Comédia sci-fi com onze indicações ao Oscar é uma experiência absurdamente psicodélica e reflexiva sobre o sentido da vida
Texto por Taís Zago
Foto: Diamond/Divulgação
Infelizmente não consegui assistir a esta maravilha na grande tela do cinema quando estreou em junho de 2022 no Brasil. Depois demorei até encontrar o filme para assistir em algum canal de streaming e quase por acaso, quando já tinha até esquecido, acabei topando com ele num canal de streaming. Nisso, sem ter planejado, fui sugada com força total para dentro nessa experiência incrivelmente psicodélica e frenética.
Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (Everything, Everywhere, All At Once, EUA, 2022 – Diamond) tem o enredo mais simples e igualmente mais complexo que existe – relações familiares. O cotidiano dos imigrantes chineses Evelyn (Michelle Yeoh) e Waymond (Ke Huy Quan) – um casal dono de uma lavanderia e com encrencas com o imposto de renda – e da filha deles Joy (Stephanie Hsu) – uma garota lidando com sua identidade sexual e objetivos futuros – acaba virando uma bagunça quando Evelyn começa a ser confrontada com diversas realidades paralelas em distintos universos que, materialmente, representam as inúmeras formas como poderia ter sido sua vida caso tomasse diferentes decisões e atitudes em dados momentos.
Do nada, um Waymond, como que estranhamente carregado por um comando no corpo de seu marido, aparece de uma outra dessas realidades, a aborda e fala, entre outras coisas, que ela está sendo (ou provavelmente será) perseguida por uma entidade chamada Jobu Tupaki. A partir daí e com instruções no mínimo bizarras dadas pelo seu marido “alternativo”, Evelyn começa a viver em uma espécie de sonho lúcido com flashes de todas as suas personalidades e vidas possíveis dentro de um metaverso interminável e constantemente em movimento que muito se assemelha a um videogame. E nele é possível desbloquear poderes especiais ao resolver tarefas estapafúrdias e irracionais como cortar os próprios dedos com papel ou engolir objetos inanimados.
A obra escrita e dirigida pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert é uma viagem quase inexplicável e incompreensível de imagens, referências e estilos de representação visual casando elementos bizarros, assustadores, comoventes e hilários em um quebra-cabeça no qual parecem faltar muitas peças. Os Daniels elevam o gênero sci-fi comedy a um novo nível de criatividade. Somos bombardeados com mais imagens do que nosso cérebro consegue assimilar (mais um motivo para rever o filme várias vezes!) em uma carambolage de eventos e vidas paralelas dos personagens que, a princípio, não faz o menor sentido, mas que com o passar do tempo adquire um sentido profundamente filosófico sobre o significado da vida, sobre o que é importante e sobre a nossa insignificância diante do todo em que estamos inseridos como pequenos personagens de um teatro com milhares de possibilidade de finais distintos.
Michelle e Stephanie fazem um trabalho fenomenal ao destrincharem suas diferenças em esferas muito superiores à realidade material. E mesmo assim, no final da jornada, elas são uma mãe e uma filha, no centro de tudo, convergindo a um ponto comum está o amor que elas nutrem uma pela outra. Amor esse que por vezes machuca, gera desconforto, raiva, ressentimento, mas que também é calcado em uma inabalável força que as atrai, uma em direção à outra, como um imenso imã existencial. Para completar o deleite no elenco, ainda temos Jamie Lee Curtis no papel da Deirdre, a vilã/funcionária pública/parceira de Evelyn. Os constantes encontros entre as duas são deliciosos e hilários, Michelle e Jamie mostram toda a sua versatilidade.
A beleza estética e o apuro técnico de Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo são absurdos. Dan e Daniel dominam, de uma forma espetacular, a transposição das suas visões em imagens. Um trabalho minucioso, rebuscado e quase obcecado que chega aos mínimos detalhes. A obra, produzida pelo estúdio A24, famoso pelos seus filmes art house, combina cenas de stop motion e animação digital com entregas viscerais dos atores. No turbilhão das cenas pensei em milhares de coisas, pensei em séries psicodélicas como Legion e The Umbrella Academy da mesma forma que senti o romantismo desiludido de um filme de Wong Kar-Wai.
