Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

>> Volte aqui nesta segunda, quando será incluído o oitavo motivo desta matéria.

Series, TV

Game of Thrones

Por que o fim da série que se tornou objeto de culto pelo mundo todo decepcionou bastante os seus ardorosos fãs?

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Texto por Andrizy Bento

Foto: HBO/Divulgação

Após oito temporadas, 73 episódios e 47 Emmys (que a tornaram a série recordista de estatuetas na premiação), Game of Thrones teve seu último episódio exibido em 19 de maio pela HBO. No entanto, o que prometia ser épico, conseguiu ser apenas frustrante. Em meio à fúria despejada pelos fãs nas redes sociais – ainda mais cáustica que o fogo expelido pelos dragões de Daenerys Targaryen em seus inimigos – até havia um ou outro espectador argumentando que a finale teve, sim, suas qualidades e que o saldo final não foi tão ruim – de um ponto de vista analítico, houve até quem defendesse e justificasse as decisões tomadas pelo roteiro. Contudo, não há quem considere o último episódio da série realmente satisfatório.

Satisfatório é diferente de “atender às expectativas dos fãs e entregar exatamente o que eles querem ver na tela”. Em suma, está longe de significar fanservice. Assim como decepcionante não quer, necessariamente, dizer ruim. No caso de GoT, no entanto, a finale conseguiu ser os dois. Ao invés de proporcionar aos espectadores as devidas resoluções de conflitos e encerramentos de arcos narrativos, o desfecho deixou ainda mais pontas soltas e perguntas sem respostas – resultado sistêmico de toda uma temporada deficiente. Aliás, convém salientar que, desde a quinta, a qualidade da produção vinha caindo drasticamente.

Baseada na saga de livros best-seller As Crônicas de Gelo e Fogo, de autoria do escritor norte-americano George R. R. Martin, a série estreou em 17 de abril de 2011 na HBO. Ambiciosa, a produção idealizada por David Benioff e D. B. Weiss investia em cenas gráficas de nudez, sexo e violência e, por apresentar uma narrativa envolvendo a disputa por um trono e permeada por alguma magia, foi até mesmo apelidada de “O Senhor dos Anéis para adultos”. Claro que esses se tratavam apenas de alguns dos aspectos que tornavam o produto mais atraente. Porém, o estrondoso sucesso da qual a série desfrutou nos anos em que se manteve no ar, vai muito além das comparações com o livro de J. R. R. Tolkien ou do teor sexual e violento de suas cenas.

Sua consagração por especialistas e a assombrosa audiência que conquistou se devem a vários outros fatores: a força da narrativa, a entrega do elenco, o carisma de uma galeria numerosa de personagens, o acuro na composição dos planos, os enquadramentos soberbos, o requinte de cenários e figurinos, as batalhas magistralmente executadas e que em nada ficavam devendo a blockbusters cinematográficos, toda uma atraente rede de intrigas e um jogo de poder que nos instigava a acompanhar semanalmente os episódios. Não surpreende que a HBO, em estratégia para evitar a pirataria, tenha optado pela transmissão simultânea em mais de 170 países – o interesse do público era tamanho que GoT se tornou a série com o maior número de downloads ilegais no mundo. Afinal, quem não via Game of Thrones e não debatia acerca das teorias que constituíam um dos grandes atrativos da produção era imediatamente excluído das rodas de conversa nas segundas-feiras.

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A história é situada no continente fictício de Westeros, lar dos Sete Reinos e das terras inexploradas além da grande Muralha. Em linhas gerais, a série se propõe a narrar a luta de famílias nobres pelo Trono de Ferro ou por sua independência, recorrendo a violentos confrontos e alianças forjadas a partir de interesses políticos, em sua maioria, sórdidos. Esse é o fio condutor da trama.

A primeira temporada da produção tem início com a visita de Robert Baratheon – Rei e Senhor dos Sete Reinos – ao castelo de Winterfell, onde reside Ned Stark, o Protetor do Norte, junto de sua família. O objetivo da visita é fazer um convite formal a Ned para que ele seja a Mão do Rei – uma espécie de primeiro conselheiro. Este, no entanto, acaba tomando conhecimento acerca de uma conspiração que levou ao assassinato da Mão do Rei anterior e as suspeitas recaem sobre os Lannister, incluindo a Rainha Cersei e seu irmão Jaime, com quem ela vive um caso secreto e incestuoso.

Distante dali, no Mar Estreito, Viserys Targaryen, conhecido como o Príncipe Exilado, planeja o casamento de sua irmã, Daenerys, a Princesa de Pedra do Dragão, com Khal Drogo, líder do povo Dothraki – uma tribo de guerreiros que percorre o continente de Essos. Com o casamento, o príncipe exilado visa a conseguir um exército a fim de retomar o Trono de Ferro que é seu por direito. No passado, Baratheon conquistou a coroa assassinando Aerys II Targaryen (o Rei Louco) e Rhaegar – respectivamente, o pai e o irmão de Viserys. Após esse acontecimento, ele e a irmã foram exilados nas Cidades Livres do Continente de Essos. Desde então, o príncipe é movido pelo intenso desejo de vingar sua família e retomar o poder e a coroa a qualquer custo.

Assim, fomos arremessados aos bastidores cruéis e sangrentos da guerra dos tronos. A primeira temporada representou não apenas o ponto de partida, como o esboço a partir do qual se desenhou toda a série. Traçou cenários que, mais adiante, viriam a impactar as vidas e jornadas de dezenas de personagens. Inseriu simbologias e easter eggs que, no decorrer dos anos de exibição, vieram a fazer a diferença no todo. No entanto, da maneira superficial como foi colocado até aqui, não é possível compreender exatamente a razão que levou Game of Thrones a ser esse fenômeno de audiência. É realmente necessário assistir à série e acompanhar as reviravoltas da trama intrincada para entender os motivos de tanto estardalhaço em torno de GoT. O fato é que testemunhar a evolução dos personagens, a construção dos elos entre eles, a ganância e a sede de poder que ditavam os rumos do jogo, bem como todos os meandros que culminaram em batalhas colossais, é que tornou a jornada tão divertida de se assistir durante oito temporadas. Daí toda a ansiedade com que os espectadores aguardavam pelos domingos em que os episódios eram veiculados pela HBO.

Aprendemos a exercitar o desapego (afinal, um protagonista morre já na finale da primeira temporada!), nos acostumamos a prender o fôlego devido à aflição causada pelos épicos confrontos e ao temor de perder um personagem fan favorite. A produção nos presenteou com momentos gloriosos em termos televisivos como, por exemplo, o nono episódio da sexta temporada, o já clássico e plasticamente impecável A Batalha dos Bastardos, que dificilmente encontrará rival à altura em outro produto do gênero. Game of Thrones nos ensinou que, na guerra dos tronos, ou você ganha ou você morre – literalmente. Alimentou teorias, não teve pudores em abusar do fator surpresa, apresentou audaciosos e chocantes plot twists, jamais entregou somente o que o público queria ver, não se limitou a agradar à audiência. Seu legado é incontestável. Uma pena o fim dessa história ter deixado um gosto tão amargo na boca de seus fiéis espectadores.

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Desde que a série começou a ser exibida, no já longínquo ano de 2011, o mundo passou por transformações significativas no tocante ao cenário político, econômico e social. Esse tipo de mudança, não raramente, acaba por impactar e se refletir também na cultura pop. Normal, afinal a produção cultural e artística de qualquer época é sempre um retrato de sua geração, para o bem ou para o mal, em maior ou menor escala, intencional ou inconscientemente. No caso do recorte de tempo que compreende a exibição de Game of Thrones, por exemplo, as pautas feministas ganharam ainda mais força dentro e fora das redes sociais e ativistas vocais se dedicaram a apontar o sexismo enraizado em diversos livros, histórias em quadrinhos, roteiros de cinema e televisão. Muitas das cenas de estupro protagonizadas por personagens femininas relevantes passaram a ser questionadas e duramente criticadas – uma vez que algumas delas tratavam-se de cenas de sexo consensual nos livros e outras sequer existiam em sua mídia de origem. Ao longo das temporadas, a nudez (majoritariamente feminina) e o sexo (por vezes gratuito) diminuíram exponencialmente, bem como a violência tornou-se mais contida e menos sangrenta. Contudo, a despeito do desenvolvimento das personagens femininas, que passaram a ter mais do que seus corpos expostos e a violência sexual tida como o rito de passagem que as fortaleceu, foram elas as mais injustiçadas no último ano da série.

