Music

Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

Music

Ritchie

Oito motivos para não perder a turnê criada para celebrar os 40 anos de lançamento do megahit nacional “Menina Veneno”

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Quarenta atrás o país todo foi varrido por uma enxurrada vinda da Inglaterra. Richard David Court havia chegado ao Brasil exata uma década antes, justamente quando a música brasileira conhecia um meteoro avassalador chamado Secos & Molhados, que saiu em pouca semanas do anonimato ao status de megavendedor de discos no mercado nacional. Ritchie, em 1983, conseguiu o mesmo feito. Cantando em português com um ligeiro sotaque ainda persistente, já em janeiro ele começou a provocar frenesi nas emissoras de rádio de norte a sul com uma música que ainda sequer havia sido lançada (no caso, seu primeiro compacto, programado pela gravadora CBS para chegas às lojas em abril). Doze meses depois, terminou a temporada vendendo mais cópias de seu álbum de estreia que o megassucesso planetário da época, Thriller, de Michael Jackson. Heresia das heresias, também superou ainda o maior nome do mercado fonográfico nacional, Roberto Carlos. Detalhe: dois artistas da mesma gravadora, que perderam a corrida para um então joe nobody.

Ritchie possui uma biografia muito interessante para ser contada. Após o estrelato instantâneo, enfrentou vários problemas de bastidores que, financeiramente e em questão de popularidade, fizeram sua carreira desabar de uma maneira também muito rápida. Isto, porém , não é o caso de se esmiuçar neste texto. E sim celebrar seu retorno aos palcos em grandioso estilo. O cantor e compositor está desde agosto em uma turnê por todo o território nacional que celebra os 40 anos do estouro do hit “Menina Veneno” (cujo compacto 7” fora antecipado com urgência para fevereiro e ganhou o disco duplo de platina, com mais de 500 mil exemplares comprados, algo raríssimo para o formato por aqui) e o álbum Vôo de Coração (mais de 1,3 milhão de cópias). Depois de passar por várias cidades, o artista agora reserva às capitais do Sul o calendário desta semana de outubro. Na próxima quarta (dia 18), ele passa pelo Teatro Guaíra, em Curitiba (clique aqui para saber mais sobre horário e ingressos). Na sexta (20) a escala é no Teatro Bourbon Country, em Porto Alegre (mais informações aqui). No sábado, a trinca se fecha no Centro de Eventos da UFSC, em Forianópolis (mais informações aqui). E até o fim do ano, o show será realizado em cidades do Nordeste (Sergipe, Bahia, Ceará, Piauí e Pernambuco) e no Rio de Janeiro (mais informações aqui).

Mondo Bacana disseca abaixo oito motivos para você não deixar de assistir à turnê A Vida Tem Dessas Coisas

“Menina Veneno”

Tudo começou em janeiro de 1983, com uma fita de rolo enviada pela CBS para o divulgador da companhia em Fortaleza. O compacto, estava previsto para chegar às lojas somente em abril. De uma hora para outra, a gravadora foi surpreendida com o fenômeno: a canção, sem qualquer iniciativa extra, foi adotada instantaneamente por várias emissoras e caiu no gosto dos ouvintes, que a faziam ser executada mais de 14 vezes por dia em todas elas. Logo, “Menina Veneno” foi “descendo” por todo o território nacional e virou febre no país todo. Logo Ritchie era presença constante em todos os programas de auditório da TV e a canção passou a tocar direto nos bailes funk da Rocinha e nos radinhos sintonizados nas comunidades ribeirinhas da Amazônia. Todo este estouro meteórico ainda rendeu uma versão em espanhol gravada pelo próprio britânico (e incluída pela ex-CBS e hoje Sony na versão em CD de Vôo de Coração lançada em 2008, para marcar os 25 anos do disco). A ideia da letra veio do livro O Homem e Seus Símbolos, com Carl Gustav Jung como autor de um dos capítulos, abordando a relação íntima do homem com seu inconsciente obtida sobretudo por meio dos sonhos. Segundo Jung, são quatro os arquétipos femininos manifestados neles. Um deles é o da “donzela venenosa”, a mulher fatal, que detém o poder de seduzir e capturar a alma masculina.

