Um relato próximo de quem conheceu a banda de perto e se tornou amigo do guitarrista Geordie Walker, cuja “harpa dourada” silenciou para sempre
Youth, Coleman, Ferguson e Walker: o Killing Joke em 2022
Texto por Guto Diaz
Fotos: Divulgação (banda) e Guto Diaz (banda ao vivo e selfie com Geordie)
No último dia 26 de novembro, um domingo, às 6h30 da manhã, a “harpa dourada” silenciou para sempre. Kevin “Geordie” Walker, guitarrista e um dos fundadores do grupo pós-punk britânico Killing Joke, faleceu em sua casa, na cidade tcheca de Praga. Ele tinha 64 anos e sofreu um AVC.
Walker nasceu dia 18 de dezembro de 1958, em Chester-le-Street, distrito de Durham, no nordeste de Inglaterra. Quando tinha 14 anos, a família mudou-se para o distrito de Bletchley, em Buckinghamshire. Foi nessa época que ele adquiriu o apelido Geordie, devido ao forte sotaque do norte. Desde cedo mostrou uma obsessão pela guitarra. Fechava-se no seu quarto, após a escola, para praticar durante longas horas. Foi para Londres para estudar arquitetura e tornou-se membro fundador do Killing Joke quando respondeu a um anúncio enigmático colocado pelo cantor Jaz Coleman e pelo baterista Big Paul Ferguson na edição da Melody Maker de 24 de fevereiro de 1979.A dupla procurava por um guitarrista e um baixista. Esse anúncio trouxe, além de Walker, o baixista Martin “Youth” Glover. Com esta formação foi dado início às atividades do Killing Joke.
Seu estilo pouco ortodoxo, caracterizado por melodias angulares, harmonias dissonantes, experimentação e o jeito de tocar sem esforço e ao mesmo tempo produzindo um som monstruoso, tornou-se a pedra angular do Killing Joke e foi amplamente aclamado por nomes como Jimmy Page, James Hetfield e Dave Grohl. Esta sonoridade, muitas vezes descrita como “atmosférica” e “visceral”, foi alcançada através de uma combinação de pedais de efeitos, afinações não convencionais e a utilização de uma guitarra semiacustica, a Gibson ES-295 (carinhosamente chamada pelos fãs de “harpa dourada”), com uma afinação inteira num tom abaixo (DGCFAD), tornando a tensão do encordoamento mais confortável com o benefício adicional de deixar a guitarra mais pesada.
Este modelo Gibson ES-295, que se tornou seu instrumento principal a partir de 1982, desempenhou papel fundamental em todas as gravações subsequentes, até o último álbum, Pylon, lançado em 2015. A abordagem da guitarra de Walker era tão enigmática que influenciou artistas como Ministry, Faith No More, My Bloody Valentine, Metallica, Helmet, Prong, Nirvana, Soundgarden e, inclusive, meus projetos primal…, Secret Society e OUTONO, que misturam perfeitamente elementos de rock, industrial e música de vanguarda.
Geordie, Youth, Coleman e Ferguson: o Killing Joke em 1980
Meu primeiro contato com a música do Killing Joke foi na metade dos anos 1980, com os álbuns NightTime (1985) e Brighter Than A Thousand Suns (1986), que tiveram lançamentos em território nacional. Tudo mudou pra mim quando ouvi o álbum What’s This For! (1981) na casa da empresária da comunicação Moema Zuccherelli (na época empresária do meu grupo, o Epidemic). Desde então, eles se tornaram minha banda preferida, abrindo a mente para outras possibilidades sonoras, além do espectro do heavy e do thrash metal que eu escutava na época.
A primeira vez que assisti ao Killing Joke ao vivo foi nos dias 29 e 30 de setembro de 2008, em Bruxelas (Bélgica), na turnê de reunião da formação original. Foram diversos concertos pela Europa, com eles tocando duas vezes seguidas em cada cidade, executando na integra os álbuns Killing Joke (1980), What’s This For! (1982) e Pandemonium (1994), além de singles e lados B. Na primeira noite, encontrei pessoalmente diversos gatherers (nome dado à legião de fãs do quarteto espalhada pelo mundo). Eram pessoas que eu já conhecia através da internet e das antigas mailing lists. Após o show fui convidado para ir até um pub, onde eles iriam receber alguns fãs. Fui apresentado aos integrantes. Todos foram extremanente cordiais comigo. Ficaram admirados por eu ter saído do Brasil só para vê-los. Tiramos fotos juntos e fui convidado para, no dia seguinte, assistir à passagem de som. Daí em diante criou-se uma relação muito bacana entre nós. Nos anos seguintes segui trocando mensagens com eles por e-mail, inclusive mostrando alguns de meus trabalhos musicais.
