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Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes

Live action derivado do clássico RPG diverte e introduz um novo universo para o cinema baseado em jogos

Texto por Carolina Genez

Foto: Paramount/Divulgação 

Acaba de chegar aos cinemas Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (Dungeons & Dragons: Honor Among Thieves, EUA/Canadá/Reino Unido/Islândia/Austrália, 2023 – Paramount), trama que acompanha Edgin (Chris Pine) que, após a morte de sua esposa, decide roubar itens mágicos e preciosos juntamente com sua filha Kira (Chloe Coleman), a bárbara Holga (Michelle Rodriguez), o mago Simon (Justice Smith) e o também ladrão Forge FitzWilliam (Hugh Grant). No meio do caminho, porém, ao tentar ajudar a feiticeira Sofina (Daisy Head), Edgin e Holga são presos e precisam achar um meio de escapar e recuperar a confiança de Kira.

O filme é baseado no clássico jogo de RPG Dungeons & Dragons, que ficou muito popular durante os anos 1970 e 1980 e recentemente ressurgiu com força por conta da série Stranger Things, em que os personagens principais não só se divertem no tabuleiro mas também fazem referência ao game durante toda a série. Por trazer um universo tão cheio e completo para as telas do cinema, o longa funciona bastante como um introdutório para o que pode vir a ser mais uma franquia.

Adaptações de games são sempre algo complicado de se traduzir para a linguagem cinematográfica: ao mesmo tempo esses filmes precisam agradar os fãs ardorosos e não deixar aqueles que não sabem de nada sobre o universo de fora. Dungeons & Dragons, então, faz um trabalho maravilhoso neste sentido. Este Honra Entre Rebeldes é recheado de citações do jogo e, ao mesmo tempo, uma própria partida de RPG, com falas de personagens que relembram regras e, principalmente, nos ângulos e movimentos de câmera utilizados pelos diretores para garantir grande imersão na trama.

O roteiro traz uma história repleta de aventura, que consegue com facilidade instigar e prender a atenção dos espectadores. Parte disso acontece também porque conseguimos nos conectar com os personagens por suas histórias do passado, que são apresentadas de maneira breve mas também cumprindo seu propósito. A trama também traz bem cenas de comédia, funcionando muito bem ao utilizar diversos estereótipos e clichês de histórias de fantasia como piadas. A narrativa, apesar de simples, tem seus objetivos muito bem definidos, permitindo aproveitar a jornada, que é contada por diversos episódios, junto com os personagens passando e explorando diversos cenários muito diferentes entre si.

A direção de arte, nesse sentido, faz um trabalho impecável ao transportar os espectadores àquela terra de fantasia com criaturas, magos, elfos e humanos convivendo uns com os outros. Cada uma das terras exploradas pelos personagens tem algum fator que a diferencia da outra e torna a aventura ainda mais interessante. Aqui também existe uma breve pincelada de cada uma dessas “nações”, contando um pouco sobre as lendas, costumes e habitantes. Tal artimanha engaja muito a curiosidade para os próximos projetos.

Os personagens também ajudam a prender a atenção do público. Cada um deles tem objetivos, humores,  personalidades e poderes distintos, o que torna as interações entre eles extremamente divertida. A variação de forças e habilidades é um trunfo nas cenas de ação, muito criativas e bem conduzidas e coreografadas. Na galeria de personagens mais interessantes está Doric, druidesa que luta pelo seu povo e tem o poder de se transformar em qualquer animal e até mesmo fazer mesclas deles. Ela, entretanto, não é tão aproveitada quanto poderia, muito por conta do filme ter a função de ser introdutório. 

