Arts, Movies, Poetry

Vermelho Monet

Autor de Cine Holliúdy assina um drama sobre o mercado das artes com intensa paleta de cores e versos furiosos de Florbela Espanca

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Vermelho é a cor mais quente. Pelo menos para o pintor português Johannes Van Almeida, fã confesso do tom incandescente dos entardeceres dos quadros assinados pelo impressionista francês Claude Monet. Vermelho é justamente a área do círculo cromático que ele procura preservar em sua memória desde que uma doença degenerativa passou a, progressivamente, tomar o que ainda lhe resta da visão. Sua esposa (e igualmente pintora) Adele é ruiva, tem sardas e usa e abusa da cor vermelha em seu figurino. Johannes é eternamente apaixonado por ela e é também o seu cuidador depois que a evolução do mal de Alzheimer abrevou sua carreira e lhe impôs grandes limitações de fala e movimento. Por isso, Almeida é mestre em pintar figuras femininas e abusar deliciosamente da matiz simbolizada pelo fogo.

É em torno desta relação intensa de paixão e sofrimento de Johannes (Chico Díaz) que gira a história de Vermelho Monet (Brasil/Portugal, 2024 – Pandora Filmes), criada por Halder Gomes. Agora o cearense (diretor e roteirista mais conhecido pelas comédias escrachadas como Cine Holliúdy 1 e 2, O Shaolin do Sertão e Os Parças) se lança em um drama que gira em torno do mundo criativo e comercial das artes plásticas. Aliás, é também uma declaração de amor do cineasta à pintura, misto de paixão “secreta” e hobby seu.

Enquanto cuida de Adele (Gracinda Nave), Johannes sofre em busca de uma grande inspiração para continuar pintando enquanto ainda lhe resta o puco de visão e a memória dela (repetindo exatamente o que enfrentara Monet no final de sua vida). Ele nunca fora reconhecido na área. Aliás, a fama ele conquistou, mas como falsificador de pinturas antigas com rosto feminino. Recém-saído da prisão, onde ficou cumprindo um tempo de reclusão por isso, ele volta às ruas, praças e parques de Lisboa nos passeios diários com a esposa até se deparar com a encantadora figura da atriz brasileira Florence Lizz (Samantha Heck, iniciante no cinema e mais conhecida do público nerd por ter feito a personagem Sheila na propaganda de TV com os personagens do mítico desenho animado Caverna do Dragão em live action). Fica obcecado pela jovem ruiva, a ponto de pintar com intensidade inspirado por um painel de colagem de fotos de jornais e revistas da nova musa e desejar a sua presença como modelo no ateliê. O pintor quer, enfim, provar que pode ter o seu talento autoral reconhecido.

Quem faz a ponte entre os dois acaba sendo a inescrupulosa marchand Antoinette Léfèvre (Maria Fernanda Cândido), figura poderosa do mundo europeu das artes, com altas conexões com milionários e colecionadores e leiloeiros de Paris e Londres. Dona de uma galeria respeitada na capital portuguesa, ela lida com a sedução sexual da ninfeta brasileira enquanto luta para manter o domínio psicológico diante de Johannes, deixando-o no underground à base das falsificações que lhe rendem milhões. É na manipulação de ambos que Antoinette injeta boas doses de suspense na trama.

Enquanto isso, Adele e Florence se reconhecem uma na outra. A primeira vê a jovem naquele lugar de desejo ao qual já pertencera. A segunda vê na esposa de Almeida uma alma boa e que teve a trajetória interrompida injustamente por algo maior, a doença – tudo o que a atriz deseja em Lisboa é superar suas limitações de novata na dramaturgia e convencer o arrogante diretor do filme que está rodando de que é capaz e foi a escolha certa dos produtores para interpretar a protagonista. O longa no qual a ruivinha trabalha gira em torno da vida e da obra de Florbela Espanca, um dos maiores nomes da poesia portuguesa de todos os tempos ao lado de Fernando Pessoa. É justamente no universo dos versos de Florbela, repletos de fúria, paixão, intensidade e desejos (tal qual o rubro dos quadros de Monet), que as duas se encontram. Os textos que decora para os ensaios das cenas que rodará é a área de Florence. Já a de Adele está nos pensamentos, sempre ouvidos em voice over por meio da estupenda interpretação de Gracinda.

