A noite é a do tipo “fadada a recordações”, diria o velho homem da imprensa, e o momento especial não poderia ser outro, mesmo porque é único. Sim, só aconteceria mesmo no Brasil (só no Rio?), onde a dobradinha de canções, que passaria batida em todo o mundo aqui tem um significado realmente especial e precisa ser tocada. Tem que por no contrato que tem que ser assim. Por isso, quando os primeiros acordes da primeira música aparecem, o público vem abaixo, piração total. E quando a segunda vem quase emendada, aí a loucura é generalizada. É assim que o excelente público que encheu o Metropolitan (ops, Qualistage), reage no auge do show do Hoodoo Gurus, na sexta 14 de março, no Rio de Janeiro.
Explica-se que tanto “Out That Door” – a primeira – quanto “What’s My Scene” – a segunda – cederam trechos para vinhetas para a programação da Rádio Fluminense FM, que marcou fortemente a derradeira passagem da emissora de Niterói pelo dial na primeira metade da década de 1990. Ou seja, motivo de emoção e saudades de um tempo marcante de verdade. Era a época em que a rádio cobria competições de surfe e as músicas que os surfistas brasileiros ouviam quando iam competir na Austrália rodavam forte na programação, ganhando a pecha de surf music, sem ter nada a ver com o subgênero criado por Dick Dale, Beach Boys e afins. A coisa cresceu tanto que todas essas bandas (parte da new wave/pós-punk/rock australiano oitentista) fizeram turnês concorridas nos anos subsequentes por aqui. A do Hoodoo Gurus, em 1997, por exemplo, lotou duas noites seguidas deste mesmo Metropolitan.
Dito isso – saudosismo uma ova! – o fato é que nesse meio tempão a banda acabou, voltou com discos pouco ouvidos e agora está na turnê do novo álbum, o bom Chariot Of The Gods, que saiu no ano passado. Dele são apresentadas quatro faixas: as boas “World Of Pain”, que abre a noite, e “Equinox”, “uma canção sobre boa sorte”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd; e as nem tão legais assim “Chariot Of The Gods”, a faixa-título, e “Answered Prayers”, que emula Echo & The Bunnymen e não esconde as origens 1980s da banda. Uma pena terem ficado de fora, desse disco novo, três das melhores músicas: “Get Out Of Dodge”, “My Imaginary Friend” e “Carry On”, dotada de um refrãozaço daqueles (procure saber!).
Montar set list, veremos, não chega a ser uma virtude desses aussies. Mas compor música boa, sim, e, vamos e venhamos, em mais de 40 anos de estrada, há um bocado delas pro público cantar do início ao fim. Caso de, por exemplo, “If Only…”, da época em que a banda circulou por aqui, com Dave Faulkner (vocal e guitarra) colocando a massa pra cantar; “Come Any Time”, na abertura do bis; e da deliciosamente pop colante “I Want You Back”. Além de Faulkner e Shepherd, estão na formação o baixista Richard Grossman, completando a trinca remanescente dos shows noventistas por aqui, e o batera Nik Rieth, novo na turma, mas cascudaço. É evidente em todo o show a performance bem ajustada do quarteto e os fabulosos backing vocals de Grossman e Brad Shepherd, inclusive nas músicas do disco novo, que se completam com a voz de Dave Faulkner – este, a propósito, com o falsete em dia.
O show só engrena da metade para o final, o que se explica, de certo modo, pela escolha do repertório. Músicas como “Tojo” e “Poison Pen”, por exemplo, poderiam tranquilamente ser limadas, e não é porque “Leilani” é a primeira música composta pela banda que tem que ser tocada em todos os shows. De outro lado, que falta fazem temas como “A Place In The Sun”, “Down On Me” e “In The Middle Of The Land”, só para citar três das grandes ausências. O que não invalida momentos lindos com em “Castles In The Air” e “1000 Miles Away”, no bis, além da piração total da dobradinha “Out That Door” e “What’s My Scene”, citada lá em cima. O que, no fim das contas, faz dessa passagem do Hoodoo Gurus pelo Rio uma noite e tanto. Que voltem sempre que tiverem um novo álbum pra mostrar!