No terreno das atuações, todos os atores cumprem bem seus papéis, até por serem personagens que lembram muito trabalhos anteriores deles. Destacam-se Chris Pine e Michelle Rodriguez, já que acompanhamos ambos os personagens desde o início. Ambos são divertidos e rendem cenas engraçadas – e os dois atores têm muita química, o que ganha a empatia dos espectadores. Edgin, além de protagonista, acaba sendo outra peça fundamental para remeter ao jogo de tabuleiro já que ele é quem elabora os planos e consequentemente “cria” as histórias. Outro destaque fica com a Sofina de Daisy Head, que traz uma presença ameaçadora e performance bem sombria, contrastando com o elenco. Por fim, há Regé-Jean Page como Xenk. Apesar da pequena participação, acaba sendo outra ótima surpresa com uma criatura misteriosa e interessante.

Claro que há alguns erros ao longo das de duas horas de duração. Só que Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes cunmpre o que promete: ser uma aventura muito imersiva e divertida, que ainda termina com um gostinho de quero mais. Em tempo: se você gosta de Caverna do Dragão – desenho animado dos anos 1980 também oriundo de D&D – não deixe de ir às salas do cinema.

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Me Chama Que Eu Vou

Documentário revive a trajetória do furacão “cigano” Sidney Magal, que varreu a música brasileira a partir do final dos anos 1970

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filme/Divulgação

No final dos anos 1970 um furacão varreu a música verdadeiramente popular brasileira. Não houve como passar incólume. Muita gente gostava, adorava, não tirava os olhos da televisão quando ele aparecia nos programas de auditório. O mais importante: sabia cantar a letra todinha, assoviava a melodia. Todo dia, o tempo inteiro. E não eram só mulheres. Muitos homens também. E claro, muitas crianças. Afinal, não tinha como não se apaixonar por aquela figura esguia de fartos cabelos negros encaracolados dançando e rebolando sem paridade em nosso país e cantando letras imageticamente fortes, extrapolativamente sensuais.

Argentino que havia sido artista de rock nos anos 1960, Roberto Livi estava no Brasil na condição de empresário de artistas e produtor fonográfico. Sua missão mais importante era descobrir novos artistas para projetar suas carreiras e fazê-los vender muitos discos e shows. Foi assim com nomes como Alcione e Peninha, por exemplo . Com Sidney Magalhães também. Aliás, Magal, rebatizado sem a metade do sobrenome oficial desde que voltara de uma viagem pela Europa para tentar a carreira artística cantando e dançando nos seus vinte e poucos anos. O shape de Sidney Magal já existia antes mesmo de Livi descobri-lo. Fazia sucesso na noite, soltando o vozeirão no palco de uma churrascaria na Barra da Tijuca, já com o mesmo figurino exótico (couro, correntes grossas, cabelão, peito nu, preto como cor dominante) utilizado quando passou a gravar discos. Aliás, Magal desde sempre foi um artista não apenas para ser ouvido, mas principalmente para ser visto. 

Recém-estreado em circuito nacional, Me Chama Que Eu Vou (Brasil, 2022 – Vitrine Filmes) disseca o personagem Sidney Magal através da ótica e dos comentários de seu criador Magalhães. É aquele documentário básico e clássico, cronologicamente linear, que vai da gestação da carreira em seus momentos prévios aos tempos de hoje, passando, claro, pelo apogeu, decadência, redescoberta e renascimento artístico. Bom para quem não conhece direito a sua história, mas também curioso para quem acompanhou tudo isso em tempo real no decorrer das décadas. Prato cheio aliás, é o tratamento dado pela mídia durante os três primeiros álbuns. Além de algumas imagens da época, o crème de la crème são as entrevistas para TV e sobretudo as revistas de fofoca e semanários jornalísticos. Mesmo que aparecendo de maneira fugaz na tela, as páginas diagramadas com textos, fotos e manchetes são uma delicia de serem lidas. Nestas cenas são reveladas todo o fascínio com o qual a imprensa tratava aquela persona rebolativa que pervertia a MPB. A elite o tachava de brega. Os mais preconceituosos não conseguiam compreender que aquela figura já havia sido criada antes mesmo do lançamento do primeiro disco. Muita gente o considerava uma estrela fabricada pela indústria fonográfica, um “cigano de araque, fabricado até o pescoço” (como cantava Rita Lee, de pura pirraça, na segunda versão da letra da não menos debochada canção “Arrombou a Festa”, no qual espinafrava os nomes mais importantes da música nacional da época). Uma das reportagens até dava a receita para se “fabricar” um ídolo.

