica de São Petersburgo, que estava prestes a ser lançado. Foi uma experiência surreal: todos em silencio, ouvindo com atenção, enquanto o vocalista, de olhos fechados, regia a obra com batutas imaginárias. Após a audição, Jaz fez questão de saber a opinião de todos que lá estavam (éramos em quatro pessoas: os britânicos David “Diamond Dave” Simpson e David Molyneux, o francês Stephane “Frenchy Frenzy” Bongini e eu).

>> Leia na íntegra este diário de bordo de 2018 com o Killing Joke clicando aqui

Guto Diaz e Geordie Walker

Em 2022 o quarteto anunciou uma pequena turnê de cinco showsFollow The Leaders, que aconteceria em março de 2023 na Inglaterra, culminando num grande evento no Royal Albert Hall. Entrei em contato com meus amigos Molyneux e Bongini e contei que estava seriamente pensando em ir. Eles me disseram que, caso eu fosse mesmo, haveria algumas surpresas: eu só precisaria garantir a minha ida até Londres. Dia 6 daquele mês embarquei em mais uma incursão para assistir ao Killing Joke. Quando cheguei à capital inglesa, David e Stephane estavam me aguardando no aeroporto de Heathrow para darmos início à nossa aventura. Fomos de carro e acompanhamos três warm up gigs: dia 7 de março em Colchester, 9 em Londres (onde o Killing Joke se apresentou pela primeira vez no mítico 100 Club), 10 em Wolverhampton. Depois, finalmente o grandioso evento no Royal Abert Hall, dia 12, novamente em Londres. 

Nesses quatro dias eu tive acesso geral a tudo. Assisti a todas as passagens de som, podendo acompanhar de perto o processo de montagem de equipamento e o soundcheck. Permitiram o acesso aos camarins antes e após os concertos. Foi simplesmente inacreditável. Na primeira noite após o show em Colchester, enquanto acontecia a famosa festa dos queijos e vinhos, pude conversar bastante com eles e com a equipe. É claro que dessa vez fui preparado, com presentes para cada um. Levei duas garrafas de cachaça, uma para Geordie e outra para Big Paul; uma caixa de charutos especiais brasileiros para Jaz e discos para Youth (Da Lama Ao Caos, do Chico Science e Nação Zumbi; A É Concavo B É Convexo, dos curitibanos do ruído/mm; e Realce, de Gilberto Gil). 

No dia seguinte, voltamos para Londres para o show no 100 Club. Esta é uma casa de shows icônica e minúscula, localizada no porão de um prédio na Oxford Street, no centro de Londres (lembra o antigo 92 Graus, em Curitiba). Pelo  100 Club já passaram grandes nomes do jazz e artistas como Muddy Waters, Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Oasis, Blur. Lá também foi onde Siouxsie & The Banshees fizeram sua estreia nos palcos. O show do Killing Joke foi catártico. O lugar é pequeno e estreito. O público fica praticamente esprimido entre a parede e o pequeno palco. A banda foi sublime nesta noite. Eles tocaram visceralmente e num volume extremamente alto. O local parecia um caldeirão de tão quente. 

No dia seguinte marcamos de nos encontrar bem cedo em frente ao hotel, porque teríamos de dirigir alguns bons quilômetros de Londres até Wolverhampton, que fica ao norte, próximo a Birmigham. Logo que desci encontrei com Stephane que me disse: “tenho uma surpresa para você hoje, aguarde”. A surpresa era que levariamos o guitarrista Geordie conosco no carro até Wolverhampton, pois ele não queria ir no ônibus de turnê, junto com a banda e a equipe. Foi uma das experiências mais surreais da minha vida viajar no mesmo carro ao lado do meu maior ídolo. Antes da partida, quando nos encontramos, Walker agradeceu novamente a cachaça e confessou ter dado um talagaço logo cedo. Daí ensinei a ele a receita da clássica caipirinha brasileira. Durante a viagem, as conversas foram bem triviais: família, cigarros, café, esportes, pescaria (um hobby dele!). É claro que Geordie também contou algumas histórias da estrada com o Killing Joke. Chegando em Wolverhampton, a gig foi no KK’s Steel Mill, casa de shows do guitarrista do Judas Priest, com grande porte e uma estrutura impecável. Mais uma vez eles entregaram uma performance arrebatadora. Voltamos na madrugada, de carro, mas desta vez Geordie veio dormindo por todo o trajeto.