Na abertura, a banda cover VAAR Surf Band comandou um bailão daqueles. O grupo parece especializado em tocar as músicas das bandas oitentistas australianas – a tal da surf music australiana, vá lá. E aí é um Gang Gajang aqui, um Midnight Oil acolá e outro Spy Vs Spy, tudo hit que todo mundo conhece e curte o tempo todo. O bom é que o quarteto se garante no palco e se esforça para tocar tudo igualzinho às versões originais, a ponto de o vocalista se dividir entre violão, harmônica e até um trompete. O ruim é a execução no final de um inacreditável medley que incluiu Red Hot Chili Peppers e REM juntos! Mas que animou a turma, isso animou.
Set list: “World Of Pain”, “Another World”, “The Right Time”, “The Other Side Of Paradise”, “I Was The One”, “Leilani”, “Answered Prayers”, “Night Must Fall”, “Tojo”, “If Only…”, “Chariot Of The Gods”, “I Want You Back”, “Poison Pen”, “Equinox”, “Castles In The Air”, “Out That Door”, “What’s My Scene”, “Bittersweet” e “I Was a Kamikaze Pilot”. Bis: “Come Anytime”, “1000 Miles Away” e “Like Wow – Wipeout”
Série sobre a história de uma banda fictícia inspirada no Fleetwood Mac dos anos 1970 mistura ficção e sentimentos reais de forma mesmerizante
Texto por Taís Zago
Foto: Amazon Prime/Divulgação
Histórias de bandas fictícias/montadas por um casting em forma (ou não) de mockumentary – suposto documentário ficcional cheio de fatos falsos e/ou deboche – ou narradas em voice over por jornalistas e integrantes não é, de maneira alguma, novidade no universo cinematográfico. Tudo iniciou como formato musical com o fake documentário A Hard Day’s Night (1964) dos Beatles, que acabou inspirando o surgimento dosMonkees logo depois e ganhou força no final da década com musicais como Tommy (1969), da banda real The Who, e Spinal Tap (1984), tendo nova força nos anos 1990-2000 com obras mais dramáticas como Velvet Goldmine (1998), Quase Famosos (2000), Hedwig And The Angry Inch (2001) ou Dreamgirls (2006), para citar apenas alguns. A lista do estilo, portanto, é imensa. O que nos leva à pergunta: qual história ainda não foi contada?
A resposta é simples: nenhuma. Chegamos a um ponto onde arcos e enredos como pano de fundo de empreitadas musicais já se esgotaram. Adentramos, portanto, uma nova época. Uma época em que o importante não são mais as repetições de dramas, conflitos e situações engraçadas, mas sim o trabalho estético, o esmero dos atores e a riqueza dos diálogos. Assim chegamos no seriado de streaming que estreou em março chamado Daisy Jones & The Six (EUA, 2022 – Amazon Prime). O best-seller homônimo de 2019 da escritora Taylor Jenkins Reid, conta, em formato de entrevista com os envolvidos e membros da banda, as desavenças e os conflitos de mais um combo movido a sexo, drogas, soft rock e muito drama. Reid admitiu abertamente que a banda que a inspirou para o esqueleto do livro foi a mundialmente famosa Fleetwood Mac. O grupo subiu à apoteose musical ao vender mais de 40 milhões de cópias doálbum Rumours (1977) por todo o mundo, o 6º disco mais vendido nos anos 1970 e o 12º mais vendido de todos os tempos. Aos mitos e “rumores” envolvendo as conturbadas gravações do disco, viraram parte do folclore musical. O Fleetwood Macacabou se tornou sinônimo do estilo de vida rock’n’roll abastecido com entorpecentes, sofrimento e loucura. Os integrantes trabalhavam suas diferenças, amores e decepções em suas canções e o planeta assistia a tudo isso hipnotizado enquanto eles derramavam o conteúdo intenso de seus corações no palco em apresentações inesquecíveis até hoje.