Mas entre todas as reflexões que essa obra que abocanhou onze indicações para o Oscar 2023 me causou teve uma, a mais forte e que talvez não seja tão clara à primeira vista: ela me fez pensar no conceito de que podemos (e vivemos) diversas vidas onde os mesmos personagens estão presentes e atuantes em papéis diferentes, em diferentes universos ou, para os mais iluminados, épocas. Um tom de espiritualidade transcendental, digital ou de alteração da consciência, como uma cereja nesse bolo deliciosamente multicolorido.
Sem fôlego e sem voz, um megacaricato Axl é carregado nas costas pelos colegas de banda para evitar constrangimento ainda maior no palco
Texto por Iná Hernandez
Foto: Multishow/Reprodução
REM, Rush, Daft Punk são alguns dos exemplos de bandas que poderiam continuar na ativa mas resolveram se aposentar. O Kiss também roda o mundo com a derradeira turnê. Aliás, até o Coldplay, que está no auge da carreira, atraindo um público gigantesco show após show, também divulgou que dará um tempo depois dessa megaturnê mundial. Brigas entre os integrantes, exaustão física e mental, falta de inspiração e vontade de continuar gravando e excursionando: não importa o motivo, a decisão foi tomada e ponto final.
Ou seja, tudo tem uma hora para acontecer. Tudo tem uma hora pra acabar. Para algumas pessoas, entretanto, dizer não ou dizer basta é uma atitude difícil. E a procrastinação supera a humilhação, ainda mais quando há fãs pagando ingressos caríssimos e quando seus colegas de grupo ainda continuam com vitalidade a todo vapor.
O caso do Guns N’Roses entra nessa segunda categoria: a das bandas que insistem, insistem, insistem e não param. Há quem diga, aliás, que eles se aposentaram há 29 anos e não se deram conta disso. Por isso, a apresentação dos californianos nesta edição pós-pandemia do Rock in Rio 2022 foi a grande prova disso.
A bem da verdade, o show da trupe de Axl já havia deixado a desejar na edição do RIR de 2017, quando o vocalista subiu aos palcos fora de forma e com muita dificuldade de sustentar a voz. Foi um choque! Cinco anos depois, claro, não daria para esperar outra coisa. Ou daria, sim: coisa pior. Agora Axl mostrou desde o início que não consegue mais acompanhar o desempenho de seus colegas Slash e Duff McKagan.
Antes de seguir neste texto, é preciso, sim, considerar que não é fácil chegar à terceira idade com maestria e o gogó impecável depois de ter cometido tantos abusos durante o auge da carreira. Sim, precisamos também lembrar a importância do GN’R para a história do rock. Amem ou odeiem, os caras foram responsáveis por criar um dos riffs mais conhecidos do mundo, que faz parte da playlist de geração após geração. Afinal, até artistas como Manic Street Preachers, Luna e Sheryl Crow fizeram cover de “Sweet Child O´Mine”.
Enfim, para quem assistiu ao show da Guns N’Roses We Are F’N’ Back Tour no RiR 2022 no sofá de casa (como foi o meu caso), a aflição foi enorme. Cadê a voz? Cadê o fôlego até para sustentar o grudento assovio de “Patience”? Minha vontade era abaixar o som para evitar o constrangimento. Relatos de quem viu o concerto in loco deram conta que Axl só conseguiu sustentar a voz até a oitava canção. Depois, só no falsete.
Tentando lembrar a vitalidade de outrora, Axl também se movimentou bastante no palco, arriscou as famosas dancinhas e trocou de figurino mais vezes que a Katy Perry e a Lady Gaga juntas. Inclusive, na cover de Bob Dylan, usou um duvidoso conjunto de cartola e camiseta, ambas com a bandeira britânica estampada, para homenagear a rainha Elizabeth II horas depois do anúncio oficial de que ela batera na porta do céu.
Quem salvou a performance daquele último dia 8 de setembro foram Slash e Duff, que continuam, sim, carregando a banda durante um set list imenso, com 28 músicas – apesar de deixarem estampado na cara que já estão de saco cheio de tocar tudo isso. Por isso, depois de percorrer várias capitais pelo Brasil, resta esperar que Axl pelo menos dê o ar da graça em Curitiba neste próximo dia 21, no penúltimo show da turnê brasileira e cuja produção, aliás, negou o credenciamento da imprensa ao evento. Mas, pelo menos, esta mesma imprensa aqui ainda tem voz. E podem até não deixar a gente fazer o nosso trabalho. Mesmo assim, em respeito a vocês, leitores, o Mondo Bacana cumpre o dever profissional e escreve sobre como o quão constrangedor é, hoje em dia, o GN’R no palco.