Killing Joke ao vivo durante sua última turnê, em março de 2023

Finalmente chegou o grande dia, 12 de março de 2023. O Killing Joke faria uma apresentação sold out no emblemático Royal Albert Hall, teatro para mais de cinco mil pessoas inaugurado em 1871. O lugar é simplesmente magnífico. Faltam palavras pra descrever a sua beleza e opulência. Acompanhei a passagem de som inteira e os preparativos para a gravação (a noite foi registrada para um futuro álbum ao vivo) e depois fui convidado a ficar com eles nos camarins. Caminhar pelos corredores do Royal Albert Hall foi uma experiência incrível. Um pouco antes do início do show me dirigi até a plateia, pois eu queria assistir a tudo de frente. A apresentação foi magnífica. Eles entregaram toda sua fúria e intensidade de modo sublime. Logo depois teve uma festa só para convidados dentro dos bares do Royal Albert Hall, salões de uma beleza indescritível. Conheci ali inúmeras pessoas de diversos lugares do mundo e me diverti muito. Estava ainda em êxtase, absorvendo tudo que tinha acontecido em menos de uma semana.

Em todos os quatro shows em que estive presente tive a oportunidade de rever algumas pessoas que já havia encontrado em Bruxelas em 2008 e também conhecer pessoalmente uma infinidade de outros fãs dos quatro cantos do mundo – alguns que já conhecia pelas redes sociais e outros a quem fui apresentado pela primeira vez. Essa é uma das coisa mais legais sobre os gatherers: eles fazem você se sentir como se fosse parte de uma grande família, uma congregação de fãs com a mesma paixão e admiração pelo Killing Joke. 

Como tudo tem um fim, chegou a hora de ir embora. No dia seguinte me de despedi de meus amigos e retornei ao Brasil. Quando entrei na sala de espera do aeroporto, inesperadamente, a última pessoa que encontrei antes de embarcar foi o Geordie (que estava voltando para Praga!). Conversamos brevemente e na hora do adeus ele me disse “safe travels”. 

Quem poderia imaginar que menos de nove meses depois ele estaria deixando este plano? Agora é minha vez de dizer adeus e desejar “safe travels, my friend”. Escrevendo esse relato estou tomado de uma imemsa tristeza, como se tivesse perdido um irmão ou um amigo muito próximo. Obrigado por sua obra, inspiração e todo legado que deixou. Você nunca será esquecido. Honor The FireAbsent Friends Shall Live By Love!

Geordie era de longe o mais quieto e o membro mais difícil de se conhecer do Killing Joke. Sempre ficava no seu canto sem chamar a atenção, evitava dar entrevistas e não era muito receptivo às súplicas febris de fãs. Apesar disso, nunca se comportava como uma celebridade ou uma estrela do rock. Assim que se quebrava essa barreira inicial, ele se mostrava uma pessoa extraordinária. Um componente integral e insubstituível do som característico da banda na qual ele tocou continuamente por mais de 46 anos.

Ouso dizer que sem ele este é o fim de uma era chamada Killing Joke.

Movies

Wes Anderson

Netflix libera de uma só vez quatro curtas-metragens do icônico diretor e roteirista, todos inspirados em contos de Roald Dahl

A Incrível História de Henry Sugar

Texto por Tais Zago

Fotos: Netflix/Divulgação

Anderson ataca outra vez e agora em todos os fronts. Quatro curtas foram liberados ao mesmo tempo no canal de streaming Netflix, há alguns dias. O projeto, que supostamente chegara a 1 bilhão de dólares, é uma jogada ambiciosa da parceria entre a plataforma e o cineasta. Compõem a tetralogia de produção anglo-americana Veneno(Poison, 17 minutos), O Cisne (The Swan, 17 minutos), O Caçador de Ratos (The Ratcatcher, 17 minutos) e A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar, 39 minutos)

Nestes quatro curta-metragens inspirados na obra de Roald Dahl (que já inspirou Wes em outros projetos como O Fantástico Sr. Raposo, de 2009, e escreveu o livro que deu origem ao cultuado filme A Fantástica Fábrica de Chocolate), Anderson adapta e dirige com mão leve um roteiro teatral. Como vimos em Asteroid City, seu ultimo longa, lançado em agosto nos cinemas brasileiros (leia aqui a resenha do Mondo Bacana), Wes mergulhou fundo na dramaturgia e na representação teatral do seu próprio roteiro. Quebra constantemente a quarta parede e vai além dos limites até então conhecidos da metalinguagem. Temos uma história dentro de uma história e , às vezes, com outra história por trás. Uma matrioska technicolor, uma trama elaborada com palavras e cenários meticulosamente trabalhados, que trazem nos narradores, praticamente, uma leitura do roteiro acompanhando a ação.