É simplesmente lamentável ver como as mulheres de GoT foram diluídas no decorrer de toda essa temporada final. O roteiro se concentrou na rivalidade entre elas; em expor fraquezas, fragilidades e vaidades das mesmas; em mostrar como elas não sabiam lidar com o poder. Cersei Lannister, uma vilã inteligente e uma das maiores estrategistas da trama, ganhou desfecho abrupto e totalmente insípido. Apesar de ter sido Arya Stark a derrotar o grande vilão, Rei da Noite, sua tão almejada vingança contra Cersei não foi concretizada e a personagem limitou-se a ver Porto Real se transformar em destroços e cinzas, enquanto Daenerys Targaryen sobrevoava a cidade em seu Dragão que, impiedosamente, cuspia fogo em mulheres e crianças inocentes. Sansa Stark, que havia crescido tanto como personagem, foi reduzida ao papel de uma garota caprichosa que não queria ter seu reinado, no Norte, ameaçado. E Daenerys… A figura forte, imponente, majestosa, intrépida e destemida – um exemplo de heroína que apresentou uma das evoluções mais notáveis ao longo da série – simplesmente enlouqueceu. Tornou-se a Rainha Louca, facilmente corruptível pelo poder, herdando o temperamento de seu pai e, ao invés de quebrar a roda (como proclamava) corroborou o discurso simplista de que a descrição da Casa à qual o indivíduo pertence dita todo o rumo de seu destino. Pior: terminou a série morta pelo punhal do homem a quem amava e que também tinha seu sangue – seu sobrinho, Aegon Targaryen, mais conhecido como o bastardo Jon Snow.

E a coerência desapareceu à medida que o inverno chegou.

Eis um problema flagrante de toda produção seriada. Existe uma ânsia incompreensível dos showrunners por querer encerrar todos os arcos narrativos apenas no último capítulo, ao invés de responder às perguntas gradativamente, fechar os ciclos aos poucos, de modo orgânico. Creio que o mais adequado seria dedicar uma ou duas temporadas para resolução de todos os conflitos e, assim, oferecer desfechos satisfatórios para cada personagem. Game of Thrones foi um exemplo e, infelizmente, não o único de uma trama que acumulou muitas questões a serem resolvidas somente na finale e, óbvio, não conseguiu contemplar todas elas.

Outra possível explicação para o resultado ter ficado tão aquém do esperado está no fato de a história ainda não ter sido finalizada nos livros. Porém, esses argumentos não são suficientes para justificar uma finale tão ruim, uma vez que a série possuía força o bastante para se sustentar de maneira independente, como qualquer bom produto transmídia deve fazer. Existe um sem número de erros crassos de continuidade e cenas que, simplesmente, não fizeram sentido para o espectador atento que, assim como o Norte, se lembra disso depois. E, diferentemente dos Lannister, os roteiristas não pagaram todas as suas dívidas.

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A última temporada trai toda a mitologia da saga tão cuidadosamente arquitetada até ali, joga para escanteio a construção e o desenvolvimento de personagens, traz diálogos que contradizem o cânone e a essência da trama. Sim, Game of Thrones sempre trabalhou com reviravoltas, traições, choque, morte de personagens importantes. O problema não são estes mecanismos – que, aliás, movimentaram a trama desde seu primeiro episódio e com os quais estávamos plenamente habituados, convém dizer. O problema é como eles foram utilizados, escancarando a falta de planejamento de produtores e roteiristas. Esses artifícios foram despejados na tela de maneira simplesmente desleixada.

As falhas, no entanto, não são apenas de ordem narrativa, mas também estética. Um nítido exemplo é a batalha contra os White Walkers, que prometia ser o ápice da trama desde o primeiro episódio, e é extremamente inferior ao acuro visual da Batalha dos Bastardos. Entre copos da Starbucks esquecidos nas mesas de jantar de Winterfell e um confronto nonsense contra a Frota de Ferro, liderada por Euron Greyjoy – que resultou na morte anticlimática de um dragão – tudo foi absurdamente descuidado. Porém, nada foi mais incoerente, insatisfatório e insosso do que o conselho formado para deliberar sobre o novo rei após a morte da Rainha Daenerys Targaryen. Nas palavras de Tyrion Lannister:

“O que une as pessoas? O ouro? Os exércitos? As bandeiras? As histórias. Não há nada mais poderoso no mundo que uma boa história. Ninguém pode detê-la, nenhum inimigo pode vencê-la. E quem possui histórias melhores que Bran, o Quebrado? O menino que como não podia andar aprendeu a voar…”

O menino que passou a série inteira sem fazer absolutamente nada e se tornou, primeiramente, o Corvo de Três Olhos para então virar rei…

O discurso de Tyrion é interessante e bem escrito, mas um desperdício de palavras bonitas expressas pelo personagem que, durante oito temporadas, destacou-se como o mais profícuo emissor de quotas contundentes e memoráveis.  As palavras do outrora sábio anão estão lá unicamente para disfarçar a negligência dos roteiristas. O grande conselho é uma das piadas mais mal contadas da finale, pois é formado por nada menos do que três membros da Casa Stark, um tio dos Stark, um primo dos Stark, amigos dos Stark, uma cavaleira juramentada a proteger a Casa Stark, um Dorne, uma Greyjoy, mais alguns figurantes e um prisioneiro! Não sei dizer exatamente o que dói mais, se é o fato de que está óbvio quem seria favorecido por um conselho formado por estes membros ou Tyrion, prisioneiro por ter traído Daenerys, ter indicado o nome de Bran e, praticamente decidido o novo governante de Westeros – e ainda com o bônus de ser a Mão do Rei.

E isso não é tudo: por que Tyrion, prisioneiro, pôde participar da votação e Jon, igualmente encarcerado e com sangue Targaryen, não? Onde estão os membros representantes de outras Casas? Aqueles presentes na reunião do conselho não compreendem nem metade das famílias nobres de Westeros. Aliás, toda essa sequência serviu, especialmente, para embasar um futuro cenário de instabilidade política; afinal, as outras Casas podem, e com razão, questionar o favorecimento aos Stark considerando os componentes desse conselho fajuto. Sem falar do fato de Bran ter concedido a independência ao Norte. Quanto tempo mais até os demais Reinos reivindicarem a independência utilizando o Norte como argumento e isso resultar em uma nova guerra? Ademais, a figura de Bran como rei simplesmente não convence, pois não foi bem construída. Bran, o Quebrado, nunca teve aspirações ao trono e não fez nada de realmente útil durante toda a série que justificasse sua coroação. Ele nem mesmo queria ser rei. E esse papo de que é exatamente não desejar a coroa que o torna merecedor, simplesmente não funciona dentro daquele universo proposto.

Oito anos após o primeiro suspiro de Westeros na telinha, finalmente chegamos ao final da saga – uma finale que nos ofertou apenas um trono queimado (metáfora política sobre a destruição da iconografia; dos símbolos de poder capazes de corromper e que precisam ser derrubados); Porto Real transformada em cinzas; Tyrion Lannister, um fan favorite outrora inteligente e brilhante orador, reduzido ao papel de um fraco, traidor, guiado pelas emoções, capaz de atos estúpidos e autor de algumas das frases mais problemáticas da temporada; Daenerys, uma personagem feminina forte convertida em uma tirana genocida e, posteriormente, morta pelo seu amado; Jon Snow, o bastardo que continuou bastardo e se uniu aos selvagens do Povo Livre nos derradeiros momentos do show; Bran, o Quebrado, como um rei inexpressivo e inexperiente em relação aos assuntos da coroa; e, enfim, um final feliz para os Stark como recompensa por ter sido a família que mais sofreu desde o primeiro ano de série e que, talvez, tenha sido um dos únicos pontos gratificantes para uma relativa quantidade de espectadores. Eis o saldo final de Game of Thrones. Um fim melancólico, insuficiente e decepcionante.