Após ler o livro, pensei: tudo bem, trata-se aqui de mais um apanhado de clichês onde frontman e a frontwoman carregam a banda nas costas com sua relação conturbada. Pensei na hora, claro, em Stevie Nicks e Lindsey Buckingham; em Agnetha e Björn mais Benny e Anni-Frid, do Abba; em Ike e Tina Turner, ou em qualquer outro casal que trouxe a público suas desavenças e dores afetivas. Mas também vi o potencial cinematográfico de um enredo que sempre vai encontrar um nicho – a magia da liberdade conquistada nos anos 1970, a transgressão de valores conservadores, a atmosfera envolvente dos tempos pré e pós-hippie, um casal de protagonistas lindos, talentosos e extremamente carismáticos vivendo um amor torturado e nunca satisfatoriamente consumado. Era apenas uma questão de tempo até uma adaptação para as telas ser feita.
Os criadores Scott Neustadter e Michael H. Weber não perderam tempo, adaptaram o livro de Reid e chamaram James Ponsoldt (Master Of None) e Nzingha Stewart (Little Fires Everywhere) para assumir a direção da maioria dos dez episódios totais da série, que, adequadamente, recebem o título de tracks 1 a 10. Para o elenco, buscaram atores que sabiam tocar instrumentos e cantar – sim, isso faz uma diferença enorme quando assistimos a qualquer tipo de biopic (mesmo que fake) de algum artista musical. E aqui a escolha foi mais que acertada. Para o papel de Daisy, foi escolhida Riley Keough (Neta de Elvis, filha de Lisa Marie Presley). A atriz incorpora o papel de uma forma mesmerizante. Traz profundidade, complexidade e uma intensidade maior do que a Daisy do livro de Reid nos apresenta. Seu “par romântico” é interpretado pelo sensacional Sam Claflin, que também não nos deixa nada a desejar ao nos mostrar um Billy contraditório, por vezes estrito e sisudo e em outras completamente entregue à sua paixão pela música.
A química entre os dois atores é inegável e palpável. É ela a força-motriz por trás de todos os episódios da série. É um clássico embate de egos, um vai-vem de sedução e tortura emocional que nos mantém vidrados todas as vezes que aparecem em cena. Uma queda de braço entre os opostos que se atraem irresistivelmente e que precisam desesperadamente um do outro para trazer à flor da pele a genialidade das composições e interpretações da banda. Perto da dupla, compreensivelmente, o resto do elenco meio que desaparece, apesar de suas performances também serem bem fortes.
Entre os coadjuvantes temos Suki Waterhouse como a tecladista Karen, que, em certo momento, forma um par romântico com o irmão de Billy, o guitarrista Graham, interpretado por Will Harrison. Também uma apologia ao outro casal polêmico do Fleetwood Mac (John e Christine McVie). Nabiyah Be merece uma menção honrosa pelo papel de Simone Jackson, a melhor amiga de Daisy, uma dancing queen da era disco e suporte emocional da cantora. Apesar de seu personagem não aparecer em vários capítulos Timothy Olyphant está sensacional como Rod Reyes, tour manager da trupe, assim como Tom Wright, que interpreta Teddy Price, produtor dos The Six e figura paterna de Billy.
O elenco, que já tinha certa experiência musical, passou por uma preparação para seus papéis que durou um ano inteiro, ao final do qual se apresentaram para os executivos da série. O resultado superou em muito o esperado e Daisy Jones & The Six realmente se transformou em uma banda real. E isso é o ponto alto de uma produção que não nos traz muitas surpresas em suas reviravoltas. O caminho de ascensão-queda-autorreflexão da banda só se torna mais verossímil ao percebemos que nada ali foi dublado e nem fingido. Os sentimentos irradiados são os sentimentos reais dos atores, seus movimentos, seus trejeitos. Cada um criou sua persona no palco e isso funcionou espetacularmente, quando poderia ser apenas mediano.
Daisy Jones & The Six completa com louvor a tarefa de mimetizar a realidade ao misturar sentimentos reais e ficção de uma forma envolvente e convincente. É um grande banquete para olhos e para os ouvidos que volta e meia ainda divagam sobre os loucos anos 1970 e a exploração dos limites da liberdade.