O Caçador de Ratos

Wes é mundialmente famoso pelo seu estilo único de fazer cinema usando cenários minuciosos com um detalhismo que satisfaz até aos olhares mais exigentes. A riqueza dos detalhes, a simetria da fotografia, a perfeição da maquiagem e do figurino. Nunca vemos um único fio de cabelo (pelo menos não intencionalmente) fora do lugar. 

Agora Anderson traz para as telas e encena com atores histórias que funcionariam tanto no palco quanto em forma de stop-motion. Nenhum artifício de representação estética é deixado de lado – animação, CGIs, cenários elaborados feitos manualmente, filtros vintage e tons pastel. A beleza esmaecida da idiossincrasia de seus personagens se repete, mas nunca cansa o olhar. O comportamento extra-humano, robótico, típico de nerds, é o centro e o tom das interpretações no hiperdescritivo texto elaborado pelo diretor-roteirista. O comportamento pitoresco e fora do lugar-comum de seus personagens é perfeitamente alinhado a esses textos e aos figurinos. O homem comum em situações aparentemente mundanas abre a porta para o fantástico e o lúdico.

Nos quatro contos vemos personagens aparentemente comuns se envolvendo em situações pouco convencionais com desfechos fantásticos. A digital de Anderson está em cada olhar, na postura corporal dos atores, mas descrições e nas expressões faciais. Ao fim de cada um dos curtas, o cineasta presta uma homenagem a Roald Dahl em um pequeno parágrafo contando brevemente o contexto da criação de cada um dos contos do autor.

Veneno

O elenco não poderia ser mais estelar. Tem Ralph Fiennes (que entre outros papéis interpreta o próprio Dahl em todos os curtas), Benedict Cumberbatch, Rupert Friend, Dev Patel, Ben Kingsley e Richard Ayoade. Os atores se revezam em diferentes papéis nos quatro curtas. Todos executados primorosa e intensamente, em especial Cumberbatch e Kinsgley em Veneno e Henry Sugar.

Em seu estilo único e inconfundível, Wes Anderson cumpre de novo a tarefa de nos apresentar contos (não tão) modernos, sobre personalidades triviais que realizam feitos fantásticos. Existe a possibilidade de uma análise profunda, assim como a leveza de um humor quase inocente, o que faz dos filmes dele um deleite para todas as idades – um feito raro nos dias atuais. A tetralogia de curtas é essencial para os fãs e também uma agradável descoberta para os novatos que recém adentraram o mundo maravilhoso de Anderson.

O Cisne

Movies

Disco Boy

Drama europeu que encantou o Festival de Berlim traz uma trilha sonora eletrônica catártica casada a uma belíssima fotografia

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Além da Mostra Competitiva Brasileira, que estreou esse ano na intenção de valorizar a produção local, o 12° Olhar de Cinema contou com uma robusta seleção de lançamentos em sua Competitiva Internacional. Um deles, talvez o mais aguardado pelo público de Curitiba, foi Disco Boy (França/Itália/Bélgica/Polônia, 2023 – Pandora Filmes), drama que lotou salas no Cineplex Novo Batel e encantou o Festival Internacional de Berlim, a icônica Berlinale.

Na trama, Aleksei (Franz Rogowski) é um bielorrusso que aproveita uma partida de futebol para conseguir acesso à União Europeia e, junto de seu amigo Mikhail, planeja viajar clandestinamente para a França e entrar para a Legião Estrangeira. Lar de imigrantes de todo o mundo, essa divisão do exército francês garante moradia, emprego e até mesmo um novo nome aos seus legionários. Uma chance de recomeçar a vida. 