Music

Tropicália 50 anos

Cinquenta curiosidades para celebrar o meio século de lançamento do disco-manifesto do movimento que revolucionou a música brasileira

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Texto por Abonico R. Smith

Fotos: Reprodução

Neste mês de julho de 2018 comemora-se meio século do lançamento de Tropicália ou Panis Et Circencis, o álbum-manifesto do coletivo de artistas que participou do movimento estético-sonoro que revolucionou a música popular brasileira no decorrer dos doze meses de 1968. Para marcar a data, o MONDO BACANA publica uma lista com cinquenta curiosidades a respeito desse disco e de toda a efervescência tropicalista no ano que agitou as artes, a cultura e a juventude não só no Brasil como em outras partes do planeta.

>> Apesar do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis ter sido lançado em julho de 1968, o marco zero do movimento ocorreu no final do ano anterior. Mais precisamente quando Gilberto Gil e Caetano Veloso defenderam, respectivamente, as músicas “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria” nas duas últimas eliminatórias do Festival de Música Brasileira, promovido pela TV Record em São Paulo, ocorridas em 7 e 14 de outubro de 1967. Gil e Caetano foram dois dez autores que escolherem interpretar a própria canção. O primeiro foi acompanhado pelos Mutantes. O segundo, pelos argentinos do Beat Boys. Na final, realizada na noite de 21 de outubro, a música de Gil foi premiada com o segundo lugar e o melhor arranjo. A de Caetano ficou em quarto.

>> Gil e Caetano foram cirúrgicos para realizaram o seu plano de renovação da música nacional. Desanimados com o marasmo da manutenção da tradição no meio dos cantores e compositores, eles decidiram romper com o violão e o tom manso da bossa nova e outros brasileirismos ao incluir a linguagem vigente das guitarras e bandas do rock que rolava na Europa e Estados Unidos. Uma das propostas do movimento que queriam lançar era promover misturas sonoras sem barreiras geográficas e ousar ao promover o resgate de ritmos e gêneros deixados de lado na MPB dos anos 1960, como o bolero, o baião, a capoeira e a marchinha carnavalesca. “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria” se encaixavam nestes dois últimos exemplos. Para ganhar maior exposição, escolheram “lançar” a novidade utilizando o meio de comunicação mais popular da época, a televisão. Ambos foram bastante vaiados por boa parcela do público, ligado tanto ao movimento universitário de esquerda, afeito às canções de protesto que pipocaram no Brasil nos primeiros anos da ditadura militar, quanto os mais purista e tradicionalistas. O público em casa, porém, reagiu de forma diferente. Com a projeção do festival anual da Record, “Alegria, Alegria” vendeu a marca de mais cem mil compactos nas semanas posteriores à final daquela edição. Caetano passou a ganhar convites para se apresentar em diversas capitais brasileiras e ascendeu rapidamente à condição de popstar, tendo visto  inclusive seu casamento com a atriz e jornalista Dedé Gadelha transformado em evento social pela imprensa e acompanhado por uma multidão em Salvador.

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Gilberto Gil (1967)

>> O impacto de Gil e Caetano neste festival aliou vestuário e música. Para começar eles subiram ao palco esnobando toda a tradição masculina de cantar de modo comportadinho, atrás do microfone, vestindo fraque ou um traje preto mais social. Caetano, por exemplo, subiu ao palco da final do evento de terno xadrez e blusa de gola rolê laranja, tendo o acompanhamento dos músicos do Beat Boys vestindo rosa. Gil, por sua vez, foi na eliminatória de sapato sem meia e boné, camisa social de manga curta em tom bem mais claro. Já os Mutantes estavam bem espalhafatosos. Sergio usava capa preta e calça jeans. Arnaldo, um paletó esporte com gravata. Rita, uma bata branca, cabelo ruivo preso e um pequeno coração desenhado na bochecha. Outro escândalo foi o uso do efeito fuzz por um dos guitarristas dos Beat Boys para tocar o riff que começa já na introdução do arranjo e se repete logo após o refrão. Este pedal foi feito para sujar o som do instrumento e estava muito em voga no rock daquele época. Jimi Hendrix e Keith Richards eram adeptos deste recurso.

>> O empresário Guilherme Araújo, que representava Caetano, Gil, Gal Costa e os Mutantes, não se restringia apenas a funções executivas na administração das carreiras. Dava pitacos em composições, vestuário, performances e, acima de tudo, era bastante ágil no meio-de-campo com a imprensa, plantando notas, reportagens e entrevistas nos principais veículos do eixo Rio-São Paulo. Este detalhe ajudou bastante na popularização do Tropicalismo.

>> No final de 1967, Caetano havia composto uma canção, ainda não batizada, no qual ele exaltava, através de versos com bastante força imagética, e cultura e da História brasileira. Aviões, caminhões e chapadões; o planalto central, a bossa nova, Machado de Assis, a praia de Ipanema, Carmen Miranda, “A Banda” de Chico Buarque, a mulata, o sertão, a mata, o Nordeste, a Bahia, a roça, a violência urbana e a Jovem Guarda de Roberto Carlos: a letra era repleta de alegorias e citações. Luiz Carlos Barreto, produtor de cinema e fotografo do filme Terra em Transe (um dos favoritos de Caetano na época) sugeriu ao amigo e autor que desse à canção o nome de uma obra do artista plástico Hélio Oiticica, então exposta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Tropicália, a obra de Oiticica, consistia em uma instalação com um ambiente formado por duas tendas penetráveis, com areia e brita no chão, um cenário tropical formado por araras e vasos de plantas e, no final do percurso, já quase às escuras, um aparelho de televisão ligado. Batizada provisoriamente como “Tropicália”, apesar do contragosto inicial por dar uma ideia de algo mais “exótico” e menos universal, a canção ficou com este nome, segundo o compositor baiano, por falta de uma outra sugestão melhor.

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Caetano Veloso (1967)

>> “Tropicália”, a música, foi gravada no final de 1967 junto com outras novas obras de Caetano, para aproveitar a esteira do sucesso no Festival da Record e as vendagens do compacto “Alegria, Alegria”. O maestro Rogério Duprat, o mesmo que bolara para Gil o arranjo de “Domingo no Parque”, mandou ligar o som do microfone no estúdio, para começar a gravação. O percussionista Dirceu, como teste, passou a narrar o episódio da descoberta do Brasil. “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei. Tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce”, soltou. E emendou, em tom de gozação, “e o Gauss da época gravou”, referindo-se ao técnico de áudio Rogério Gauss. Este trecho, feito no mais puro improviso, foi incorporado como a abertura do arranjo, com a adição de sons tropicais. Estava pronto o grande manifesto do movimento bolado por Caetano e Gil. O álbum, primeiro solo de Caetano, já que o anterior havia sido dividido com Gal Costa, foi lançado pela gravadora Phillips (depois PolyGram e hoje Universal) logo nos primeiros dias de janeiro de 1968. A produção era assinada por Manoel Barenbein e a capa pelo artista gráfico baiano Rogério Duarte. Outras faixas de destaque deste disco foram “Superbacana” e a caribenha “Soy Loco Por Ti, América”, composta em português e espanhol por Gil e Capinan no dia em que foi anunciada a morte do líder revolucionário Che Guevara, em outubro de 1967.

>> Hélio Oiticica, em um ensaio também intitulado Tropicália, escrito em março de 1968, disse que sua intenção ao criar a homônima obra exposta no MAM carioca, era abordar o mito da miscigenação, “Somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo. Nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver a consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio.”

>> Vale a pena lembrar também que Caetano escreveu os versos da música “Tropicália” dias depois de assistir à montagem antropofágica e repleta de desbunde de O Rei da Vela, do Grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa. A encenação baseou-se no original de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e publicada quatro anos depois. A única obra teatral do clássico integrante do movimento modernista brasileiro nunca havia sido apresentada publicamente antes, por ser considerada inviável para tal. Seus personagens retratam um cenário de decadência e degradação, estando envolvidos em casas de falcatruas, exploração, falta de moralidade e sexualidade alvoraçada.