Em 2018 a banda anunciou sua primeira turnê pela america latina, com passagens pelo México, Peru, Chile, Argentina e Brasil. Fui a dois shows (São Paulo e Buenos Aires) e dessa vez eu que recebi e acompanhei alguns gatherers no Brasil, levei eles em uma churrascaria e bares em São Paulo. Viajamos juntos e ficamos hospedados nos mesmos hotéis. Eu tive acesso livre às passagens de som e ao camarim, ganhei presentes da banda e passei momentos inesquecíveis junto dos meus ídolos. Passeamos de taxi por Buenos Aires, fomos a uma churrascaria típica argentina, participei de festas no hotel após as apresentações, com queijos e vinhos – uma certa tradição no universo Killing Joke.
Mas o grande momento de todos foi quando Jaz Coleman nos convidou para ouvir com exclusividade em seu quarto de hotel, ao novo álbum Magna Invocatio, com releituras orquestradas de músicas do Killing Joke e gravado com a Filarmônica de São Petersburgo, que estava prestes a ser lançado. Foi uma experiência surreal: todos em silencio, ouvindo com atenção, enquanto o vocalista, de olhos fechados, regia a obra com batutas imaginárias. Após a audição, Jaz fez questão de saber a opinião de todos que lá estavam (éramos em quatro pessoas: os britânicos David “Diamond Dave” Simpson e David Molyneux, o francês Stephane “Frenchy Frenzy” Bongini e eu).
>> Leia na íntegra este diário de bordo de 2018 com o Killing Joke clicando aqui
Guto Diaz e Geordie Walker
Em 2022 o quarteto anunciou uma pequena turnê de cinco shows, Follow The Leaders, que aconteceria em março de 2023 na Inglaterra, culminando num grande evento no Royal Albert Hall. Entrei em contato com meus amigos Molyneux e Bongini e contei que estava seriamente pensando em ir. Eles me disseram que, caso eu fosse mesmo, haveria algumas surpresas: eu só precisaria garantir a minha ida até Londres. Dia 6 daquele mês embarquei em mais uma incursão para assistir ao Killing Joke. Quando cheguei à capital inglesa, David e Stephane estavam me aguardando no aeroporto de Heathrow para darmos início à nossa aventura. Fomos de carro e acompanhamos três warm up gigs: dia 7 de março em Colchester, 9 em Londres (onde o Killing Joke se apresentou pela primeira vez no mítico 100 Club), 10 em Wolverhampton. Depois, finalmente o grandioso evento no Royal Abert Hall, dia 12, novamente em Londres.
Nesses quatro dias eu tive acesso geral a tudo. Assisti a todas as passagens de som, podendo acompanhar de perto o processo de montagem de equipamento e o soundcheck. Permitiram o acesso aos camarins antes e após os concertos. Foi simplesmente inacreditável. Na primeira noite após o show em Colchester, enquanto acontecia a famosa festa dos queijos e vinhos, pude conversar bastante com eles e com a equipe. É claro que dessa vez fui preparado, com presentes para cada um. Levei duas garrafas de cachaça, uma para Geordie e outra para Big Paul; uma caixa de charutos especiais brasileiros para Jaz e discos para Youth (Da Lama Ao Caos, do Chico Science e Nação Zumbi; A É Concavo B É Convexo, dos curitibanos do ruído/mm; e Realce, de Gilberto Gil).
No dia seguinte, voltamos para Londres para o show no 100 Club. Esta é uma casa de shows icônica e minúscula, localizada no porão de um prédio na Oxford Street, no centro de Londres (lembra o antigo 92 Graus, em Curitiba). Pelo 100 Club já passaram grandes nomes do jazz e artistas como Muddy Waters, Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Oasis, Blur. Lá também foi onde Siouxsie & The Banshees fizeram sua estreia nos palcos. O show do Killing Joke foi catártico. O lugar é pequeno e estreito. O público fica praticamente esprimido entre a parede e o pequeno palco. A banda foi sublime nesta noite. Eles tocaram visceralmente e num volume extremamente alto. O local parecia um caldeirão de tão quente.