Acordar com a notícia da morte de um gigante como Ivan Conti (Mamão) não é pra qualquer um. E foi exatamente o que aconteceu hoje, em meio a mensagens emocionadas de sua esposa Sandra e de sua gravadora, a Far Out Recordings, colocando-o como um dos maiores bateristas de todos os tempos. Não é exagero, visto que Mamão foi um dos arquitetos da fusão do samba-jazz com o funk e, a partir daí, com uma vastidão de possibilidades estéticas que vieram na segunda metade dos anos 1970. Até então, ele já fizera parte de vários conjuntos e, junto com Alex Malheiros e José Roberto Bertrami, integrava o Azymuth desde 1968. Cinco anos depois, a banda estrearia em disco com O Fabuloso Fittipaldi, acompanhando Marcos Valle.
Os músicos do Azymuth eram muito requisitados para tocar em álbuns de outros artistas, de Erasmo Carlos a Raul Seixas. Apesar do sucesso nacional que tiveram em 1975, quando “Linha do Horizonte” se tornou hit por conta da trilha sonora da novela Cuca Legal, o grupo demorou para ser reconhecido por aqui. Precisou chegar aos anos 1990 para que a cena dos clubes ingleses enxergasse o brilhantismo dos álbuns que a banda continuou a gravar durante as décadas de 1970 e 1980 para que o trio ganhasse notoriedade por lá e, num movimento “de fora pra dentro”, ser valorizado por aqui. O Azymuth vinha produzindo álbuns com regularidade nos últimos anos, mesmo após a morte de José Roberto Bertrami em 2012, tendo chamado Kiko Continentino para assumir suas funções. O próprio Mamão chegou a gravar, também pela Far Out Recordings, um belo álbum solo em 2019, chamado Poison Fruit, no qual seus companheiros de banda tocam todos os instrumentos.
No ano passado, o baterista participou do show de Marcelo D2 no festival MITA e se apresentou com sua banda aqui no país e lá fora. O Azymuth, agora, preparava-se para uma turnê mundial de comemoração dos 50 anos da banda. Faria um concerto no Blue Note de São Paulo no próximo dia 24 de abril.
Mamão era ótima praça, talentosíssimo e cheio de vida. Vai fazer falta aqui neste mundo cada vez menos povoados por seres como ele. Obrigado, meu caro.
Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal.
“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse.
Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas.
Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.
A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000.
Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.
Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.
Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.
E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas. Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê.
E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ.
De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”. Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida!
Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo.
Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.
Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio.
Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.
No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas.
Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)
***
A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.
O set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.
O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.
O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)
Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), “Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).
Segunda temporada da série que explora a aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante encanta os olhos
Texto por Taís Zago
Foto: HBO Max/DIvulgação
Eu preciso confessar para vocês que a primeira temporada de The White Lotus, vencedora de onze Emmys em 2022, à primeira vista, não me empolgou muito. O elenco é inegavelmente espetacular, em especial as atuações de Murray Bartlett como Armond (o gerente da filial havaiana da franquia de hotéis de luxo) e Jennifer Coolidge, como a insensível, autocentrada e deprimida milionária Tanya. O enredo sob o sol escaldante do Havaí, apesar de multifacetado, causou-me incômodo, talvez pela simplicidade dos seus temas. Possivelmente, também, eu não tenha levado em consideração que durante sua concepção e realização estávamos vivendo tempos pandêmicos – o auge da produção data de meados de 2021, e, dadas as condições e as restrições internacionais e sanitárias, foi feito um esforço para criar um conteúdo de qualidade da forma mais segura e rápida possível. O ator, autor, produtor e diretor Mike White, mais conhecido por ter escrito especialmente para Jack Black o blockbusterEscola de Rock (2003), conseguiu criar uma trama em um ambiente relativamente hermético – a cadeia White Lotus é uma espécie de Club Med do nouveau riche norte-americano – e unir de forma interessante drama e humor macabro com bastante equilíbrio.