>> Muitas das ideias do Movimento Antropofágico escritas por Oswald de Andarde três décadas antes norteavam a filosofia do grupo de José Celso. Duas frases, segundo o diretor, em uma entrevista da época, duas das frases de Oswald que mais determinavam as atitudes do Oficina eram “pela unificação de todas as revoltas numa direção só” e “pela contribuição milionária de todos os erros”.

>> Além das ligações com a literatura, o teatro e o Cinema Novo brasileiro, a Tropicália também manteve, por conta de suas letras, fortes laços com os papas do movimento da poesia concreta no país, Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos.  A simpatia entre os lados era nutrida por ambas as partes.

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Mutantes (1968)

>> Se o disco de 1968 de Caetano chegou às lojas a toque de caixa, o de Gil, também o segundo da carreira, demorou quatro meses mais. Também com as assinaturas de Duprat, Barenbein e Duarte em suas respectivas funções técnicas. Os Mutantes serviram como a banda de apoio para todas as faixas. A capa de Duarte trazia três fotos de Gil (em poses de roupas de imortal da Academia Brasileira de Letras, um militar cheio de condecorações a la Sgt Pepper’s e um debochado piloto segurando apenas o volante de seu automóvel) entre grafismos em verde, amarelo e vermelho. Entre as dez faixas está a regravação de “Procissão” com um tempero um pouco mais pop dado por Rita Lee e os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista.

>> Em junho foi a vez da Phillips soltar o álbum de estreia dos Mutantes, também sob a batuta da dupla Barenbein e Duprat. Para a música de abertura, “Panis Et Circencis”, composta de presente para a banda por Caetano e Gil, o maestro e os músicos simularam um efeito curioso e até então inédito no rock mundial: o de parecer que alguém tropeçou no fio do toca-discos e desligou o aparelho da tomada. No mesmo arranjo, em complemento com o verso da letras que fala sobre “as pessoas na sala de jantar”, Mutantes, Rogério, técnicos e presentes no estúdio simularam uma mesa na hora da hora da refeição, com muita conversa e barulho de talheres, copos e pratos. Outros destaques são a versão do trio para “Baby”, de Caetano Veloso, e uma faixa inédita também composta de presente para o grupo por Jorge Ben, outro dos empresariados por Guilherme Araújo na época. Em seu livro Uma Autobiografia, Rita Lee conta que foi até a casa do amigo pedir uma música para o disco. Ele, que havia passado a noite com uma garota em sua casa, abriu a porta, sentou-se ao violão e compôs em poucos minutos o samba-rock “Minha Menina”. Na faixa “Le Premier Bonheur Du Jour” (regravação de uma música da francesa Françoise Hardy de 1963), Rita Lee entrou no estúdio com uma bomba de Flit para simular o som do chimbau. O Flit era um inseticida popular na época. Usado com a ajuda de um vaporizador primitivo, anterior ao aerosol).

>> Afinal, o nome do movimento é Tropicália ou Tropicalismo? “Tropicália”, a música de Caetano Veloso, transformou-se em manifesto de toda a história, emprestando seu nome para definir toda a turma que se juntou em torno das ideias revolucionárias dos dois baianos. Porém o segundo batismo, com o acréscimo do sufixo “ismo” acabou sendo adotado popularmente por conta do jornalista Nelson Motta, que através da coluna sobre música que escrevia no jornal Última Hora. Tudo surgiu numa roda de conversa em uma mesa de bar, quando Motta se divertia com os amigos Luiz Carlos Barreto e os cineastas Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl. Ao concluir um cenário inovador estava se formando nas artes brasileiras, a turma começou a bolar um conjunto de ideias, figurinos, celebrações e comportamentos que embasariam o dia-a-dia da revolução. Nelsinho reproduziu toda esta nova filosofia em detalhes em seu textos sob o título de “A cruzada tropicalista”, publicado no dia 5 de fevereiro de 1968.

>> A coluna de Nelson Motta foi o estopim que faltava para chancelar o movimento no inconsciente coletivo, enquanto a popularidade dos artistas aumentava a passos largos em todo o país. Enquanto isso o modo tropicalista de ser contagiou o Rio de Janeiro, com o surgimento de blocos carnavalescos de rua, supostos cantores ligados ao movimento e ainda o interesse da indústria têxtil em produzir roupas e peças de vestuário ligadas ao movimento (a Rhodia passou a patrocinar turnês nacionais e programas de TV com os principais ícones, enquanto anunciava o batismo de sua coleção de 1968 como Tropicália, com muitas estampas de bananas e outros signos ligados à brasilidade). Todo este hype provocou uma ideia na Phillips: encomendar um disco-coletivo do movimento aos seus criadores, Gil e Caetano, e com a participação de seus principais vértices na música, nos vocais e nas letras.

>> Ilustrando a cartilha tropicalista de Motta em sua coluna estava a foto do cantor Vicente Celestino, não a de Gil, Caetano, Gal ou Mutantes. Nos últimos anos andava com a carreira – de quase duzentos discos gravados desde 1915 – em baixa, por conta de ser considerado cafona o conjunto de seu vozeirão de tenor e as letras trágicas dos boleros que gravava. Caetano Veloso, fã assumido das canções populares eternizadas pelo rádio brasileiro nas décadas anteriores, foi quem trouxe Celestino para o movimento. Gravou uma releitura “Coração Materno” para o disco-coletivo que a Phillips viria a lançar em julho. No dia 23 de agosto, o cantor – que também era ator – seria um dos participantes e homenageados do programa de TV (ao lado de Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira e as irmãs Dircinha e Linda Batista) que os tropicalistas iriam gravar em São Paulo. Nos ensaios, horas antes, discutiu de modo áspero com Gil, por não concordar com algumas das ideias mais ousadas do baiano e foi de volta para descansar um pouco no quarto do hotel onde estava hospedado em sua estadia na cidade. Entretanto, morreu minutos depois de um ataque do coração, no mesmo quarto desse hotel, aos 74 anos de idade.

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Nara Leão (1968)

>> Outra figura importante que gravitava em torno da turma tropicalista era Nara Leão. Durante uma viagem à Bahia em 1964, ela viria a conhecer dois dos irmãos Viana Teles Veloso, Caetano e Maria Bethânia. Ao retornar, quando adoeceu por um tempo e não pode se apresentar no espetáculo Opinião, considerado um dos símbolos do protesto artístico contra a ditadura militar. Indicou Bethânia para ocupar provisoriamente o seu lugar, num ato que lançou em definitivo a carreira nacional da baiana. Nara, nos anos 1960, pautava a carreira sem se importar em se fixar a rótulos ou limitações musicais. Era considerada a musa da bossa nova desde a adolescência mas expandiu seu talento cantando música de protesto e subindo os morros cariocas para trazer o samba ao cenário artístico da Zona Sul carioca. Nara e Caetano se recusaram a participar da tal passeata contra a presença do imperialismo norte-americano na música brasileira, promovida em 1967 e que também ficou conhecida como a tal manifestação “contra a guitarra elétrica”. Ambos ficaram na sacada do Hotel Danúbio, em São Paulo, vendo o “desfile” comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues (apresentadores de O Fino da Bossa), com a presença de MPB4, Dori Caymmi, Edu Lobo, Geraldo Vandré e, por incrível que pareça, Gilberto Gil. Ele fora convencido pela amiga Elis a estar junto em um evento que fora criado pelo dono e fundador da Record, Paulo Machado de Carvalho, como forma de fazer um grande factoide que chamasse a atenção da imprensa e da população para os festivais e programas musicais de emissora. Gil, por sua vez, também tinha interesse em continuar sendo figurinha carimbada na grade musical da Record.

>> Maria Bethânia também tinha um posicionamento de carreira parecido com o de Nara, o de não querer ficar marcada com apenas um rótulo ou gênero musical. Por isso, apesar de sempre dar palpites e opiniões nos bastidores, nunca quis aparecer como uma cantora ligada à Tropicália. Deste modo, não aparecia em shows e programas de TV que reunia a turma ligada ao movimento. Também não participou, pelo mesmo motivo, do disco-coletivo bolado pela Phillips.