Set list: “It’s So Easy”, “Mr. Brownstone”, “Chinese Democracy”, “Slither”, “Welcome To The Jungle”, “Better”, “Double Talkin’ Jive”, “Live and Let Die”, “Estranged”, “Rocket Queen”, “You Could Be Mine”, “Attitude”, “Absurd”, “Hard Skool”, “Civil War”, solo de guitarra de Slash, “Sweet Child O’Mine”, “November Rain”, “Wichita Lineman”, “Knockin’ On Heaven’s Door” e “Nightrain”. Bis: “Patience”, “Don’t Cry” e “Paradise City”.
Série da Netflix apresenta um ícone que anteviu o culto às celebridades de hoje e que brincava na tênue fronteira entre a arte e consumo
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Essa série em seis episódios do canal de streaming Netflix é baseada no livro homônimo de 1989 da escritora Pat Hackett. Após ser baleado em 1968 por Valerie Solanas, Andy passou a “escrever” um diário. Escrever, no caso, entre aspas pois as confissões e impressões de Andy consistiam em telefonemas para Pat, que de forma remota – e muito eficiente – datilografou as memórias do artista que se estenderam por quase duas décadas, até sua morte. Somente após o falecimento de Andy, em virtude de uma operação de vesícula, em 22 de fevereiro de 1987, Pat resolveu publicar o livro.
Com produção executiva de Ryan Murphy e direção de Andrew Rossi, as impressões e sentimentos de Warhol recebem pela primeira vez uma biopic documental para o grande público. Cada episódio de Diários de Andy Warhol (EUA, 2022 – Netflix) aborda uma fase da vida do artista, começando em sua infância e seguindo por sua fase universitária, o encontro com a arte em Nova York, a Factory e o desenvolvimento do personagem Andy – com a peruca branca, os óculos e o constante ar blasé entediado, que muito definiu a sua presença na cultura pop norte-americana e mundial.
Sim, a própria presença de Andy era uma performance de sua arte. Assim como o simbolismo de suas obras como reflexo do capitalismo e do consumismo em todos seus aspectos. Warhol tornou celebridades populares em arte e a arte em tema popular. Difícil existir alguém que não tenha tido contato com algum de seus trabalhos. A forma quase viral, muito antes desse fenômeno receber uma pecha, como sempre trabalhou, ficou impressa no subconsciente coletivo das futuras gerações como a caixa do sabão Brillo, a lata da sopa Campbell’s ou as serigrafias de ícones como Elvis, Marilyn, Liz Taylor ou Jackie O.
Andy transformou arte em consumo, em produto. Aceitou inúmeras encomendas de retratos para a alta sociedade americana, lucrou muito ainda em vida. Foi onipresente em todas as mídias – de jornais e revistas, na cena musical, em filmes e até na (M)TV. Ele tinha uma sede enorme pelo novo, pela vanguarda, pelos novos veículos de comunicação em massa que surgiam. Se hoje fosse vivo, certamente, teria contas em todas as redes sociais, desenvolveria seu próprio canal no YouTube e venderia sua arte em forma de tokens não fungíveis (NFTs). E ainda faria tudo isso antes que virasse moda. Warhol era visionário e também um grande provocador na nossa sociedade baseada no consumo volátil de ídolos que assim como aparecem logo somem no esquecimento.
No seu formato netflixiano, os tais diários de Andy são um bombardeio estético de todas as fases conhecidas do artista. É tudo lindo de se assistir, apresenta mais referências do que nosso cérebro é capaz de absorver e, ao mesmo tempo, nos entristece ao mostrar o universo íntimo de uma pessoa com muitas inseguranças e dúvidas e que tinha uma visão extremamente ácida da sociedade. Em suas confissões mais íntimas conhecemos um Warhol frágil, carente, solitário e torturado pelos seus medos, principalmente o medo da intimidade. Conhecemos um pouco sobre seus parceiros, os quais ele nunca assumiu publicamente apesar de jamais fazer segredo a respeito de sua homossexualidade.
A reserva também era a sua carapaça contra o boicote e o assédio homofóbico da época em que viveu. Ele era o homossexual “comportado” e praticamente assexuado, que não oferecia risco aos padrões da boa conduta da família tradicional americana. E ele sabia bem de tudo isso. Foi oportunista, sem dúvida alguma, mas também foi um sobrevivente de décadas muito difíceis em questões como a libertação e aceitação sexual. A sua sobrevivência foi uma das maiores obras de arte que Andy Warhol nos deixou. Agora temos o registro visual de seu diário para apreciarmos.