Florbela também é citada em uma sensacional versão fadística de “Fanatismo”, poema musicado pelo também cearense Raimundo Fagner e gravado em seu álbum Traduzir-se, de 1981. Além da trilha sonora, que traz uma metalinguística “Hot Stuff” (hit de Donna Summer) em um baile à fantasia que cita quadros de outros pintores como Matisse e Van Gogh), Vermelho Monet também impacta pela exuberante fotografia com o uso delicado de luz e sombras e uma paleta que realça a exuberância do vermelho, muitas vezes em contraste com o azul. Aliás, este duelo entre as duas cores se explica em um dos momentos mais interessantes dos diálogos criados por Halder.

E claro que mesmo em um filme dramático não poderia faltar um pouco do humor peculiar do cineasta. Aqui ele se manifesta nas considerações ditas pela trinca principal de personagens a respeito de como realmente funciona o mercado das artes e do que muita gente pensa a respeito dele. Não gargalhe se conseguir.

Music

Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

Music

Jethro Tull

Oito motivos para não perder a apresentação da icônica banda liderada por Ian Anderson em sua nova passagem pelo Brasil

Texto por Daniela Farah

Foto: Divulgação

Seven Decades é o nome oficial da nova turnê. Pode parecer muito. E, de fato, é. Pode parecer erro de cálculo, já que o vocalista e fundador, o escocês Ian Anderson, vai completar 77 anos de vida no próximo mês de agosto. Mas, de fato, não é. O Jethro Tull foi fundado em 1967, quando o músico ainda estava saindo da adolescência. Portanto, o período em atividade compreende justamente sete décadas, dos anos 1960 aos anos 2020. Mesmo com alguns pequenos períodos de pausa, provocada por afastamento entre os principais integrantes e remanescentes, certo é que a carreira permanece seguindo em frente.

A boa notícia para os fãs brasileiros é que esta turnê volta a trazer Anderson e seus músicos para o Brasil. Serão quatro apresentações nesta semana e a rota de escalas compreende Belo Horizonte (dia 9 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Porto Alegre (dia 10 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Curitiba (dia 12 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui) e São Paulo (dia 13 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui). O repertório trará grandes sucessos espalhados pela longeva trajetória com a adição de faixas do mais recente álbum de estúdio, RökFlöte, lançado há exatamente um ano.

Para celebrar a nova vinda de Anderson e seus asseclas para cá, o Mondo Bacana discorre sobre oito motivos para você não deixar de ver a banda em ação novamente aqui.

Raiz folk

Ainda que Ian Anderson tenha passado boa parte da sua vida na Inglaterra (mudou-se aos 12 anos), ele nunca deixou de lado suas raízes escocesas. Isso reverberou na sonoridade do Jethro Tull. Anderson achava que faltava algo que desse uma cara mais europeia para o seu som e foi buscar isso em suas raízes inglesas e escocesas. Vem daí, dessa vontade de ter seu ambiente representado na sua arte, que surgiu a pitada celta que faltava para completar o Jethro Tull. Diga-se de passagem, aliás, que essa proposta bucólica até combina muito bem com o nome, inspirado em um agricultor famoso. A banda ficou conhecida por levar essa representatividade da musicalidade celta para o mundo. Ou seja, é a possibilidade de assistir cara a cara o folk britânico em sua mais pura raiz criativa. E de uma maneira bem divertida!