>> As gravações para o disco-coletivo da Tropicália ocorreram ao longo do mês de maio de 1968. O projeto foi coordenado por Caetano, que também selecionou o repertório e concebeu quem ficaria com o quê e quantas faixas. Entre os autores das canções (algumas inéditas) estavam ele próprio, Gil, Tom Zé e mais os letristas Capinan e Torquato Neto. Quatro baianos e o último nascido em Teresina, no Piauí, mas radicado dos 16 aos 18 anos de idade em Salvador, onde conhecera os outros e fez os últimos anos de colégio.

>> Apesar de dar título ao disco, a canção “Tropicália” não estava presente no repertório. Entretanto, o tom de manifesto estava presente em outras letras, como “Geleia Geral” (parceria de Gil e Torquato cujo nome foi “emprestado” por um expressão cunhada por Décio Pignatari), “Miserere Nobis”, “Panis Et Circencis” e, sobretudo, “Parque Industrial”. Esta canção, de autoria de Tom Zé e com os vocais divididos pelo autor com Gal, Gil e Caetano . Em sua canção – que também viria a ser gravada apenas por ele em seu primeiro álbum solo – Tom Zé colocava nos versos bandeirolas, céu de anil e o rótulo made in Brazil no refrão para lá de grudento.

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Rogério Duprat (1968)

>> Batizado Tropicalia ou Panis Et Circencis, o disco-manifesto coletivo é inteiro cheio de citações. O maestro Rogério Duprat exerceu a criatividade para fazer pequenas inserções incidentais dentro dos arranjos. “Geleia Geral”, cantada por Gil, ganhou trechos da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, e de duas canções pop internacionais (“All The Way”, gravada com sucesso por Frank Sinatra em 1957, e “Pata Pata”, então hit recente de Miriam Makeba). Em “Parque Industrial”, Duprat colocou frases do “Hino Nacional Brasileiro” com um trecho do jingle publicitário do analgésico Melhoral. “Geleia Geral”, além da frase-título de Pignatari, traz também a repetição literal de uma frase do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (“A alegria é a prova dos nove”).

>> “Lindoneia” foi composta por Gil e Caetano a pedidos de Nara Leão, para ela gravá-la neste disco. A cantora ficou tão impressionada por um quadro do pintor Rubens Gerchman, chamado Lindoneia ou a Gioconda do Subúrbio, que  pediu uma canção para contar a história da personagem do quadro. Caetano, então, esboçou uma letra repleta de policiais, sangue e cachorros atropelados. O que acaba contrastando com o ritmo de bolero e a suave voz de Nara narrando melodicamente tudo isso.

>> Apesar de ter sido lançada um mês antes no álbum de estreia dos Mutantes, a gravação de “Panis Et Circencis” também foi incluída no Lado A do vinil. Ajudou a popularizar o álbum-manifesto, já que os Mutantes – presentes aqui em cinco faixas no total – transformaram-se em estrelas do movimento por terem obras autorais e ainda serem banda de apoio de apresentações ao vivo e gravações de Caetano e, sobretudo, Gil. Os dois, autores desta faixa, aproveitaram para incluir uma lembrança da vida pré-fama e pré-Tropicália. Quando morou no Rio de Janeiro depois de vir da Bahia, Caetano Veloso passou um tempo alugando um quarto/apartamento no Solar da Fossa, um casarão colonial situado no bairro de Botafogo, que abrigou temporariamente muitos artistas e intelectuais vindos de diversas patês do país e mesmo de outros bairros mais distantes do Rio de Janeiro. O sambista Paulinho da Viola foi um destes e, por morar em frente à porta de Caetano, foi um dos primeiros privilegiados a ouvir a recente composição de “Alegria, Alegria”. As tais “folhas de sonho plantadas no jardim do Solar” da letra referem-se à maconha consumida livremente na região externa da construção, demolida em 1972 e em cujo terreno hoje está situado o shopping center Rio Sul.

>> A grafia da canção dos Mutantes que aparece no álbum está errada. A expressão correta em latim é “Panis Et Circenses”. Também existe a variação “Panem Et Circenses”. Em português, a expressão significa “pão e circo”.

>> Escrita por Capinan, a letra da faixa de abertura “Miserere Nobis” também se utiliza de uma expressão em latim em seu título. Em português, a frase significa “tende piedade de nós”. Esta é um trecho da oração Agnus Dei (Cordeiro de Deus). Nas entrelinhas, é uma prece para que o Brasil conseguisse se salvar sem maiores sofrimentos pela etapa da ditadura militar iniciada em 31 de março de 1964. O final, entretanto, é bem explícito. “Bê-rê-a, Bra/ Zê-i-lê, zil/ Fê-u, fu/ Zê-i-lê, zil/ Cê-a, Cá/ Nê-agá-a-o,til, não).

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Torquato Neto (1968)

>> “Coração Materno” é uma das três regravações do álbum. Nela, a interpretação suave de Caetano sobre o arranjo de cordas bolado por Duprat disfarça um pouco da tragédia da letra, que narra a história de um camponês que assassina a própria mãe somente para provar o quão verdadeira é a sua paixão por uma mulher. Ao lado de Gil, o baiano também é o intérprete da versão em português de “Três Caravelas”, feita por Braguinha e gravada aqui com escancarado molho musical caribenho. A última faixa do disco é “Hino ao Senhor do Bonfim”, obra cívica e religiosa, composta em 1923 em louvação à famosa Igreja do Senhor do Bonfim, monumento histórico, turístico e devocional de Salvador. Além de Gil e Caetano, participam da faixa os Mutantes e Gal Costa.

>> A mesma quadra de artistas gravou a faixa imediatamente anterior, “Bat Macumba”. Neste experimento visual e sonoro, Gil e Caetano fazem uma poesia concreta com a frase “Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá”. Primeiro vão eliminando uma sílaba final por vez da frase até restar o mínimo dela (o fonema “ba”). Em seguida, fazem o mesmo, agora acrescentando a sílaba final até formar de novo a frase completa. Apenas um detalhe: na hora de falar “batma”, a letra sugere uma pequena modificação para “batman”. Nesta expressão, a dupla reúne um pouco da essência da Tropicália, que era unir a cultura popular brasileira ao melhor das referências sugadas do exterior, no melhor estilo antropofágico dos modernistas dos anos 1930. Assim a cultura afrorreligiosa de grande força no estado natal dos compositores se mistura ao mais cultuado super-herói dos quadrinhos exportados pelo “imperialismo” norte-americano.

>> “Enquanto Seu Lobo Não Vem” traz, pela primeira vez, Rita Lee cantando sem a presença dos irmãos Dias Baptista, ao lado de apenas Gil e Caetano. Na letra, uma esperta comparação entre o carnaval carioca (especialmente o desfile da escola de samba Estação Primeira de Mangueira) com os clarins de uma banda militar. Aqui as entrelinhas dirigidas ao golpe de 1964 e a interferência norte-americana na soberania brasileira também podem ser identificadas, ainda mais em relação ao perigo à espreita que a frase do título explicita – em uma clara citação ao clássico conto de fadas Chapeuzinho Vermelho.

>> “Mamãe, Coragem” é a única faixa solo de Gal Costa no disco. Parceria de Caetano com o letrista e poeta Torquato Neto, os versos fazem referências à vida e a família do piauiense. Mas também pode servir de metáfora para o despertar de um novo tempo e a aceitação de algo nunca mais acontecer ou alguém nunca mais poderá estar junto. Também cai como uma luva para os tempos bicudos e de extrema repressão governamental que a juventude brasileira estava começando a viver naquele ano de 1968.

>> “Baby”, de Caetano Veloso, aparece aqui em sua segunda gravação oficial (a primeira fora lançada um mês antes, no disco dos Mutantes; a terceira seria lançada em 1969 no primeiro álbum solo de Gal Costa). Abrindo o lado B do vinil, Caetano e Gal voltam a fazer dupla de vocais, como fizeram em várias faixas do álbum Domingo, de 1967. É basicamente uma canção objetivamente pop, construída por uma base de acordes maiores. A letra, aparentemente ingênua, faz uma lista de necessidades diárias de um jovem de classe média e morador de uma grande metrópole brasileira naquela década de 1960.