Oito motivos para celebrar o retorno do festival cantando os versos “olê olê olá! Lolla! Lolla!”
Planet Hemp
Textos por Abonico Smith
Fotos: Lolla BR/Camila Cara/Divulgação
Enfim, a música está definitivamente de volta aos palcos no Brasil. E os festivais de música também. Depois de dois anos de muito isolamento, distanciamento e congelamento de eventos artísticos provocados pela pandemia, com os números em queda e o gradativo relaxamento das regras sociais, a grade de grandes eventos pode ser retomada em 2022. No terreno da música pop, tudo começou no último final de semana, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, com os quatro palcos e três dias do Lollapalooza Brasil, que, entre 25 e 27 de março, retomou um pouco daquela programação que estava sendo esperada para 2020, mas com várias alterações sendo feitas a cada cancelamento, até mesmo nas últimas semanas com a desistência de duas bandas internacionais por conta de gente diagnosticada com a covid-19. Surpresas que se prolongaram até a véspera do domingo, com o mundo sendo pego de surpresa pela notícia da inesperada morte de Taylor Hawkins, o carismático baterista do Foo Fighters, o último dos três headliners, horas antes de um show em outro festival na Colômbia.
O Mondo Bacana lista oito motivos que vão fazer você se lembrar para sempre desta edição um tanto confusa e atabalhoada mas extremamente importante para ajudar a recolocar os grandes festivais e eventos musicais no eixo em território brasileiro.
Wombats
Este trio liverpludiano de nome de marsupial australiano e carreira sólida no circuito indie rock europeu merecia ter sorte melhor em sua primeira vinda (tardia, já que a discografia aponta cinco trabalhos em 15 anos) ao Brasil. Mal havia começado seu set e do nada veio um toró danado, com muitos raios e ventos, o que forçou a organização a cancelar tudo imediatamente e evacuar palco e plateia pelo risco de acidentes próximos a instalações metálicas. Foram só cinco músicas, mas o suficiente para ver que o vocalista Matthew Murphy e seus comparsas tinham muita lenha para queimar naquela tarde de sexta-feira. Misturando guitarras e grooves e com hits poderosos como “Moving To New York” e “Techno Fan”, lá do início da carreira, estrategicamente colocados no pontapé inicial para incendiar tudo. Só que aí veio o inesperado. A chuvarada veio impiedosamente para apagar todo o fogo da banda. Pelo menos restou a suspeita de que ano que vem eles deverão estar de volta por aí para compensar o “pocket show forçado”.
Strokes
Muita gente pode achar sem sentido a escalação do Strokes como headliner de um grande festival, justificando que o quinteto nova-iorquino está longe de seu auge criativo. Pura bobagem! Se bandas como Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses vivem desembarcando aqui no Brasil com o mesmo status, porque a trupe de Julian Casablancas não poderia também? OK, as vendagens podem não ter sido tão grandiosas se comparadas a estes nomes, mas a importância e a significância para tal ponto. Afinal, ajudaram a consolidar uma nova linguagem do rock, tão suja e underground quanto seus antecessores que consolidaram o punk e o alternativo no subsolo norte-americano. E, bem, musicalmente continuam muito bons. Simples, direto ao ponto, sem firulas (até mesmo nos solos). Julian Casablancas continua cantando cinicamente desanimado, como um “tô nem aí para nada”, agarrado no pedestal, de óculos escuros e na maior pose antipopstar. Aliás o foda-se desta vez estendeu-se também à escolha do repertório. O grupo ousou ao eliminar escolhas óbvias para festivais como de hits (como “Someday” e sobretudo “Last Nite”), pegar lados B dos dois primeiros álbuns (“Under Control”, “Trying Your Luck”, “Take It Or Leave It”, “New York City Cops”) e bancar um terço do set list (cinco de quinze) com faixas do álbum mais recente, lançado logo depois do lockdown mundial provocado pelo decreto da pandemia. Gran finale da primeira noite!