O que poderia jogar contra o documentário dirigido por Joana Mariani acaba, entretanto, sendo o maior trunfo dele. O filho do cantor, um dos entrevistados, também assina a obra como coprodutor-executivo. Mas também não se pode dizer que Me Chama que Eu Vou seja um filme chapa-branca. Mesmo porque, fora a polêmica sociológica do início de carreira, Sidney Magalhães nunca foi uma figura de fato polêmica. Nunca precisou esconder na de sua vida, nem mesmo protagonizou escândalos pessoais de qualquer tipo. Por isso mesmo nunca foi necessário Mariani sequer pensar em qualquer outra narrativa para o doc. Magal ainda ajuda por ser uma pessoa extremamente organizada, sobretudo no que tange ao arquivo de itens sobre a sua trajetória artística. Ele, sempre que pode, guarda até hoje recortes, cartazes, fotos. Se todo este material enriqueceu muito o material apresentado na edição final (inclusive coisas pré-estouro nacional nas rádios e TVs) dá para ficar imaginando todo o resto que ficou de fora da montagem.

O trabalho de Mariani é bastante elucidativo ao jogar luz para os espectadores compreender algo que talvez muitos deles não saibam: a diferença tamanha entre o que são os dois Sidneys. Enquanto o Magal é espalhafatoso, sensual e ousado, o Magalhães é quieto, família e até certo ponto conservador nos costumes (inclusive os musicais). Aliás, o gosto pelas canções mais tradicionais (bossa nova, sobretudo) veio de casa. Tia tocando piano, mãe apaixonada por canto (a ponto de se lançar na carreira depois da fama do filho, aproveitando inclusive para usar o pseudônimo dele), primo dos mais festejados pelas artes brasileiras. Para quem não sabe: o tal primo era ninguém menos que o poetinha Vinicius de Moraes, letrista de algumas das principais canções em língua portuguesa.

Só que Vinícius nunca compôs uma letra para Sidney gravar, mesmo porque o garoto mais novo nunca ficou insistindo nisso. Nem precisaria mesmo. Com versos afiados (e quentes, muito quentes!) como os da polca “Sandra Rosa Madalena, a Cigana” e a meio rumba meio disco “Meu Sangue Ferve Por Você” , não há como não cantar junto com Magal e suas reboladas. Outras versões em nosso idioma também são poderosas. O rock “Tenho” veio importada do repertório do famoso cantor argentino Sandro Anderle (1968), também com estilo visual cigano e principal referência de Livi ao trabalhar com Magal. De outro portenho, o cantor de boleros Cacho Castaña, o produtor trouxe outra disco music, “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, seu primeiro compacto, lançado em 1977, com direito até a guitarra turbinada por um discreto porém não menos poderoso e psicodélico pedal fuzz.

O que o documentário não fala (infelizmente, porque seria uma informação mais completa e não desmereceria de maneira nenhuma a carreira do carioca) é que o grosso dos hits dos anos dourados de Magal são compostos por versões. “Meu Sangue Ferve Por Você”, no caso, é versão de uma versão. A original é francesa e teve duas letras e gravações em 1973: uma em inglês, pelo artista Sunshine, sob o nome de “Melody Lady”; a outra, em francês, por Sheila (que anos depois viria a apostar na disco music como Sheila B Devotion), chamada “Mélancolie”. O argentino Sabú pegou a mesma base sonora e levou a canção para o espanhol, agora como “Oh Cuanto Te Amo”. Deste sucesso veio a ideia para a letra “quente” de Magal. Também de Buenos Aires veio mais um rock, “Amante Latino”, gravada com o andamento um pouco mais desacelerado por Rabito em 1974.