Abajur cor de carne

Não, não é e nunca foi um virundum. Você nunca entendeu errado nestes 40 anos. A cor do abajur não é carmim. É cor de carne, mesmo. O verso que contém esta pérola lírica da música brasileira já na primeira estrofe de “Menina Veneno” é obra da prodigiosa cabeça do letrista Bernardo Vilhena, que quis remeter uma sensação visual da sedução feminina diretamente à atriz e cantora germânica Marlene Dietrich quando ela ficou hospedada no chiquérrimo hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, em 1944, e declarou ter amado os abajures do local. Os objetos tinham uma cor de pergaminho. Segundo Vilhena, a expressão em alemão, quando traduzida literalmente, vira “cor de carne”. Em entrevista publicada pelo site Scream & Yell, ele explicou alguns termos utilizados na letra do hit. “Na minha cabeça de letrista, o cor de carne com o lençol azul e as cortinas de seda montavam todo um cenário interessante. O refrão, por sua vez, tem uma ligação forte com as artes plásticas, uma área à qual eu sempre fui muito ligado. Eu tinha uma amiga, a Regina Vater, que tinha um trabalho de retratos das camas de hotel que ela dormia, e mandava isso como cartões postais. ‘Toda cama que eu durmo só dá você’ era um verso dela. Era uma gíria da época, o ‘só dá o fulano’. São as coisas fundamentais dessa letra, dessa canção.”

Bernardo Vilhena

O poeta e letrista não foi fundamental apenas no compacto inicial da carreira de Ritchie. Os dois compuseram juntos nove das dez faixas do álbum também. Vindo da cena da poesia carioca dos anos 1970 (que revelara também nomes como Chacal, Waly Salomão e Antonio Cícero), Bernardo pincelou jogos de trocadilho com as palavras (“Do princípio ao sim”, “Vamos botar fogo em Copacabana”, “Tanto tempo entre o não e o fim”) e permeou as letras de Ritchie com o imaginário cotidiano de jovens pulsantes e radiantes de um Rio de Janeiro zona sul do começo dos anos 1980. A abordagem traz festa na madrugada, encontro no elevador, comunicação pelo interfone, quase sempre em situações envolvendo duas pessoas exalando hormônios sexuais. Basta ver a letra de “Casanova”, cujo título remete ao escritor italiano que virou sinônimo de amante libertino e sedutor sexual. Verso após verso, a canção vai descrevendo o cenário de ardente lascívia fugaz entre um casal. Virou tema de abertura de novela (Champagne, 1983), tocando diariamente no horário nobre da Rede Globo para ouvidos castos e inocentes de uma boa parcela da população brasileiro. Isso ainda em tempos de censura federal e governo militar. Vilhena é autor de versos de outros clássicos do rock nacional como “Mais Uma de Amor (Geme Geme), “Vida Bandida” e “Vida Louca Vida” (Blitz, Lobão, Cazuza).

Synthpop em português

Lauro Salazar, tecladista então radicado em Munique e ligado a trabalhos de pesquisa de timbres para fabricantes de sintetizadores, foi o pulo do gato de Voo de Coração. O álbum de estreia de Ritchie tinha uma ficha técnica de respeito. Liminha no baixo, Lobão na bateria, Zé Luis no saxofone e participações especiais de Lulu Santos e Steve Hackett (Genesis) nas guitarras. Só que o trabalho desenvolvido por Salazar nos arranjos foi fundamental para aproximar a sonoridade de uma novidade que bombava no exterior (sobretudo no Reino Unido e na Europa ocidental) e ainda era pouco conhecida no Brasil: o synthpop. Tinha a vertente mais dançante, voltada para as pistas, com nomes como Depeche Mode, Soft Cell, OMD, Pet Shop Boys e Eurythmics. Também havia quem conjugasse a sedução rítmica com uma linguagem mais pop, com destaque pata os teclados mas também para os instrumentos mais tradicionais do rock e um apuro mais fashionista nos figurinos e cabelos. Esta turma ganhou o nome de new romantic, vertente que abrigava Duran Duran, Culture Club, Visage e Spandau Ballet. Ritchie, por sua vez, unia lá em 1983 as partes em suas performances e gravações.

Outros hits

Vôo de Coração tinha dez faixas e rendeu cinco grandes hits. Portanto, tenha certeza de que a batida de samba jazzyde “A Vida Tem Dessas Coisas”, o tecnopop “Casanova”, a balada que dá nome do álbum e o tom caribenho de “Pelo Interfone” estarão presentes no set list. Assim como sucessos posteriores “A Mulher Invisível”, “Só Pra o Vento”, “Transas”, “Loucura e Mágica” e “Telenotícias”. 

B-sides

Uma carreira tão vasta e extensa, mesmo com um abandono no cenário musical no meio do caminho e intervalos maiores de gravações e lançamentos dos anos 1990 em diante, traz muitas pérolas escondidas do grande público. Ritchie, que não é bobo nem nada, traz de volta algumas faixas que pouca gente conhece (ou pela menos se lembra de já ter ouvido lá atrás). É o caso, por exemplo, de “Preço do Prazer” e “No Olhar”, que abriam os dois lados do vinil de Voo de Coração e sequer foram exploradas pelas rádios. Ou então “Shy Moon”, belíssimo dueto para o qual fora chamada por Caetano Veloso em seu álbum Velô (de 1984) e que habitou a trilha sonora da novela Um Sonho a Mais(1985). Por falar em dramaturgia da Rede Globo, outros dois fonogramas são resgatados. “Um Homem em Volta do Mundo” estava em Cara & Coroa (1995). Já “Mercy Street”, melancólica e reflexiva canção de Peter Gabriel, foi regravada por Ritchie para a abertura da minissérie O Sorriso do Lagarto (1991). Quer mais lado B? O cantor também pinça do álbum do Tigres de Bengala as faixas “Agora ou Jamais” e “Elefante Branco”. Vale lembrar que este fora um supergrupo de um disco só criado em 1993 por Court mais os músicos Vinicius Cantuária, Claudio Zoli, Dadi, Mu Carvalho e Billy Forghieri, todos de grandes serviços prestados à música pop brasileira. Ah, tem ainda “Lágrimas Demais”, do álbum Auto-Fidelidade (2002), o último de repertório composto por faixas autorais inéditas.

De volta ao futuro

A turnê de Ritchie não será baseada só no melhor de sua carreira musical. Traz ao palco um grande apuro visual também, com tecnologia de ponta e gente de primeira na ficha técnica. Jorge Espírito Santo (ex-MTV, ex-Fantástico) assina a direção geral. Césio Lima (Rock In Rio) está na iluminação. Alexandre Arrabal e Kiko Dias bolaram uma direçãoo de arte que traduz à atualidade o futurismo de computadores e hologramas que, 40 anos atrás, já habitavam as letras de Vôo de Coração e a capa do compacto de “Menina Veneno”. Portanto, não será uma experiência só para ser ouvida no conforto das poltronas.

Inimigo do Rei

Reza a lenda que a promissora carreira de Ritchie fora sabotada por ninguém menos que o maior da música popular brasileira. Tudo porque o britânico, já em seu primeiro disco, ousou “ultrapassar” a fronteira e ameaçar as próximas vendagens de Roberto Carlos. Muita já se comentou, escreveu e discutiu sobre isso. Court passa longe de defender esta hipótese sobre o Rei, embora confirme uma história ouvida da própria boca de um programador radiofônico: a de que este cara recebera “jabá” da gravadora (de ambos, a CBS) para NÃO TOCAR suas músicas. A queda repentina nas vendagens depois da ascensão meteórica mais alguns sérios problemas de relacionamento vividos nos bastidores podem ter afetado e muito a trajetória profissional de Ritchie lá atrás, a ponto dele mudar de carreira – abandonou os palcos e estúdios nos fim dos anos 1990 para trabalhar com o desenho, o desenvolvimento e a implantação de softwares de áudio em websites, chegando a trabalhar em parceria com o músico, produtor e inventor inglês Thomas Dolby (autor e cantor de “She Blinded Me With Science”, hit do synthpop mundial em 1982) para a sua empresa, a Beatnik Inc. Polêmicas, invenções e especulações à parte, não deixa de ser bastante interessante para um artista, aqui no Brasil, carregar para sempre esta história peculiar em sua biografia. Mesmo porque hoje o reconhecimento de sua obra musical, com o tempo, superou todos os perrengues.

Music

Smiths

Andy Rourke, baixista da icônica banda que consolidou o termo indie rock em terras britânicas, morre aos 59 anos de idade

Da esq. à dir.: Morrissey, Johnny Marr, Mike Joyce e Andy Rourke

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação/Rough Trade

Na manhã desta sexta-feira 19 de maio foi anunciado o falecimento do músico e DJ inglês Andy Rourke, mais conhecido pelo trabalho como baixista do grupo Smiths nos anos 1980. Ele tinha 59 anos e enfrentou uma longa batalha contra um câncer no pâncreas.

Quem divulgou a notícia foi o ex-companheiro de banda, o guitarrista Johnny Marr. Ele o definiu como uma alma boa e gentil, além de instrumentista talentoso. Ao lado de Johnny, o vocalista Morrissey e o baterista Mike Joyce, Rouke integrou o quarteto que revolucionou o rock britânico entre 1982 e 1987. Em 1996, também já enfrentando o vício em heroína, Andy, em conjunto com Mike, processou a dupla de compositores Morrissey e Marr, em busca de ganhos a mais nos direitos autorais sobre a obra composta e gravada pela banda. Um acordo judicial foi feito para ação ser encerrada. A amizade com Marr foi refeita. Entretanto, o frontman nunca mais o desculpou pela atitude.

A obra-prima dos Smiths é o álbum The Queen Is Dead, de 1986. Entre os hits deixados pela banda estão as faixas “The Boy With The Thorn In His Side”, “Bigmouth Strikes Again”, “Ask”, “Panic”, “There Is a Light That Never Goes Out”, “Shoplifters Of The World Unite”, “Hand In Glove” e “How Soon Is Now”. A marca registrada impressa por Rourke nos arranjos da banda eram as linhas de baixo extremamente dançantes, que junto com as batidas de Joyce, formavam uma textura rítmica irresístivel para as combinações da literatura rebuscada em forma de versos dramáticos desenhada por Morrissey e os dedilhados com um pezinho no floreio psicodélico nas seis cordas de Marr.

Após o término da banda, Andy participou da gravação de algumas canções da carreira solo inicial de Morrissey. Também tocou com Pretenders, Badly Drawn Boy, Ian Brown e Moondog One (que incluía músicos que passaram por Smiths e Oasis). Em 2007 formou o supergrupo de baixistas Freebass, ao lado de Peter Hook (New Order) e Gary Mounfield (Stone Roses). Logo depois mudou-se para Nova York, onde passou a trabalhar como DJ de rádio e pistas de nightclubs. Foi, inclusive como DJ, que veio ao Brasil em novembro de 2008, que veio ao Brasil (mais especificamente a cidade de Curitiba), onde lançou a coletânea Hang The DJ (refrão da letra de “Panic” que batizou uma tradicional festa que era realizada no histórico e hoje extinto clube noturno Vox). Seis anos depois, retornou à capital paranaense para estrelar outra noite na pista de dança do Vox. E também foi em Nova York, ao lado de Ole Koretsky (com quem discotecava em dupla nas noites, sob a alcunha de Jetlag) e Dolores O´Riorden (vocalista dos Cranberries, também já falecida), que ele criou a banda D.A.R.K., que lançou um álbum chamado em 2016.

Music

Coldplay – ao vivo

Plateia de Curitiba recebe a banda pela primeira vez e faz parte de um espetáculo com um universo próprio de cores, luzes e protagonismo

Textos por Janaina Monteiro e Carolina Genez

Foto: Coritiba Foot Ball Club/Reprodução

Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal. 

“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse. 

Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas. 

Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.   

A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000. 

Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê ­ – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.

Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.

Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.

E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas.  Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê. 

E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ

De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”.  Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida! 

Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo. 

Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.

Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio. 

Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.

No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas. 

Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)

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A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.

set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show  tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano  enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.

O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.

O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)

Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).