Emicida
Há muito tempo que, em se tratando de peso e atitude, o rap é o novo rock aqui no Brasil. Depois de uma série de discos acachapantes, Emicida veio para este Lollapalooza disposto a provar que, sim, pelo menos em se tratando de festivais de música a revolução pode ser televisionada em nosso país. AmarElo, o show, é uma porrada na cara, um soco no estômago, um tapa do Will Smith em todos os sentidos. Banda afiada, com duas guitarras poderosas, baixista-maestro, percussão dando peso às batidas do DJ. Com versos de forte conteúdo racial, social, político e (por quê não?) de relacionamentos pessoais – a ponto de levar a um festival pop o pastor Henrique Vieira para mandar um sermão contagiante no final com “Principia”. Antes, porém, uma trinca matadora com participações especiais: Rael em “Levanta e Anda”, Drik Barbosa em “Luz” e Majur em “AmarElo”(aquela na qual o sample com o refrão gravado originalmente na voz de Belchor vira transe coletivo).
Miley Cyrus
Às vésperas de completar 30 anos de idade, a ex-Hannah Montana libertou-se de todas as amarras imagéticas que ainda poderiam estar assombrando seus trabalhos anteriores. Sonoramente, lançou-se fundo no rock, com muitas timbragens e elementos oitentistas sem abandonar a veia pop dos arranjos. Visualmente, toda de preto e cabelo platinado no melhor estilo femme fatale eternizado por Madonna também nos anos 1980. De quebra, ainda chamou a amiga Anitta ao palco para celebrar “a brasileira número um mundial do Spotify” e mandar – rebolando bastante, claro – um feat do novo hit dela “Boys Don’t Cry”. Só que nem tudo é perfeito. Para os millennials, Miley pde ser o máximo, impactante, de causar arrepios. Só que quem tem mais idade e já viu muito mais coisa no rock’n’roll sabe que tudo nao passa de um pastiche. Bem produzido mas um pastiche. Rola um déjà-vu atrás do outro, com lembranças que vão de Bon Jovi a… Madonna! Isso sem falar no amontoado de covers sem sentido (já que ela é uma headliner com carreira já longa e consolidada) que deformam Pixies (“Where Is My Mind?”), Blondie (“Heart Of Glass”) e Nancy Sinatra (“Bang Bang”). Ah, sim, teve toda a encenação do choro pela morte do grande amigo pessoal Taylor Hawkins no meio do show (quando ela cantou “Angles Like You” sentada em uma cadeira agarrada a uma bolsa de grife da qual tirou um lencinho para enxugar as lágrimas sem borrar o make). Por falar em grife, o que dizer do enorme casaco de inverno verde que ela teve de vestir e cantar por uns dois minutos usando durante a primeira música. Contratos de parceira publicitária? Muito rock’n’roll isso, né? No telão ao fundo, a frase “sell out to sell out”(em bom português, “vender-se para se vender”). Pose dez, atitude duvidosa no fim das contas. Será que é disso que o mundo necessita mesmo?
Idles
Já faz alguns anos que as terras britânicas vem exportando ao mundo uma série de novas bandas excitantes. Muitas delas, inclusive, com inspiração clara nos bons sons alternativos norte-americanos dos anos 1990. O Idles é um destes exemplos. Formado na cidade de Bristol, o quinteto vem concebendo álbuns maravilhosos em série (foram quatro desde 2017) e é nos concertos em grande escala que vem fazendo sua fama expandir ainda mais. Se a sonoridade já era brutal em pequenos espaços, quando o palco ganha proporções gigantescas – como é o caso dos festivais a céu aberto – parece que a banda também se agiganta com facilidade extrema. Aqui no Brasil, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Com um pezinho naquela mistura entre o punk rock, o hardcore e o industrial e lembrando bandas clássicas de selos como Touch and Go (de Chicago) e Alternative Tentacles (criado por Jello Biafra em San Francisco). O quinteto insano jorrou em pouco menos de uma hora treze músicas praticamente coladas uma na outra – com claro destaque para o segundo álbum, Joy As An Act Of Resistance, de onde vieram sete delas). Ao vivo, parece que cada músico dispara para um lugar separado, tanto nas notas musicais como na performance cênica individual. A somatória desta coisa toda aparentemente difusa acaba atordoando, formando um conjunto monolítico com altos graus de ironia e sarcasmo – nas danças ora patéticas ora intensas dos músicos, na verborragia cuspida pelo vocalista Joe Talbot, na pancadaria rítmica da e bateria, nas distorções e microfonias incessantes formadas por toneladas de pedais ligados ao baixo e às duas guitarras. Nunca um fim de tarde de domingo soou tão longe de ser modorrento.