A segunda parte do trabalho de Joana foca na ruptura da parceira entre Magal e Livi e a espiral descendente na qual seu trabalho caiu logo no começo dos anos 1980. Curiosamente, tudo surgiu do esgotamento da fórmula da imagem forjada de cigano. A letra “Sandra Rosa Madalena”, idealizada por Livi, pode ter forjado a imagem de Magal, que tinha apenas um fiapo de ascendência cigana lá pelo lado de uma tataravó, e catapultado o artista ao estrelato, mas também fora a maldição da qual ele tentou se livrar. Por diferenças pessoais e profissionais rompeu os laços com seu produtor e lançou-se na música romântica, incentivado pela gravadora, com outro look, de gomalina e cabelos presos com rabo de cavalo. Lançou vários discos mas nenhuma música nova fez sucesso. Na época em que Magal mais tentou sair do personagem e passar a ser ele mesmo – inclusive se casando e tendo filhos, contra a vontade de seu até então mentor de bastidores, que considerava ser o suicídio de um ídolo abrir o jogo da vida pessoal para seus fãs. Aí que entra uma fase interessante do filme, com Magalhães refletindo sobre os efeitos colaterais da mudança e os atos para a sua reinvenção, mudando-se para a Bahia e atuando como ator de novelas e cantor de teatro musical, inclusive sendo convidado e dirigido por Bibi Ferreira. Até a reviravolta provocada pela chegada da febre da lambada, o sucesso de “Me Chama Que Eu Vou” com tema de abertura da novela da Globo (em um período em que isso ainda representava um bilhete premiado de loteria para um artista da música) e a consequente redescoberta do cantor pelas geração MTV Brasil. Todo este período de ostracismo e redenção, sob a análise do próprio Sidney (mais uma boa dose de sentimentalismo familiar) funciona contra a tentadora queda para uma possível glorificação do astro de um documentário.

Me Chama Que Eu Vou, o doc, não só informa aquele que não conhece direito a trajetória do ídolo. Gráfica e ritmicamente dinâmico, sobretudo na fase inicial da fama, diverte todo mundo. Como uma apresentação do “falso” cigano, seja em um show completo ou apenas em um número em antigos programas de auditório na TV. Aliás mais do que produto da mera mente comercial de Livi ou resultado do puro instinto daquele jovem que cresceu banhado em arte e só queria fazer da vida o ato de cantar e dançar, Sidney Magal é fruto daqueles tempos de recente formação de redes nacionais de televisão, proporcionadas pela possibilidade cada vez mais barata de transmissões via satélite (leia-se anos 1970 em diante). Sorte de quem faz audiovisual e de quem gosta de ver documentários.

Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

>> Volte aqui nesta segunda, quando será incluído o oitavo motivo desta matéria.

Movies

O Homem do Norte

Diretor Robert Eggers aposta em sanguinária história viking sobre a sede de vingança como a grande força do protagonista

Texto por Carolina Genez

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Tudo começa no século 9, acompanhando a volta do Rei Aurvandil (Ethan Hawke) para sua família, formada pela Rainha Gudrún (Nicole Kidman) e seu filho, o jovem príncipe Amleth (Oscar Novak/Alexander Skarsgård). Porém, logo após sua volta, o rei é brutalmente assassinado pelo irmão Fjölnir (Claes Bang), bem na frente de seu filho. Depois de assistir a sua mãe e seu povo serem tomados pelo assassino, Amleth resolve fugir. Ele se refugia no mar, prometendo um dia se vingar.

O Homem do Norte (The Northman, EUA, 2022 – Universal Pictures) foca na mitologia nórdica, seus rituais e profecias. Por isso, traz uma verdadeira imersão nas tradições e costumes da Era Viking. Dessa forma, os aspectos sobrenaturais ocupam suma importância no longa, principalmente a profecia em torno do príncipe Amleth. Tal profecia, aliás, é uma das coisas que mais movem o príncipe, garantindo assim para o filme uma verdadeira “jornada do herói”.