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Tom Zé (1968)

>> A foto da capa do disco, que reúne todas cabeças pensantes da Tropicália não teve um conceito pensado muito antes. Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat fizeram tudo como um happening, prática um tanto vanguardista para artistas populares brasileiros da época. Duprat conhecia o fotografo Olivier Perroy, que na época fazia trabalhos para a Editora Abril, situada também em São Paulo. A sessão foi marcada para a residência de Perroy, uma casa próxima à Avenida Brigadeiro Faria Lima, na altura do Esporte Clube Pinheiros. O local interno escolhido foi o jardim de inverno. Rita Lee e Guilherme Azevedo palpitaram nas roupas, com predominância das cores verde e amarelo Para a composição de um cenário tropicalista foram feitas algumas bananeiras de papel crepom, mas os artefatos acabaram descartados na hora dos cliques. O prazo curto para a realização das fotos impediu a ida a SP de Nara Leão e Capinan, que moravam no Rio. Os dois, então, acabaram representados por retratos emoldurados (o do letrista remetia ao dia da sua formatura escolar, na Bahia). Tom Zé segura uma velha valise para parecer que havia acabado de chegar do Nordeste (por sugestão de Araújo, que detonou o terno então usado pelo artista para ir até o local). Ele e mais os três Mutantes aparecem ao fundo, estando os irmãos a segurar seus instrumentos de cordas. No meio, em um banco, estão sentados Caetano (quase desaparecendo atrás do retrato de Nara), Gal e Torquato. Gil está bem à frente, sentado no chão, com a foto de Capinan ainda menino. À esquerda, também no banco, está Rogério Duprat na pose mais curiosa e aberta a interpretações de todas. No melhor estilo Marcel Duchamp, ele segura um grande penico, encontrado dias antes na casa de uma tia, como se fosse uma xicara de chá.

>> Duprat foi algo como o maestro oficial dos tropicalistas, o George Martin desta turma, aquele que procurava transpor para as gravações as ideias mais malucas e aparentemente impossíveis de serem concretizadas. Tinha menos de 40 anos de idade na época. Nascido em 1932, no Rio de Janeiro, ele teve sua iniciação musical quase por acaso, aprendendo a tocar “de ouvido violão, cavaquinho e gaita harmônica. Na adolescência iniciou sua formação erudita. Em 1956, com apenas 24 anos, foi membro fundador da Orquestra de Câmara de São Paulo. Também foi para Alemanha para estudar com o professor Karlheinz Stockhausen, um dos maiores nomes da música contemporânea do Século 20. Neste período teve entre seus colegas de classe o norte-americano Frank Zappa. De volta ao Brasil, em 1963 tornou-se um dos pioneiros da música eletrônica no país. Ao lado do amigo e também maestro Damiano Cozella, usou um computador IBM 1620 da Escola Politécnica da USP para compor uma peça intitulada Klavibm II. Lecionou na Universidade de Brasília, de onde saiu em 1964 por causa da intervenção do governo militar na instituição. Mudou-se para São Paulo. Indicado aos tropicalistas pelo também amigo e maestro Julio Medaglia, Duprat dizia não gostar de música. Pelo menos a convencional. Achava tudo um grande tédio e não via brilho em repetições de fórmulas. No auge da popularidade da Tropicália, ele reuniu experientes músicos de orquestras (mais cantoras da noite, o produtor Barenbein e os próprios Mutantes) e lançou para a Phillips o álbum A Banda Tropicalista do Duprat, misturando rock e instrumentos clássicos e fazendo verões desbundadas de grades clássicos pop e da música brasileira. O disco foi um fracasso de vendas e atualmente o vinil é peça rara e disputada a tapas por colecionadores. Na década de 1970, Duprat trabalhou com o grupo progressivo O Terço, o cantor e compositor Walter Franco e o grupo vocal de disco music Frenéticas. Ao mesmo tempo, compôs diversas trilhas sonoras de filmes nacionais e jingles publicitários. Gradativamente foi se afastando do meio musical para viver de forma reclusa em seu sítio na cidade de Itapecirica da Serra, na região metropolitana de São Paulo. Faleceu em 36 de outubro de 2006, por complicações do mal de Alzheimer e um câncer na bexiga.

>> Assinado por Caetano Veloso e Torquato Neto, o texto da contracapa de Tropicália ou Panis Et Circencis descreve uma espécie de roteiro do movimento, transformando em personagens os próprios tropicalistas. Com ironia, deboche e um certo nonsense, a dupla citava Chacrinha (“estou aqui para confundir e não para explicar”), que fora um grande padrinho dos Tropicalistas abrindo bastante espaço em seu programa semanal na Globo. Tirava sarro dos puristas (será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que bumba meu boi e iê-iê-iê são a mesma dança?) e do lado artístico da música (“como receberão a notícia de que um disco é feito para vender?”). Por fim, homenageava João Gilberto camuflando um recado mandado recentemente pelo mestre da bossa nova a Caetano, durante um encontro com Augusto de Campos nos Estados Unidos (“diga que vou ficar olhando pra ele”).

>> Outra contribuição de Hélio Oiticica para a Tropicália foi a popularização de seus parangolés como um objeto indumentário. Parangolés são um misto de roupas, capas, bandeiras e estandartes que permitem mobilidade do corpo e dos braços quando vestidos, ou sugerem movimento quando carregados em um happening. Por serem de cores fortes, o objeto ganha mais dinamismo quando portado. Por vezes tb carregam fotografias ou palavras reproduzidas. Caetano Veloso, por exemplo, ostentou por várias vezes parangolés em shows, apresentações na TV e fotografias.

>> A partir de meados de 1968 o clima no Brasil começou a ficar mais explosivo e hostil. Com recrudescimento da violência militar contra os estudantes e manifestantes contrário, os ânimos também começaram a se exaltar nas práticas e atitudes comuns do dia a dia. Isso também os tropicalistas ao longo dos meses. Na noite de 6 de junho, em um debate organizado pelos estudantes da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), a recepção de muitos dos estudantes aos presentes (Caetano, Gil, Augusto de Campos e Décio Pignatari) foi cerceamento, confronto e uma quase violência física. Além das muitas vaias e de quase não conseguirem expor as suas ideias, foram jogadas muitas bananas e bombinhas.

>> Na mesma semana do tumulto ocorrido na FAU, Caetano e Gil enfrentavam outras dificuldades nos bastidores. O acordo entre a Rhodia e a TV Globo para a produção de especiais musicais com os tropicalistas começava a dar os primeiros sinais de que iria ruir. O primeiro destes programas estava previsto para ir ao em 30 de junho, sob o título Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo. Os letristas e poetas Capinam e Torquato Neto assinariam o roteiro e Martinez Corrêa era o nome escalado para a direção. Mas um racha entre o empresário Guilherme Araújo e o diretor de eventos da empresa, Livio Rangan pôs tudo a perder. Zé Celso foi imediatamente afastado da direção do show-desfile e tudo acabou sendo cancelado. Gil e Caetano, entretanto, foram mantidos como artistas contratados da Rhodia para o Momento 68, considerado o evento ao vivo mais caro já realizado no país até então, com temporadas em Rio e São Paulo mais passagens por outras capitais brasileiras e cidades do exterior como Montevidéu (Uruguai), Buenos Aires (Argentina) e Lisboa (Portugal). A ficha técnica reunia textos de Millôr Fernandes; direção musical de Rogério Duprat; coreografias de Lennie Dale, Ismael Guizer e Renée Guimal; diversas modelos, cantores (Gil, Caetano, Eliana Pittman), atores (Walmor Chagas, Raul Cortez) e colagens de fenômenos sociais e culturais do momento retratados em vinte esquetes (alguns com os nomes de “Pop Art”, “A Vamp dos Anos 30”, “Juventude Pra Frente”, “Sex Strip”, “Bahia-iá-iá” e, lógico, “Tropicália”) Contudo, os dois tropicalistas se sentiram bastante incomodados ao se verem ali, nos palcos, como um retrato caricatural e afetado do próprio tropicalismo, uma paródia de si mesmos. O estopim do rompimento de contrato com a Rhodia ocorreu apos a gravação ao vivo de novo especial para a TV, realizado em agosto. Rangan não gostou do resultado, queria editar o resultado final, Caetano e Gil se revoltaram, não concordaram com a medida e acabaram não embarcando para a Argentina junto com o resto da trupe do Momento 68. A briga foi parar na imprensa, através de declarações de Araújo e Caetano acusando a empresa têxtil de manipulação e interesse capitalista em cima dos próprios artistas. Resultado: o quarto cancelamento do programa da Globo em dois meses.