Libertines
Depois do Idles, no mesmo palco principal do Lolla vieram os Libertines, atração praticamente acertada de última hora, já que duas semanas antes do festival o Jane’s Addiction cancelou a vinda por conta de casos de covid em sua equipe. E, olha, nunca uma escolha poderia ter sido tão acertada e oportuna quanto esta. Afinal, lá atrás, quando estiveram pela primeira vez no país também em um grande festival, a banda estava no seu auge mas se encontrava temporariamente sem um de seus frontmen, o guitarrista e vocalista Pete Doherty estava temporariamente afastado de suas funções em virtude de uma sentença judicial que o levou à cadeia. E Carl Bârat sem Pete é como Piu-Piu sem Frajola, Buchecha sem Claudinho. Agora, Pete e Carl ficaram lado a lado, alternando-se nos vocais no típico repertório “banda de bar” que fez a fama do quarteto lá na primeira metade dos anos 2000 – o set list contou com treze faixas extraídas dos dois primeiros e mais famosos álbuns. Com a poderosa ajuda do experiente baterista Gary Powell (que, dez anos mais velho que os dois e negro, ainda insere com extrema competência elementos de jazz, blues e soul nos arranjos). Tudo bem que a idade já começa a pesar nos ombros. Com 43 anos de idade, não são mais aqueles likely lads que promoviam performances anárquicas em pequenos palcos nas gigs em Londres e arredores. Pelo menos estão vivos e esperneando, sempre prontos para mandar clássicos do indie rock do século 21 como “What Became Of The Likely Lads”, “What Katie Did”, “Boys In The Band”, “Time For Heroes” e “Can’t Stand Me Now”. Sorte nossa, mesmo que muita gente mais jovem que estava in loco no Lolla não tenha dado a mínima por achar que rock é o que menos importa na música de um festival.
Mano Brown
O rap é o novo rock
Perto da meia-noite de sexta para sábado (horário de Brasília) chega a notícia bombástica: horas antes de se apresentar em um festival na Colômbia, o baterista do Foo Fighters Taylor Hawkins morre no hotel. Mais um problema – e que problemão – de última hora para a escalação do festival: como resolver em questão de menos de dois dias a substituição da banda para encerrar a programação do palco principal no domingo? A solução estava bem perto e, de certa forma, vinda de um lado inesperado para muita gente: ela respondia por Emicida. Admirador da banda de Dave Grohl, assim como a guitarrista de sua banda, Michele Cordeiro, ele recorreu a um punhado de amigos rappers e resolveu prontamente o problema de logística: montou um show tão longo quanto, juntando um monte de artista que nas últimas três décadas ajudou a cristalizar o hip hop como um dos gêneros musicais mais populares do país. Deste jeito, o concerto improvisado – anunciado como uma homenagem a Taylor Hawkins sem, contudo, prender-se ao modelo chato de tributo de execução das principais músicas gravadas pelo homenageado – foi dividido em duas partes. Na primeira, os DJs Nyack e KL Jay deram o suporte soltando as bases para nomes como Emicida, Rael, Criolo, Bivolt, Drik Barbosa, Djonga, Ice Blue e Mano Brown mandarem algumas das principais composições de suas carreiras (…). A metralhadora verborrágica da turma revelou-se tudo aquilo que anda em falta nas bandas mais tradicionais de rock: sagacidade, rebeldia e periculosidade intelectual. Na segunda, os DJs e MCs individuais cederam o palco ao Planet Hemp, que veio do Rio de Janeiro para mostrar que a produção do festival cometeu um grande erro ao não escalá-lo. Com a banda afiadíssima e misturando hardcore, psicodelia, samba e jazz ao canto falado de Marcelo D2 e BNegão, o PH é uma das poucas bandas brasileiras de rock realmente avassaladoras ao vivo hoje em dia. Peso, contundência e, claro, aquela chama capaz de nunca se apagar. Tanto uma metade quanto a outra pode ser definida como uma oportunidade para celebrar o amor, a música e a possibilidade de se estar junto àquelas pessoas que amamos. E não bastasse esses lados A e B do novo concerto, houve ainda um “prefácio” tocante com Michele e Mônica Agena dedilhando lentamente suas guitarras e tornando “My Hero” ainda mais emocionante. No fim, depois do Planet Hemp, mais uma homenagem direta a Hawkins. O Ego Kill Talent, banda brasileira escalada para abrir a última turnê brasileira do FF em 2018, encerrou as atividades com duas músicas: uma autoral mais “Everlong”, a primeira cover tocada pelo quinteto durante toda a sua trajetória de shows. Se em um primeiro momento tudo parecia triste, perdido e arrasado para o encerramento de domingo do Lolla, depois dessa turma toda ninguém mais teve dúvida de que valeu muito a pena ter ido ao Autódromo ou ficar vendo pela TV toda aquela competente gambiarra improvisada horas antes.