Os aspectos místicos da narrativa são colocados de modo natural e harmônico com o resto da trama. Essa inserção pode ser vista em diversos momentos como nos diálogos em que são abordados Odin e as Valquírias, na maneira como o diretor trabalha a relação da mitologia com os animais e no conforto que os personagens têm de que a Valhalla os aguarda. A imersão do espectador na época dos vikings também é proporcionada pela irretocável ambientação realizada por meio de figurinos, cenários e armas, todos recriados com muitos detalhes.

O roteiro foi escrito pelo próprio diretor Robert Eggers, badalado por seus trabalhos em A Bruxa (2015) e O Farol (2019), em parceria com o dramaturgo islandês Sigurjón Birgir Sigurðsson. A inspiração veio de um conto, que também teria servido de base para William Shakespeare na hora de escrever Hamlet, uma de sua mais famosas obras, que se passa na Dinamarca. Talvez isso tenha ligação com a decisão de manter no longa tem um certo aspecto teatral, principalmente em seus diálogos.

A história da vingança pessoal do príncipe também remete a diversas outras histórias cinematográficas como Coração Valente (1995). Além da trama parecida, a similaridade entre este e o filme “escocês” de Mel Gibson também está presente na brutalidade. Em O Homem do Norte, a violência é bem explícita e sangrenta, sempre com combates muito bem elaborados e coreografados. A forma como o diretor trabalha com a sede de vingança é muito interessante, já que o sentimento é exposto de maneira cíclica – cada feito de Amleth gera consequências, de certa forma trazendo à tela a frase “violência gera violência”.

A fotografia em um file de Eggers volta a impressionar. Aqui são os tons escuros e cinzentos que acabam sobressaltando as horas sangrentas da tela, além de gerar um quê de melancolia. O sound design também se destaca, dando espaço para os sons da natureza e da respiração dos atores, o que aumenta ainda mais a tensão e o suspense.

Ao longo da sua história, o príncipe cruza caminhos com Olga, vivida pela maravilhosa Anya Taylor-Joy. Ela serve como um respiro para a violência, tanto para o protagonista, quanto para os espectadores. A personagem dela forma uma aliança com Amleth e garante mais motivações para o herói. Em relação às interpretações, todos os atores trazem grandes performances e sotaques, mas o destaque é mesmo o protagonista. Vivido em sua fase adulta por Alexander Skarsgård de forma convincente e poderosa, Amleth encarna em diversos momentos uma verdadeira besta. O sueco traz um personagem bruto mas extremamente ferido por seu passado e que encontra como força a vingança contra seu tio.

Apesar de seus fatores positivos, O Homem do Norte ultrapassa as duas horas de duração e acaba se perdendo lá pela metade, se prolongando-se em momentos que não eram assim tão necessários. Ainda assim, a produção garante um épico viking que cumpre as expectativas com uma trama superimersiva e uma história interessante,  que, mesmo já vista em outras obras, consegue se reinventar e impressionar com impecáveis cenas de luta e grandes atuações.

Movies

The Eyes Of Tammy Faye

Jessica Chastain brilha como a pioneira do televangelismo americano que ia muito além do moralismo habitual do gênero

Texto por Taís Zago

Foto: Star+Searchlight/Divulgação

Tammy Faye e Jim Bakker são o casal mais famoso do televangelismo americano. Nos anos 1970 e 1980, eles praticamente “inventaram” a “TV da fé” nos moldes que conhecemos hoje também no Brasil. Ao mesmo tempo, os dois foram protagonistas de um dos maiores escândalos de fraude e desvio de dinheiro do canal PTL – Praise The Lord, a rede televisiva que criaram. Contavam nessa jornada com o apoio de outros agentes religiosos da época, como o pastor homofóbico e misógino Jerry Falwell, que ficou famoso ao travar uma guerra contra os Teletubbies por considerar os personagens infantis uma “propaganda homossexual”. Semelhanças com Malafaia et caterva não são mera coincidência. Os pastores brasileiros se inspiraram no modelo dos cristãos evangélicos norte-americanos ao montar seu império (dourado) da fé por essas bandas.

Jim e Tammy se conheceram quando eram estudantes no Bible College de Minneapolis, Minnesota. E a atração foi imediata. Tammy viu em Jim a personificação do pastor evangelista moderno – aquele que, ao invés de defender as sandálias da humildade, não condenava o enriquecimento e o amor ao dinheiro. Jim sabia pregar, tinha desenvoltura e um arsenal prontinho de platitudes para converter e atrair cristãos para seus sermões. Tammy, por sua vez, era, à primeira vista, a própria imagem da religiosa näif – ingênua, wide eyed, devota e idealista. Com voz de Betty Boop e uma presença sensual, mesmerizava os fiéis com cabelos e figurinos extravagantes e com cílios imensos, que viraram sua marca registrada. Mais tarde ela viraria chacota em sketches de programas de humor de TV como o Saturday Night Live por causa da maquiagem exagerada e permanente. Tammy era 100% entretenimento, fazia entrevistas, shows de bonecos e encantava fiéis com suas performances exageradas de hinos religiosos. 

Enquanto Bakker se limitava a seguir a austera cartilha de pregações morais, aquela que conhecemos bem – família, costumes, pecados e punições e propaganda republicana – ditada pelos pastores, todos homens, que o cercavam, Tammy rompeu muitas regras e arrepiou os cabelos dos devotos mais conservadores ao defender direitos LGBT, discutir a aids nos anos 1980 e defender o amor ao próximo acima das regras religiosas. Por essa sua atuação quase ativista e, claro, também pela sua opulenta aparência, Ela foi festejada como a primeira drag queen, servindo de inspiração para muitos outros artistas.

The Eyes Of Tammy Faye (EUA, 2021 – Star+/Searchlight) é baseado no documentário do mesmo nome, de 2000, narrado em parte por RuPaul. O diretor de obras de dramedy Michael Showalter tomou para si a tarefa de transformar Jessica Chastain em Tammy e Andrew Garfield em Jim. Contudo, os louros aqui vão diretamente para os atores. Garfield incorpora Jim como uma figura fraca, infantilizada, dependente, narcisista, gananciosa, insegura e em claro conflito com sua sexualidade, algo que não é confirmado mas insinuado em várias cenas do filme. Já Chastain personifica em Tammy um leque muito maior de características conflitantes. Por um lado vemos uma protagonista que possui fé genuína, empolga todos ao seu redor, está sempre feliz e sempre otimista e é aparentemente alheia a todas as malandragens feitas com o dinheiro dos fiéis. Por outro, vemos uma figura viciada em comprimidos, infeliz e insatisfeita em seu casamento, que não economiza um tostão em suas indulgências materiais e que faz vista grossa para toda a sujeira ao seu redor. Os olhos de Tammy são seletivos e Jim, junto com seus associados, contam com isso para suas falcatruas. O filme recebeu duras criticas por ficar apenas na superfície das relações, por enfatizar o glamour e esconder fatos desconcertantes do casal, como todo o processo da acusação de estupro contra Jim, que junto ao escândalo das fraudes o colocaram na cadeia.

O que temos aqui uma história clássica de ascensão e queda sem que haja uma verdadeira redenção no final, e que, em alguns momentos, parece muito enamorada de Tammy e sua aparência física. Jessica Chastain, favorita ao Oscar de melhor atriz pelo papel, levou-o para casa. O filme também concorreu ao Oscar de melhor cabelo e maquiagem – e venceu. É inegável o delicioso e colorido pulo entre as décadas de 1960-1980 na produção das músicas, figurinos e fotografia. Todos são fantásticos.

A forma como Jessica transita na personagem entre os opostos, indo da completa euforia até o abismo e a paralisia da depressão é, sem dúvida, sensacional. Tammy coloca um sorriso no rosto, ajeita a maquiagem, abre uma lata de coca-cola light, respira fundo e é cordial até mesmo com quem a ataca. Ela sobe ao palco sempre como se fosse a sua última vez e se entrega de corpo e alma ao que considerava ser sua vocação divina. E nós, aqui, do outro lado da tela, quase nos convertemos.