>> Com a cabeça quente por causa desses últimos acontecimentos bastante confusos, Caetano tentou prosseguir a carreira compondo uma música inédita para inscrever em um festival do segundo semestre. Guilherme mostro a ele uma revista Manchete com uma reportagem sobre a radicalização do movimento estudantil em Paris. Em uma fotos, uma pichação na parede dizia “é proibido proibir”. Seu empresário achou a frase ótima e convenceu o relutante compositor a fazer uma letra com ela. A contragosto, o baiano compôs rapidamente a nova canção utilizando o slogan dos jovens franceses como refrão e título. Araújo inscreveu a música no terceiro Festival Internacional da Canção, programado para setembro. Por não concordar com a ideia de repetir um único dizer em um refrão inteiro e considerar o resultado final um tanto primário, o autor teve uma ideia: transformar a apresentação ao vivo, agora ao lado dos Mutantes, em um happening que misturava dança e poemas recitados no meio do arranjo. Gil, por sua vez, “trocou de banda de apoio com o amigo” e escalou os Beat Boys para acompanhá-lo em “Questão de Ordem”, uma criação mais antiga e com moldes mais tradicionais agora subvertida em psicodelia, com canto falados, gemidos, gritos e uma grande inspiração musical de Jimi Hendrix. Ambas as composições foram classificadas para as duas eliminatórias dos dias 12 e 14.

>> Mal sabiam Caetano e Gil que a panela de pressão estava prestes a explodir em cima dele. O primeiro experimentou no dia 12 a ira do público paulistano presente ao Tuca (Teatro da Universidade Católica) quando começou a apresentação de “É Proibido Proibir”. O figurino era assinado pela mulher Dedé e a marchand paulista Regina Boni. Duprat usava uma roupa espacial. Ele entrou em cena com camisa verde limão, colete prateado, muitas pulseiras de metal e um enorme colar feito de dentes de animais. Arnaldo e Sérgio vestiam capas alaranjas enquanto a cor do vestido de Rita era rosa. Logo após a longa e perturbadora introdução atonal criada pelo maestro, vieram os primeiros gritos de “Fora!” e “Bicha!”. As vaias aumentaram na mesma proporção que os ovos e tomates atirados ao palco. Quando o bailarino Johnny Dandurand, um hippie americano que veio ao Brasil para escapar do serviço militar em seu país, surgiu em cena uivando e berrando sons incompreensíveis, o tom de reação da plateia aumentou. Caetano, puto da vida, proferiu um discurso-sabão a todos os presentes, virou-se de costas para cantar e passou a simular gestos coreográficas que emulavam uma relação sexual. Na verdade boa parte dos universitários que ali estavam eram solidários torcia para Geraldo Vandré, que, sempre um severo crítico das guitarras e da Tropicália, ameaçou retirar sua música “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (famosa pelos seus apenas dois acordes ao violão, o pseudotítulo “Caminhando e Cantando” e o refrão esquerda-brasileira-forever “Vem vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”) do festival em protesto ao happening concebido pelo baiano. No dia 14 de setembro, Gil experimento reação violenta bem semelhante à da performance de Caetano, inclusive com a mesma quantidade de ovos e tomates. O júri, do qual participava  o jornalista-fanfarrão Nelson Motta (que não havia gostado da proposta de ambos), desqualificou as duas canções na mesma noite das eliminatórias.

>> A gravação ao vivo da experiência turbulenta de Caetano no TUCA acabou sendo lançada posteriormente em um compacto, graças ao então presidente da Phillips, o franco-marroquino André Midani, que, no dia seguinte à confusão, encarregou o produtor Manoel Barenbein de obter junto à Rede Globo a íntegra do áudio da performance. Três semanas depois, o disco estava nas lojas, juntando o fonograma registrado em estúdio ao tumulto daquela primeira eliminatória no TUCA. Eternizava-se, então, na Historia da música brasileira, o famoso discurso bradado com raiva por Caetano no meio da canção, enquanto os Mutantes emendavam um longo instrumental repleto de improviso e solos da guitarra de Serginho. “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê‑la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!”

>>  A agressão a artistas não partia somente de gente ligada politicamente à esquerda. A extrema direita também contribuiu para manchar de vergonha e falta de respeito duas páginas do calendário de 1968. Estudantes, policiais, facções ultraconservadoras ligadas à Igreja Católica (como a Opus Dei e a Tradição, Família e Propriedade) e intelectuais favoráveis ao regime ditatorial formaram uma organização paramilitar chamada CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que inclusive recebia treinamento do exército brasileiro. Surgido em 1963, o CCC perseguia diversas classes (inclusive a artística), fazendo denúncias e inclusive atacando fisicamente pessoas e entidades que se opunham ao governo golpista nacional. Na noite de 18 de julho, vinte integrantes invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, onde estava sendo apresentada a peça Roda Viva, de autoria de Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Cenários e camarins foram destruídos e os atores (no elenco estavam Marilia Pera, Antônio Pedro e Paulo César Pereio) espancados brutalmente. A montagem, considerada um símbolo de resistência contra a ditadura, sofreu em setembro um novo ato de violência em Porto Alegre, onde também foi censurada sob os rótulos de “degradante” e “subversiva”. Segundo o censor responsável pela avaliação, a primeira incursão de Chico no texto dramatúrgico não respeitava “a formação moral do espectador” e feria de maneira contundente “todos os princípios de ensinamento moral e religioso herdado dos antepassados”. Em 2 de dezembro, houve também um atentado à bomba ao Teatro Opinião, no Rio de Janeiro.

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Gal Costa (1968)

>>  Tom Zé, ainda não muito conhecido antes do lançamento do álbum-manifesto, venceu a quarta edição do Festival de Música Popular Brasileira, da Record, em outubro de 1968 – um ano depois da revolução tropicalista ser catapultada à popularidade com as performances explosivas de Gil e Caetano na mesma emissora de televisão. “São São Paulo”, escolhida pelo júri como a melhor música daquele ano, encabeçou a lista das doze faixas de seu primeiro álbum, Grande Liquidação, lançado no finalzinho do ano. O mesmo disco trazia uma versão só dele de “Parque Industrial”, cantada em coro pelos tropicalistas em Tropicália ou Panis Et Circensis. A faixa “Namorinho de Portão”, no ano seguinte, foi gravada por Gal Costa em seu primeiro álbum solo. Já outra composição de Tom Zé, “2001”, feita em parceria com Rita Lee que misturava o rock com a cultura caipira brasileira e a então corrida espacial feita entre russos e norte-americanos, beliscou o quarto prêmio no mesmo festival, com a interpretação dos Mutantes. A faixa acabou registrada pela banda em seu segundo álbum, também em 1969.

>>  Mesmo não tendo participado como intérpretes do Festival da Record por conta dos inúmeros compromissos profissionais surgidos durante o ano, Caetano e Gil não ficaram de fora do evento. Inscreveram “Divino, Maravilhoso” (um recado claro para as pessoas ficarem espertas quanto à violência desenfreada aos opositores do regime militar) e escalaram Gal Costa para cantá-la sob o acompanhamento dos Beat Boys. Premiada com a terceira colocação, a música foi a mola propulsora da carreira de Gal, que naquela altura já estava em estúdio, gravando seu primeiro álbum solo para ser lançado depois da virada do ano. Além desta, outras quatro faixas contavam com a autoria de Caetano: “Não Identificado”, “Lost In The Paradise”, “Saudosismo” e “Baby”. Gil contribui com o arranjo de “Sebastiana” e “Namorinho de Portão” e ainda com a parceria com Torquato Neto em “A Coisa Mais Linda que Existe”.  Duprat construiu o arranjo de seis canções e o guitarrista Lanny Gordin, que acompanhava Gal em sua banda, outras três. O restante do repertório foi montado com faixas compostas por Jorge Ben (“Deus é o Amor” e “Que Pena”) e a dupla Roberto e Erasmo (“Vou Recomeçar” e “Se Você Pensa”).