#ForaBolsonaro
Sabe aquele tiro que sai pela culatra? Pois foi bem o que aconteceu neste Lollapalooza. Na sexta-feira, um fã deu a Pabllo Vittar uma bandeira com a cara e o nome de Lula e ela saiu correndo com o objeto, tremulando-o ao vento, em disparada pelo corredor que separa uma metade da outra do público. A foto saiu estampada em todos os portais de notícias. Em outro palco, a cantora galesa Marina Diamandis mandou, em alto e bom português, um “#ForaBolsonaro”. Os Strokes saíram do palco usando o microfone para falar a mesma coisa. Foi o que bastou para Jair Bolsonaro ficar nervosinho e, disfarçando sob a assinatura de seu novo partido, pedir judicialmente a reativaçãoo da censura a artistas, proibindo-os de expressar suas opiniões travestidas de, segundo suas palavras, “campanha para presidente antes do período determinado pela lei”. Só que ele pode e sempre faz isso. E o pior: o mesmo ministro do TSE Raul Araújo que endossou o pedido e faz voltar a valer a censura neste país foi aquele que, semanas antes negara pedido de retirada de outdoors irregulares fazendo campanha para Bolsonaro em uma cidade de Mato Grosso do Sul. Mas de nada adiantou esse passo rumo ao retrocesso. Depois de sábado, quando a notícia estourou pelos bastidores, foi um tal de “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” (como disse Lulu Santos ao adentrar o palco do Fresno para uma participação especial). No mesmo dia, Silva puxou o coro do incentivo para que jovens entre 16 e 18 anos (faixa etária para a qual o voto é facultativo) tirassem seu título de eleitor para poderem ir às urnas em outubro próximo. O grupo gaúcho também mandou um #ForaBolsonaro no telão. Logo depois, Gloria Groove entrou com uma blusa semelhante a um uniforme de time de futebol, tendo escrito atrás seu nome e o número 13. Emicida, tanto no sábado quanto no domingo, reforçou que o amor vale mais que o ódio e também mandou a hashtag mais famosa destes últimos quatro anos no país. Criolo não disse nada, apenas vestiu uma camiseta com a urna eletrônica na frente, mais um título de eleitor atrás. Bivolt demonstrou toda a sua insatsifação com o atual desgoverno federal no rap freestyle. Mas, claro, a maior vociferação contra a absurda ação autocrata veio de Marcelo D2. “Não, hoje #EleNão. Hoje #EleNão vai fazer a narrativa. A gente vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor. É sobre Taylor Hawkins. Sobre Chorão. Sobre Chico Science. Sobre Sabotage. Sobre Speedfreaks e Skunk.”, mandou logo ao entrar com o Planet Hemp, lembrando os nomes de amigos e ídolos já falecidos, sendo os dois últimos um ex-colaborador e um dos fundadores do PH. Aí mandou a letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”, manifesto antinarrativa de direita da Nação Zumbi. Depois emendou “Distopia”, música inédita “sobre esperança” com base jazzy que estará no disco da banda que será lançado do próximo semestre. O refrão trazia um jogo de palavras hipnótico (“Desobedeço o obedeça/ Obedeço o desobedeça”) enquanto o telão repetia outra parte da letra (“Repense Reflita Resista Recuse”). Em “Dig Dig Dig” reviveu o canto de Zumbi eternizado por Jorge Ben (“Zumbi é o Senhor das Guerras/ Zumbi é o Senhor das Demandas/ Quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda”). Antes de “queimar tudo até a últimaponta”, aproveitou para xingar diretamente Bolsonaro. Depois, lembrou que a musica “Zerovinteum”, há quase trinta anos, já falava sobre o problema das milícias no Rio de Janeiro – e ainda atestou estarem presentes sempre os assassinados Marielle e Anderson. Também levou um improvável hino do Ratos de Porão ao palco do grande festival mainstream com a cover de “Crise Geral” e antecipou a execução de “Contexto” dizedo que de nada adianta acreditar em um salvador da pátria e só fazer algo ao ir lá votar no dia da eleição. Ah, sim: não deixou de entoar a famosa musiquinha adaptando-a para homenagear o festival: “olê olê olá! Lolla, Lolla!”. Os artistas sambaram bonito em cima da cara do “é melhor Jair embora de uma vez”. Em tempo: o festival não foi notificado pela justiça porque o pedido de censura foi tão incompetente que nenhum dos dois CNPJs informados ali batiam com os responsáveis pelo evento. Em tempo 2: na segunda-feira, quando não adiantava mais nada porque tudo já acabara no domingo, Araújo suspendeu as manifestações políticas no Lolla afirmando que o texto da solicitação do PL o havia induzido a erro. A emenda ficou, de vez, pior que o soneto…
Documentário faz homenagem à icônica banda recorrendo à aura visual da nada hippie contracultura nova-iorquina dos anos 1960
Texto por Taís Zago
Fotos: Apple TV+/Divulgação
Lou Reed sempre foi um adolescente estranho, não se encaixava em nenhum formato, era a preocupação da família. Era precoce. Logo cedo já frequentava um bar gay de sua hometown por achar que ali estavam as pessoas mais interessantes. Na primeira aula de guitarra queria aprender rock’n’roll e, diante da negativa, resolveu aprender sozinho. Lá do outro lado do Atlântico, John Cale também se sentia incompreendido, no caso pela sua forma pouco ortodoxa de enxergar o processo de composição musical. Treinado em instrumentos clássicos, era um virtuose das cordas (viola) e teclados (piano).
A colisão desses dois astros não poderia ocorrer na época em outro lugar senão a Nova York dos anos 1960, onde o movimento monocromático beatnik da east coast era um contraste radical aos hippies coloridos e com flores nos cabelos que surgiam na west coast. Reed e Cale (mais tarde se juntariam a eles a baterista Moe Tucker e o guitarrista Sterling Morrison) criaram o Velvet Underground inspirados pelos textos beat de Allen Ginsberg (Howl, 1956), William S. Burroughs (Naked Lunch, 1959) e Jack Kerouac (On The Road, 1957) e por toda a efervescência artística que tomava conta da Lower East Side da época, onde John e Lou dividiam um apartamento.
O sucesso do grupo era modesto até o pop artist Andy Warhol e sua entourage de avant-gardistas (entre eles o cineasta Paul Morrissey, a atriz Mary Woronov, o poeta Gerard Malanga e a performer Candy Darling) descobrissem o quarteto e o tornassem uma presença constante na Factory, uma collab de artistas que orbitava ao redor da figura de Warhol. Portanto, Andy não criou o Velvet, como muita gente erroneamente afirma, mas foi apenas o sponsor (como ele mesmo se definia) e maior apoiador da banda. Warhol também foi responsável pela inclusão na trupe de Nico, uma modelo, atriz e poeta alemã, de voz bastante peculiar e grave. Lou e o resto demoraram a aceitar Nico e o trabalho em conjunto se desfez no segundo disco. Nico logo foi nadar em outras águas como artista e Reed assumiu como frontman, pavimentando o caminho para sua carreira solo.
O documentário The Velvet Underground (EUA, 2021 – Apple TV+), disponibilizado em outubro passado em streaming, é dirigido por ninguém menos que Todd Haynes, que fez Velvet Goldmine (1998) e I’m Not There (2007), ambos excelentes dramas musicais semifictícios sobre ídolos reais – no caso Bowie e Dylan respectivamente. Portanto, o resultado não poderia ser nada menos do que uma estética impecável, ainda mais com a grana bancada pela Apple, que é uma empresa famosa por prezar pelos visuals de seus produtos. Haynes domina a arte de transpor a aura sessentista para as telas, quer seja com glam rock ou veia beatnik. Não economiza em split screens, cortes, montagens e projeções. Para desavisados pode parecer um tanto turbulento (tem até aquele aviso clássico no começo atentando ao perigo de convulsões), mas as composições fazem sentido, não sendo supérfluas, meros floreios. Bem pelo contrário: as imagens dialogam entre si e se complementam. Uma salva de palmas para o trabalho primoroso de edição que arremata essa bela obra.
The Velvet Underground é entretenimento de qualidade para ouvidos e olhos treinados. Especialmente feito para iniciados na jornada da banda e no contexto cultural em que se os músicos se inseriam. Já para um leigo pode parecer apenas um emaranhado de imagens e takes de entrevistas com sobreviventes do caos cultural nova-iorquino dos anos 1960. Está longe de ser documento didático sobre a banda. É um patchwork, uma collage, uma sobreposição, uma homenagem. Assim como uma obra de Warhol.