No dia seguinte marcamos de nos encontrar bem cedo em frente ao hotel, porque teríamos de dirigir alguns bons quilômetros de Londres até Wolverhampton, que fica ao norte, próximo a Birmigham. Logo que desci encontrei com Stephane que me disse: “tenho uma surpresa para você hoje, aguarde”. A surpresa era que levariamos o guitarrista Geordie conosco no carro até Wolverhampton, pois ele não queria ir no ônibus de turnê, junto com a banda e a equipe. Foi uma das experiências mais surreais da minha vida viajar no mesmo carro ao lado do meu maior ídolo. Antes da partida, quando nos encontramos, Walker agradeceu novamente a cachaça e confessou ter dado um talagaço logo cedo. Daí ensinei a ele a receita da clássica caipirinha brasileira. Durante a viagem, as conversas foram bem triviais: família, cigarros, café, esportes, pescaria (um hobby dele!). É claro que Geordie também contou algumas histórias da estrada com o Killing Joke. Chegando em Wolverhampton, a gig foi no KK’s Steel Mill, casa de shows do guitarrista do Judas Priest, com grande porte e uma estrutura impecável. Mais uma vez eles entregaram uma performance arrebatadora. Voltamos na madrugada, de carro, mas desta vez Geordie veio dormindo por todo o trajeto.
Killing Joke ao vivo durante sua última turnê, em março de 2023
Finalmente chegou o grande dia, 12 de março de 2023. O Killing Joke faria uma apresentação sold out no emblemático Royal Albert Hall, teatro para mais de cinco mil pessoas inaugurado em 1871. O lugar é simplesmente magnífico. Faltam palavras pra descrever a sua beleza e opulência. Acompanhei a passagem de som inteira e os preparativos para a gravação (a noite foi registrada para um futuro álbum ao vivo) e depois fui convidado a ficar com eles nos camarins. Caminhar pelos corredores do Royal Albert Hall foi uma experiência incrível. Um pouco antes do início do show me dirigi até a plateia, pois eu queria assistir a tudo de frente. A apresentação foi magnífica. Eles entregaram toda sua fúria e intensidade de modo sublime. Logo depois teve uma festa só para convidados dentro dos bares do Royal Albert Hall, salões de uma beleza indescritível. Conheci ali inúmeras pessoas de diversos lugares do mundo e me diverti muito. Estava ainda em êxtase, absorvendo tudo que tinha acontecido em menos de uma semana.
Em todos os quatro shows em que estive presente tive a oportunidade de rever algumas pessoas que já havia encontrado em Bruxelas em 2008 e também conhecer pessoalmente uma infinidade de outros fãs dos quatro cantos do mundo – alguns que já conhecia pelas redes sociais e outros a quem fui apresentado pela primeira vez. Essa é uma das coisa mais legais sobre os gatherers: eles fazem você se sentir como se fosse parte de uma grande família, uma congregação de fãs com a mesma paixão e admiração pelo Killing Joke.
Como tudo tem um fim, chegou a hora de ir embora. No dia seguinte me de despedi de meus amigos e retornei ao Brasil. Quando entrei na sala de espera do aeroporto, inesperadamente, a última pessoa que encontrei antes de embarcar foi o Geordie (que estava voltando para Praga!). Conversamos brevemente e na hora do adeus ele me disse “safe travels”.
Quem poderia imaginar que menos de nove meses depois ele estaria deixando este plano? Agora é minha vez de dizer adeus e desejar “safe travels, my friend”. Escrevendo esse relato estou tomado de uma imemsa tristeza, como se tivesse perdido um irmão ou um amigo muito próximo. Obrigado por sua obra, inspiração e todo legado que deixou. Você nunca será esquecido. Honor The Fire! Absent Friends Shall Live By Love!
Geordie era de longe o mais quieto e o membro mais difícil de se conhecer do Killing Joke. Sempre ficava no seu canto sem chamar a atenção, evitava dar entrevistas e não era muito receptivo às súplicas febris de fãs. Apesar disso, nunca se comportava como uma celebridade ou uma estrela do rock. Assim que se quebrava essa barreira inicial, ele se mostrava uma pessoa extraordinária. Um componente integral e insubstituível do som característico da banda na qual ele tocou continuamente por mais de 46 anos.
Ouso dizer que sem ele este é o fim de uma era chamada Killing Joke.