Na segunda temporada de The White Lotus (EUA, 2022 – HBO Max), com maior liberdade tanto criativa quanto espacial, Mike nos leva para a sede siciliana da cadeia da flor exótica. Temos diante de nós uma nova equipe de funcionários locais trabalhando no hotel e novos hóspedes a serem paparicados sem restrições. O formato da série nos lembra uma versão Upstairs, Downstairs (1971) contemporânea – sucesso britânico da década de 1970 cujo formato televisivo influenciou várias produções, entre elas a festejada série Downtown Abbey (iniciada em 2010), onde os dramas da crew do hotel têm o mesmo peso na narrativa dos dramas dos privilegiados visitantes.
Como personagens recorrentes da primeira temporada temos apenas a confusa Tanya (Jennifer Coolidge) e seu “novo” marido Greg (Jon Gries). Tanya chega ao encantador resort com uma nova assistente a tiracolo, Portia (Haley Lu Richardson). Junto a ela no barco estão dois casais de jovens amigos milionários – Cam (Theo James) e a esposa Daphne (Meghann Fahy), Harper (Aubrey Plaza) e o marido Ethan (Will Sharpe), completando a trupe dos bem-sucedidos temos os Di Grasso – o pai Domenic (Michael Imperioli), o avô Bert (F. Murray Abraham) e o filho/neto Albie (Adam DiMarco). Na frente do comando dos funcionários do hotel fica a gerente italiana Valentina (Sabrina Impacciatore), que nessa temporada assume o papel que Bartlett interpretou na primeira temporada. Completam o elenco ainda as duas garotas de programa locais Luccia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò).
Mike White não nos economiza no quesito encontros e desencontros. O roteiro possui várias reviravoltas e requisita a nossa atenção aos detalhes, às vezes, escondidos nas próprias imagens paradisíacas e objetos luxuosos. Repetindo o formato da primeira temporada, iniciamos essa jornada com mais corpos sendo encontrados. Do primeiro capítulo, então, voltamos no tempo até a chegada dos turistas ao hotel onde percorremos todo o caminho de volta à cena inicial. Um formato que vagamente lembra a antiga série Ilha da Fantasia, onde os visitantes usam suas férias para trabalhar seus problemas pessoais, dificuldades de comunicação, mistérios e conflitos familiares que a rotina do dia a dia teimava em enterrar.
As atuações são um deleite à parte. Todos os atores italianos merecem aplausos de pé, principalmente Sabrina, Simona e Mia. A leveza e a pungência do humor desse país dão à segunda temporada exatamente o tempero exótico que faltou à antecessora. Gargalhamos do absurdo, assim como gargalhamos do desespero. Ao mesmo tempo nos comovemos e somos encantados por um charme tão natural e genuíno que pensamos que em Taormina, o pitoresco vilarejo siciliano, tudo é permitido.
Visualmente, The White Lotus é uma série de tirar o fôlego. A fotografia, a música, a ambientação, tudo nos leva a viajar pelo mundo do luxo dos resorts e dos cenários de nossos sonhos. É o olhar do turista e, portanto, também há um amontoado de clichês bem selecionados, como um catálogo de uma agência de viagens. A Sicília nos é mostrada pelos olhos encantados dos norte-americanos – com vulcão, praias de água turquesa, palazzos decadentes cobertos de ouro e pinturas renascentistas, vinhedos e ilhas rochosas cheias de mistério. White também não poupou recursos para nos alimentar os olhos. Por outro lado, também não economiza recursos ao esfregar na nossa cara a amargura, a feiúra e a traição latentes no âmago de seus personagens. De novo, não existem aqui mocinhos e bandidos: existem pessoas que ora nos encantam ora nos causam repulsa com suas atitudes. E nós, de uma distância segura, rimos muito de tudo isso.
Em uma entrevista recente, o criador explicou que o tema da primeira temporada no Havaí foi o amor, o da segunda na Sicília foi o sexo e que o da terceira será a espiritualidade. Com isso, já nos deixa na expectativa de qual paraíso desse mundo será o novo destino e na certeza da confirmação da produção da próxima aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante.