A mágica tarde que despertou o artilheiro adormecido italiano que transformou em pesadelo o sonho da seleção brasileira na Copa de 1982

Texto por Fábio Soares
Foto: Reprodução
Em matéria de ludicidade, o castelo da Copa do Mundo da Espanha, de 1982, já era mágico a partir de seu mascote. Naranjito (Laranjinha, em espanhol), era uma simpática figura onipresente nos boletins dos telejornais da época. Aliado a este fato, o futebol apresentado pela seleção comandada por Telê Santana, mesmo nos amistosos preparatórios, encantava dez entre dez torcedores da Amarelinha à época – sobretudo no amistoso contra a Alemanha Ocidental, em março do mesmo ano, em um Maracanã com mais de 150 mil espectadores.
A euforia era justificável. Ainda na ressaca da Era Pelé encerrada oito anos antes, o futebol praticado por aquela seleção aproximava-se, a olhos vistos, ao patamar de arte. Outro fato marcante com tamanha identificação daquele time junto a seu povo: numa época em que transferências milionárias estavam longe de estar em voga, 99% dos jogadores atuavam no Brasil sendo Paulo Roberto Falcão (no Roma, da Itália) a exceção à regra.
Junho de 1982 chegou e o picadeiro dos sonhos começava já estava armado com o início do espetáculo já na duríssima estreia contra a União Soviética, em Sevilla. Na minha casa, um particular ritual foi iniciado comigo (com seis anos de idade) e minha irmã (com cinco, à época): picar quilos e quilos de jornais velhos a serem atirados pela janela a cada gol do Brasil. Na partida inicial, as primeiras remessas de papel foram defenestradas durante o 2 a 1, após um inacreditável frango de Waldir Peres. No entanto, a vitória com uma bomba de Éder Aleixo aos 42 minutos do segundo tempo tirou o peso da estreia e renovou a esperança pelo tetra.
A atmosfera de sonho iniciou-se de verdade a partir da segunda rodada nos 4 a 1 sobre a Escócia. Atuação monstruosa do meio-campo protagonizado por Toninho Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Em casa, mais papel picado arremessado pela janela e festa na Avenida Paulista após o jogo. Euforia justificável que cresceu como uma tsunami na terceira rodada, nos 4 a 0 sobre a Nova Zelândia. Novo show da dupla Zico-Falcão com o tal do “futebol arte” finalmente materializado aos olhos de quem o assistia. Sevilla estava entregue aos pés da seleção de Telê, enebriada com o que tinha visto nas três partidas da equipe na cidade. Na imprensa espanhola não se falava em outra coisa. Mesma euforia que inundava os telejornais e mesas-redondas após as partidas. Já para as crianças, aquele desenho animado ao vivo divertia, encantava e despertava paixão com a alegria nas ruas.
Na fase seguinte, a Seleção despediu-se ovacionada pela Andaluzia e rumou ao norte da Espanha para a segunda fase tendo Barcelona como sede. Em um formato que ainda não contemplava o hoje tradicional mata-mata, um triangular seria disputado entre Brasil (favoritíssimo), Argentina (com Maradona em seu primeiro Mundial) e uma desacreditadíssima Itália, que só se classificou na bacia das almas após ridículas atuações na primeira fase (só com empates contra Camarões, Polônia e Peru, apenas dois gols marcados e dois sofridos). A descrença era tanta que até a imprensa italiana virou as costas para seu escrete que chegou ao Mundial abalado pelo escândalo das loterias do calcio, deflagrado em 1980.
O triangular teve início na capital da Catalunha com um surpreendente 2 a 1 da Itália sobre os argentinos, últimos campeões. O caminho das pedras? Simples: colar o carrapato Gentile em Diego Maradona até quando ele fosse ao banheiro. Com sua principal estrela anulada, os portenhos foram pressionados à segunda rodada para o embate contra o Brasil. Confiança? Nenhuma. Os argentinos sabiam da tempestade que estava por vir. E ela veio em forma de um rolo compressor.
O Brasil x Argentina daquele 2 de julho eternamente permanecerá no panteão afetivo da memória de quem o assistiu. Impecável jogo coletivo do escrete de Telê, com atuação estratosférica de Falcão e com um gol de Júnior após passe milimétrico, genioso e genial de Zico. Muitos podem depreciar o feito ligando-o à expulsão de Maradona após criminosa entrada em Batista, mas o fato é que nem dois Diegos atrapalhariam a seleção naquela esplendorosa tarde barcelonense. Um alinhamento de planetas que alçou aquele time ao inevitável patamar de maior favorito a conquistar a Copa. Mais três espetáculos aconteceriam e o título era apenas uma questão de tempo. Na minha casa, eu e minha irmã sabíamos que toneladas de jornais velhos nos esperavam para serem picadas. Mas nenhum dos dois reclamou.
O 5 de Julho nasceu carrancudo e nublado naquele inverno paulistano. Nada, no entanto, que atrapalhasse o clima de euforia na cidade. Ninguém dormiu direito naquela noite devido à adrenalina acumulada pelas quatro primeiras partidas. A contra a Itália, segunda e última daquele triangular trazia um ingrediente a mais de certeza pela classificação: um simples empate bastaria para a equipe avançar às semifinais. Mas quem queria saber de empate? O DNA ofensivo daquele time tornara impensável qualquer mudança tática a fim de preservar uma igualdade classificatória. Telê jogaria para a frente e pronto! Ninguém questionou isto na véspera. Contrastando com o dia nublado paulistano, um sol catalão apareceu com toda a sua força sobre o Estádio Sarriá. Cenário perfeito para mais um show brasileiro, certo? Errado. O clima já estava estranho na véspera, com Zico “baleado” após o jogo contra a Argentina, tornando-se dúvida para o embate e tendo sua escalação confirmada somente após teste físico nos vestiários. Pelo lado italiano, a guerra entre time e imprensa persistia. Ninguém botava fé naquele setor ofensivo que não marcava gols. A falta de fé, no entanto, despertou um gigante até então adormecido na Copa.
Estrela da Juventus, Paolo Rossi chegava desacreditado à Espanha após cumprir suspensão de dois anos por suposto envolvimento no escândalo das loterias, em 1980. E a falta de confiança do atacante refletiu-se em campo: zero gols marcados nas quatro primeiras partidas. Nem o papa João Paulo II apostaria suas fichas em Rossi contra o Brasil. E talvez, nem o próprio Rossi.
O jogo teve início ao meio-dia mas eu e minha irmã já estávamos de pé desde as oito para picar papéis, naquela doce rotina de Copa. Na escalação, o verdadeiro quadrado mágico (este sim, verdadeiro; não aquele embuste de 2006) estava confirmado: Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates abasteceriam Serginho Chulapa e Éder na frente. Nada poderia dar errado em campo. Mas deu! Justamente no setor defensivo. Setor este que viu em Paolo Rossi a caricata figura de uma “besta-fera”. Logo aos cinco minutos, uma marcação frouxa permitiu que Cabrini, com muito espaço, cruzasse na altura da marca do pênalti e encontrasse Rossi, livre de marcação para vencer Waldir Peres inapelavelmente num cabeceio na diagonal. O artilheiro dos gols perdidos finalmente acordara. E agora? Sete minutos depois, porém, Zico mostrou que sua escalação foi mais que acertada: drible de calcanhar desconcertante e passe açucarado para Sócrates executar o goleiro Dino Zoff! 1 a 1. Eu e minha irmã em festa na janela com a volta da atmosfera de sonho. Nada atrapalharia a classificação, certo?
A segunda etapa chegou como um doloroso teste cardíaco: um pênalti claro de Luisinho em Paolo Rossi não marcado. Apesar da partida pegada e sem a fluidez dos embates anteriores, veio um momento de redenção: Aos 23 minutos, Júnior foi da lateral à intermediária, passou por Conti e, de trivela, encontrou Falcão próximo à meia-lua. Às suas costas (e como um foguete), Cerezo tornou-se opção de passe mais do que óbvia. Mas o Rei de Roma mudou de ideia, puxou para a perna esquerda e acertou uma bomba no ângulo direito de Zoff. Um golaço digno de Copa! Em casa, eu e minha irmã jogamos quase todo o estoque de papel picado pela janela. Enquanto isso, meu irmão gritava o provável maior “PUTA QUE PARIU” de sua vida. Euforia evidenciada pelas veias saltadas no pescoço de Falcão durante a comemoração. Enfim, faltavam apenas 22 minutos para a classificação e desta vez, nada mais sairia errado, certo?
Errado! Pela terceira e última vez. Seis minutos depois, após o escanteio italiano, Sócrates atrapalhou Oscar ao tentar afastar a bola, que caiu nos pés de Tardelli num arremate de pé esquerdo. O que se tornaria uma defesa fácil para Waldir Peres encontrou um Paolo Rossi livre na pequena área, girando com a crueldade de grande carrasco para marcar o terceiro gol. O drama virara pesadelo e os minutos derradeiros machucaram corações em verde e amarelo ao redor do planeta, sobretudo após o milagre operado por Zoff após a cabeçada à queima-roupa de Oscar. O gigante goleiro, à época com 40 anos, pôs ponto final a toda e qualquer tentativa de reação da equipe de Telê.
Após o apito final, silêncio, lágrimas e incredulidade. Paolo Rossi vestiu-se da figura de morte para nos assombrar. O artilheiro que nunca fazia gols marcaria ainda por três vezes naquela Copa: duas contra a Bélgica, nas semifinais, e mais uma sobre a Alemanha, na final em Madrid. Assim como Maradona em 1986, ele fora determinante na glória italiana de 1982. Anos mais tarde, numa entrevista, confessou toda a sua admiração pelo nosso time. “O Brasil de 1982 era de outro planeta. Os melhores que vi jogar mas o que vocês queriam? Que eu não fizesse os gols?”, declarou da forma mais sincera possível.
Paolo Rossi nos deixou nesta última quarta-feira (9 de dezembro), aos 64 anos de idade, vítima de um câncer no pulmão. Para nós, foi um carrasco a ceifar nosso sonho. Mas era um carrasco longe de ser odiado. Fez pelo seu país, afinal, o que cada um de nós faria pelo nosso. E tornou-se um personagem a orbitar em nossas perturbadas cabeças e corações nos últimos 38 anos.
Voltando à minha casa, naquele 5 de julho de 1982, eu e minha irmã ainda quisemos arremessar pela janela a última remessa de papel picado. Meu irmão não permitiu, entretanto. Na hora não entendi, mas hoje o compreendo muito bem. Afinal, papéis picados foram feitos para ornamentar sonhos felizes.