Obra francesa sobre um amor intenso entre duas mulheres é um primoroso exemplo de como o cinema pode emocionar
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Supo Mungam/Divulgação
Há alguns meses, a declaração de Martin Scorsese diferenciando o cinema “arte” dos filmes “parque de diversões” rendeu fervorosos debates, angariando defensores dos dois lados da pergunta “filmes tais como os da Marvel são cinema?”. Em Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu, França, 2019 – Supo Mungam), temos um exemplo perfeito do que Scorsese quis dizer com sua distinção.
Dirigido e escrito por Céline Sciamma, o longa retrata a jornada de Marianne (interpretada por Noémie Merlant), uma pintora contratada para fazer um retrato de Heloise (Adèlie Haenel), que, prometida a um cavaleiro milanês, não deseja ser pintada. Portanto, Marianne é instruída a agir como sua acompanhante, pintando sua senhora em segredo ao longo de seis dias. A premissa, simples, abre espaço para o desenvolvimento silencioso de suas três personagens principais, as já citadas e a jovem Sophie (Luàna Bajrami), criada da mansão de Heloise. As três desenvolvem amizade e confiança inabaláveis ao longo destes dias, que inevitavelmente se transforma em amor entre Marianne e Heloise.
Amor, não paixão, como Sciamma deixa perfeitamente claro no decorrer do desenvolvimento da trama e de sua linguagem enquanto diretora. A câmera é calma, estática por vezes, mas movimentando-se de acordo com suas personagens. Terna, ela opta por closes não muito fechados, mas de modo suficiente para isolar as reações formidáveis do elenco. Com diálogos típicos da frieza europeia, cabe a Merlant e Haenel transmitir todo o mar de emoções pelas quais passam com o olhar e a linguagem corporal – o que fazem de maneira exemplar. Vemos como o desejo se estabelece e, lentamente, torna-se paixão e, então, um amor capaz de durar toda a vida das mulheres. E, numa demonstração do talento de Sciamma, a sensibilidade com a qual Retrato de uma Jovem em Chamas o faz é primorosa.
Grande parte do subtexto da obra pode ser enxergada em torno da arte, seja ela a pintura de Marianne ou a música, diegética ou não. É por meio daquilo que está implícito e, principalmente, pela elipse, que a direção e a montagem alçam o filme para uma densidade tremenda, muito maior que o mero romance. A condução de Sciamma (uma mulher lésbica) de um relacionamento lésbico que deve permanecer em segredo é emocionante, sem se manter superficial, muito menos correr atrás do sexo explícito fetichista que, para muitos, seria a saída fácil – vide a trajetória abusiva de Abdellatif Kechiche (Azul é a Cor mais Quente e Mektoub My Love).
O ritmo da montagem assinada por Julien Lacheray é tão calmo e espaçoso quanto a direção do longa, o que permite que a condução das cenas seja feita pelo simples olhar das atrizes. Ainda, há momentos onde a necessidade (dada puramente por convenção) do corte é sentida, mas Lacheray insiste em segurar o plano, amplificando o poder de toda a linguagem de Sciamma e desenvolvendo uma coesão não somente narrativa, mas artística entre começo, meio e fim de uma história tão bela, porém tão triste. Há dois momentos que, logo que acontecem, causam um estranhamento pelo descolamento estético com o resto do filme, mas que se pagam ao final, numa das últimas cenas da obra, que introduz o sentido que faltava a tal escolha.
Retrato de uma Jovem em Chamas é um exemplo primoroso de como o cinema tem capacidade emocional e artística por muitas vezes desperdiçada para dar lugar a Velozes e Furiosos 47, Transformers 12 e a vigésima história de origem de um super-herói nos cinemas. Sem pretender demais e paralelamente, alcançando muito, esta obra se desenvolve em um romance belíssimo, acalentador, para transformar-se num balde de água fria, carregando consigo as marcas de um amor proibido, intenso e perene. Digo isso, é claro, sem spoiler algum.