Em paralelo, no delta do Rio Niger, Jomo (Morr Ndiaye) é o líder de um grupo de resistência à exploração petrolífera na região de seu vilarejo, o MEND. Dotados de uma mística heterocromia, com um olho profundamente escuro e o outro num tom de âmbar, ele e sua irmã Udoka (Laetitia Ky) são figuras particulares em sua comunidade, e dançam juntos uma coreografia misteriosa e ritualística. No entanto, quando o grupo de Jomo sequestra um barco francês, o agora soldado Alex Dupont, novo nome de Aleksei, lidera um esquadrão de resgate que termina por unir os dois protagonistas em uma conexão espiritual obscura. 

Este longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, que esteve presente nas duas sessões do filme em Curitiba, tece uma trama propositalmente elíptica e calada. É preciso falar muito pouco e, como o nome pode aludir, a música eletrônica sequestra o ambiente sonoro com muita frequência e intenção. Junto à belíssima fotografia de Hélène Louvart, vencedora do Urso de Prata de Berlim por este trabalho, as composições originais do produtor francês Vitalic criam um ambiente opressivo e ao mesmo tempo catártico, que imerge todo o filme em uma profunda expressão do conflito e do suspense que o embebe. Disco Boy é, além de um drama, uma experiência sensorial audiovisual instigante.

Se, por um lado, a música não nos deixa respirar fora de tempo, acompanhando a pressão crescente na cabeça de Alex, é a fotografia de Louvart que aclimata a obra e lhe dota de texturas incríveis a cada momento. A frieza europeia é contrastada pelos cenários de devastação ambiental na Nigéria, um mundo destruído cujo delta é lar da sequência mais gutural e criativa vista no festival até então. Em meio à operação, tomamos a vista dos soldados e acompanhamos um conflito intenso por meio de uma câmera térmica. Os corpos quentes se escondem mergulhando nas frias águas do rio, e o resultado é surpreendente.

De volta à França, Alex lentamente perde a cabeça, abrindo um espaço cada vez maior para sua relação transcendental com Jomo e sua irmã, que reaparece em Paris para um clímax memorável. A atração magnética de Alex e o casal de irmãos nigerianos se resolve em uma sequência de eventos que escancaram a contradição do âmago de seu protagonista, interpretado com uma robustez e contenção belíssimas de Rogowski. Um homem quebrado com um passado traumático, sua personalidade ameaçadora o faz a personagem perfeita para a jornada que Disco Boy propõe, amparada pela subjetividade da pulsão contemporânea da música eletrônica.

Aleksei esperava abandonar seu passado e virar francês “pelo sangue derramado”, como clama a poesia escrita nas paredes de seu quartel, mas os eventos traumáticos no continente africano o tornaram algo completamente distinto e inesperado. A conclusão dessa transformação, embora não muito oclusa, merece ser descoberta por cada espectador envolvido pela obra.

Music

Lulu Santos – ao vivo

Show realizado no dia do aniversário de 70 anos do artista mostra erros e acertos e dá início à nova turnê Barítono

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo showBarítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.

Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável?  Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.

Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.

De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.

No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).

Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.

Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”,  “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”,  “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”,  “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.

Movies

Meu Policial

Harry Styles encabeça elenco de triângulo amoroso que enfrenta o tabu dos relacionamentos gays que havia até 1967 no Reino Unido 

Texto por Taís Zago

Foto: Amazon Prime/Divulgação

Filme dirigido por Michael Grandage, Meu Policial (My Policeman, Reino Unido/EUA, 2022 – Amazon Prime) é baseado no romance de Bethan Roberts publicado em 2012, que, por sua vez, foi, fortemente influenciado pela história real do relacionamento de 40 anos entre o autor britânico EM Forster e um policial casado chamado Robert Buckingham. O triângulo amoroso entre Forster, Buckingham e sua esposa May, uma enfermeira, inspirou tanto a obra de Roberts que fica difícil separar a realidade da ficção. Pessoalmente, acho que o certo seria até mesmo categorizar a obra como semibiográfica – claro que sem tirar o mérito criativo de Roberts no processo.  O roteiro ficou a cargo de Ron Nyswaner, que, assim como Grandage, tem uma forte queda por dramas de época.

Em O Mestre dos Gênios (2016), Grandage já havia abordado o tema dos tabus sociais britânicos em torno de relações homossexuais. Até 1967, a homossexualidade era considerada crime no Reino Unido: os grupos LGBT+ eram alvo de verdadeiras caças às bruxas, com penas de prisão severas e desproporcionais, além de assédio, ataques violentos e maus tratos mesmo sob a tutela do Estado.

Meu Policial começa em uma Brighton dos anos 1990, com a chegada de Patrick (Rupert Everett) à casa de seus amigos Marion (Gina McKee) e Tom (Linus Roache). Patrick se recupera de um AVC que o deixou praticamente incomunicável e sem autonomia. Por isso, Marion decide assumir os cuidados com sua saúde, aparentemente, a contragosto de Tom. O clima entre os três não poderia ser mais gélido e protocolar. Tom nem sequer aparece para receber Patrick: ele passa seus dias fora de casa passeando com o cachorro na praia. Ao ler antigos diários de Patrick, Marion começa a relembrar o passado doloroso que envolve os três. É nessa hora que voltamos no tempo para 1957, quando Patrick conhece Tom e Tom se envolve com ele e com Marion, criando um triângulo amoroso cheio de mentiras e ressentimentos.

O jovem Tom é interpretado por Harry Styles, em sua segunda atuação em 2022 como protagonista. O papel de Marion é incorporado por Emma Corrin e David Dawson faz o jovem Patrick. Corrin e Dawson são espetaculares, mesmo nos pequenos detalhes de suas atuações – um olhar, um gesto, uma lágrima nos comunicam mundos inteiros de sentimentos encapsulados pelas palavras. Isso, novamente, não favorece Styles. Apesar de sua aparente entrega a esse papel, o cantor pop ainda não consegue atingir o nível de excelência dos seus coprotagonistas.

Harry já estreia em papeis importantes no cinema rodeado de excelentes atores, produções milionárias e um assédio midiático contínuo. Para ser possível se sobressair nessas circunstâncias, teria de ser um talento nato, muito acima da média. Não é o que ocorre. Principalmente nas cenas com mais diálogos, a sua inexperiência fica evidente, e, por fim, acaba prejudicando o resultado final. Corrin, entretanto, é excepcional como Marion. Sentimos na personagem todo o desgosto, o recalque e o sofrimento de quem não desiste de lutar por uma batalha perdida. Dawson, por sua vez, entrega um Patrick comovente, resignado aos limites do seu amor proibido por Tom.

Visualmente opulento, Meu Policial peca na montagem. Os flashbacks frequentes entre os anos 1950 e 1990 acabam por se tornar um banho de água fria. Quando começamos a nos envolver de verdade no drama do passado, o “presente” dos personagens surge nos inundando com uma monotonia desnecessária. Enquanto em 1958 o trio vive intensamente, em 1990 as cenas se repetem – Tom passeia na praia, Marion fuma olhando pela janela e Patrick segue imóvel (por questões óbvias). Bastaria apenas iniciar e encerrar o filme com os desdobramentos do presente e deixar todo o miolo para o drama do passado, para que a dinâmica mudasse completamente e a monotonia fosse em boa parte espantada dessa produção.

Outra questão muito levantada pela crítica e pelo público (principalmente LGBTQIA+) é a necessidade, de mais uma vez, contar a história macabra dos maus tratos, preconceitos e finais trágicos dos relacionamentos amorosos homossexuais de outrora. Um assunto já bastante abordado em diversas produções das últimas décadas. Por outro lado, me pergunto: existem limites para relembrarmos o passado como um cautionary tale daquilo que não queremos que se repita no presente ou no futuro? Pessoalmente, acho que não.

A questão aqui, entretanto, seria mais a qualidade do resultado do que a repetição do tema. Meu Policial falha, principalmente com Styles, no quesito credibilidade e profundidade, mas acerta no objetivo de nos levar a refletir, mais uma vez, sobre injustiça e preconceito. Por fim, vale acrescentar: o triângulo real de Forster, Buckingham e May não teve um final tão trágico quanto o das suas representações nesta película.

>> Leia aqui a resenha de Não se Preocupe, Querida, o outro filme protagonizado por Harry Styles em 2022

>> Leia aqui oito motivos para não perder um dos concertos da turnê de Harry Styles, que passa pelo Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba) neste início de dezembro