>>  Apesar de ligado aos artistas da Tropicália, José Carlos Capinan foi um letrista que, na somatória de suas obras, esteve mais ligados à turma mais tradicionalista da MPB, que tanto combatia as revoluções propostas pelo combo baiano-paulista. Por sua vez, Torquato Neto estava mais ligado à contracultura dos anos 1960 e, por também trabalhar como jornalista cultural, agia como defensor de manifestações artísticas de vanguarda, como a poesia concreta e o Cinema Marginal, pós-cinema novo. Com o surgimento do AI-5 em dezembro de 1960, optou por um exílio espontâneo em Londres, cidade também escolhida por Gil e Caetano após sua expulsão do Brasil. Um dia após o seu aniversário de 28 anos, em novembro de 1972, Torquato trancou-se  no banheiro e matou-se por inalação de gás.

>>  O programa dos Tropicalistas na Globo, que seria patrocinado pela Rhodia, não decolou em meados de 1968. No fim foi a Tupi quem acabou levando a turma revolucionária para a telinha. Em outubro estreou Divino, Maravilhoso, com Caetano, Gil, Gal, Mutantes e outros artistas convidados (Jorge Ben, Nara Leão, Jards Macalé, Beat Boys e outros). Nos estúdios da Tupi, eles tentavam reproduzir em performances montadas para a TV todo o clima de liberdade, renovação e ousadia dos últimos doze meses, com o qual haviam tanto revolucionado a música brasileira como colecionado polêmicas e inimigos. Em uma cena, Caetano Veloso aparecia preso em uma jaula, comendo bananas e plantando bananeira. Sob a direção de Antonio Abujamra e Fernando Faro, o programa semanal acabou contestado pela audiência do estado de São Paulo, sobretudo em algumas cidades do interior, que, chocadas com o nível de transgressão e vanguarda no aparelho eletrodoméstico mais popular das casa de família, organizaram abaixo-assinados pedindo a retirada imediata da atração da grade da emissora. Entretanto, a iniciativa não durou. Estendeu-se até e a antevéspera do Natal do mesmo ano.

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Gil e Caetano no exílio, em Londres (1970)

>>  No dia 13 de dezembro de 1968, o regime militar implantou o AI-5, o quinto dos dezessete grandes decretos impostou pela ditadura após o golpe de estado de 31 de março de 1964. Emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva, este foi o mais repressivo e severo de todos os chamados Atos Institucionais. Resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas por Brasília em estados e municípios e a suspensão de quaisquer garantias constitucionais, o que resultou na adoção da tortura como instrumento frequentemente utilizado pelo Estado.

>> Na antevéspera do Natal foi ao ar o último programa Divino, Maravilhoso. Nele, Caetano foi até o fim nas raias da provocação cantando a clássica marchinha da época “Boas Festas” (“Anoiteceu/ O sino gemeu/ A gente ficou/ Feliz a rezar/ (…) Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ Ou então felicidade é brinquedo que não tem”) com um revólver o tempo todo com um revólver apontado para a própria cabeça. Happening inspirado na brutalidade do filme Terra em Transe mas que lhe custaria caro (e a Gil também) dias depois, com a prisão de ambos efetuada por militares do Rio de Janeiro, a mando do regime ditatorial. Prova de que, assim como as mais recentes ações tropicalistas, Divino, Maravilhoso nasceu já como uma laranja mecânica, uma bomba-relógio prestes a estourar a qualquer momento naquele momento cada vez mais tenso do país.

>> Depois de dois meses de cárcere em quartéis Rio de Janeiro, os dois foram libertados logo após o carnaval de 1969 com ordens explícitas de retornar a Salvador e nunca mais sair de lá. Eles deveriam também se retirar do cenário artístico e não realizar mais qualquer atividade pública. A prisão domiciliar servia para “calar” dois dos mais ativos artistas brasileiros daquele ano. Assim eles não serviriam de exemplo de incitação e rebeldia para a juventude, mesmo não tendo qualquer ligação com organizações ou partidos políticos.

>> Cinco meses apos a prisão no Rio de Janeiro, a dupla baiana estava de volta à cidade. Desta vez para ir ao aeroporto e pegar um voo sem volta rumo a Londres, com escala em Lisboa. Com a permissão dos militares, eles trocaram a prisão domiciliar e a proibição do exercício de atividades artísticas pelo exílio na capital da Inglaterra junto às esposas, as irmãs Sandra e Dedé Gadelha. Antes disso, porém, em Salvador, Gil e Caetano aproveitaram o longo tempo ocioso para gravar músicas para os seus próximos álbuns. No de Caetano predominava a melancolia, já que o artista começava ali a dar pequenos sinais da depressão que lhe tomaria conta durante boa parte do tempo vivido fora do país. Contudo, a canção de maior destaque foi o frevo “Atrás do Trio Elétrico”, que, de certa maneira, já previa as mudanças significativas que viriam a ocorrer na música popular feita pelos artistas baianos das décadas de 1970 e 1980. Já o disco de Gil traria a música que se tornaria mais conhecida de toda a fase inicial de sua carreira, “Aquele Abraço”. Na verdade este era o bordão utilizado pelo comediante Lilico em um popular programa de humor da TV da época. Gil não conhecia o programa, mas enquanto este preso no bairro do Realengo, ouvia sempre a saudação dirigida a ele por um dos militares do quartel. Na letra, Gil faz referência a outro ícone da TV, Chacrinha, que abraçou a causa tropicalista e levou várias os artistas a seu programa. Também há citações à cultura e geografia carioca (Banda de Ipanema, Portela, Flamengo, Realengo, favela e a própria cidade, que fora a capital federal antes da criação de Brasília e, entre 1960 e 1975 também era o estado da Guanabara.

>> O avião que levou os dois casais à Europa partiu no dia 27 de julho de 1969 do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Na véspera, em entrevista publicada pela edição carioca do jornal Última Hora, Caetano fazia um pequeno balanço do ano tropicalista. “Sei que o movimento que a gente começou está influenciando meio mundo. Mais dia, menos dia, era inevitável que também se começasse a utilizar uma linguagem nova. Isso demonstra que estávamos certos e o que fazíamos, aquela confusão toda, era um acontecimento natural no processo musical brasileiro. Quanto ao Tropicalismo, ainda não posso falar muita coisa. É claro que ele mantém raízes. O fato é que Gal Costa se tornou a mais importante cantora brasileira a partir dele e eu acho que isso já compensa. Se o Tropicalismo passou, eu não sei. Mas acho que, de certo modo, ele continua. E do modo certo, com Gal.”

>> Em Londres, enquanto Caetano mostrava uma fisionomia abatida e certa apatia para conhecer coisas novas exceto os filmes em cartaz nos cinemas, Gil era o seu oposto: estava maravilhado com a experimentação de novas drogas (ácidos, mescalina, haxixe) além do habitual baseado diária, devorava a bíblia psicodélica Politics Of Ecstasis, livro escrit por Timothy Leary, e consumia muita música local, indo do rock à musica de origens africana e caribenha. Esta interação com muitos músicos locais rendeu várias participações especiais em seus álbuns subsequentes, de tons mais experimentais e nem tão ligados à nova música pop brasileira que havia acabado de ajudar a criar. A depressão de Caetano se refletiu no modus operandi de compor e ele passou a fazer letras em inglês. Uma delas, a balada “London, London”, reflete bem a depressão desta fase. Gil voltou a morar no Brasil no início de 1972. Caetano já havia chegado um pouco antes, em agosto de 1971. Não foram mais incomodados pelos militares, mas também, por vontade própria, levaram a carreira a outros rumos durante os anos 1970, afastando-se de polêmicas artísticas, ousadias de vanguarda e até mesmo letras de tons politizados. Foram bastante cobrados por esta guinada, mas nem deram bola para os mais críticos e se consolidaram como os maiores cantores populares de sua geração. Nas décadas seguintes, a Tropicália foi “descoberta” no exterior e passou a ser objetos de culto entre famosos músicos de origem alternativa, como David Byrne (Talking Heads), Kurt Cobain (Nirvana), Sonic Youth, Beck, Sean Lennon, Stuart Murdoch (Belle and Sebastian) e Devendra Banhart.