Performance de palco

Ian Anderson é, por si só, uma figura controversa. Um escocês, apaixonado por blues, que resolveu fazer rock tocando flauta. E fez isso tão bem que em 1989, o Jethro Tull abocanhou o Grammy de Melhor Performance Hard Rock/Metal, tirando-o das mãos do Metallica e seu aclamado álbum … And Justice For All. Ian tem uma presença de palco cativante. Entrega tudo e um pouco mais, seja através de seus olhos que parecem interpretar cada nota da flauta, por suas danças peculiares, tocando em uma perna só ou dando pequenos pulos enquanto canta.

Idade avançada

Para os fãs é sempre uma benção ter a oportunidade de seguir acompanhando seus ídolos lançando novidades e realizando concertos e turnês. Entretanto, também chega a ser cruel pensar que a cada temporada que se vai, menos tempo resta para aproveitar as suas presenças neste plano. Para quem mora no Brasil, então, chega a ser pior quando o assunto são os grandes deuses do rock de todos os tempos. Já são bem menores as chances de todas as turnês chegarem à América do Sul por questões financeiras, de logística e de maior percurso territorial a ser enfrentando sobretudo para quem mora longe dos grandes centros urbanos para onde as datas dos concertos acabam sendo marcadas. Ian Anderson está com 76 anos e é um poucos pilares do rock dos anos 1960 e 1970 ainda em plena atividade, compondo, criando, gravando, tocando ao vivo, correndo o mundo.

Confusão de gêneros

É hard rock, heavy metal ou rock progressivo? Qualquer fórum de discussão sobre música na internet (os melhores!) possui um tópico sobre a sonoridade do Jethro Tull. A diversidade é tanta que fica difícil encaixar em uma só gavetinha. Mesmo que os mais xiitas (ou troo) concordem que o grupo não entra na categoria metal, é uníssono que o Jethro Tull é uma das bandas que exerceu uma influência muito forte nas principais bandas do gênero que vieram depois. A experimentação foi tanta (hard rock, blues, folk, clássico, etc) e deu tudo tão certo que estamos aqui falando deles em pleno ano de 2024. A questão é que vale a pena sair de casa por uma lenda como essa, que transformou, inspirou tantos músicos (dos quais você provavelmente é muito fã!) a seguir suas carreiras. Inclusive, Ian Anderson participa em quatro músicas do novo álbum do Opeth. Então, nada como beber diretamente da fonte, não é mesmo?

“Aqualung” (a música)

Se você acha que não conhece Jethro Tull, pare tudo o que está fazendo neste momento e coloque os primeiros minutos da música “Aqualung”. Ela soa familiar? A indústria do entretenimento usou e abusou bastante dessa introdução dos Simpsons aos Sopranos. E com razão: ela é genial. “Aqualung” fazia parte do álbum homônimo lançado pelo Jethro Tull em 1971. Nada convencional, como tudo que remete à banda. A letra, repleta de realismo, fala de um homem que é morador de rua e observa o mundo a partir de um banco de parque. “Aqualung”, tocada e cantada pelo próprio Ian Anderson, é o tipo de coisa que faz a gente querer sair de casa. Sempre.

“Locomotive Breath”

“Locomotive Breath” também faz parte do histórico álbum Aqualung e que também faz parte do repertório da atual turnê. A letra é pura loucura filosófica. Segundo Ian, lá em 1971, estávamos num trem de crescimento populacional e ninguém sabia onde ele iria parar. Mas a sonoridade, essa é para aplaudir de pé. As guitarras criadas de Martin Barre são um espetáculo à parte, provavelmente para descrever a velocidade do trem e a pressão contidas na narrativa. Não é à toa que bandas de metal como WASP e Helloween lançaram suas versões para essa música.

RökFlöte

Após ficar anos e anos  sem lançar material novo, Jethro Tull tem um novo álbum, seu 23º. Ian Anderson criou a sua versão sobre o Ragnarok, da mitologia nórdica, em RökFlöte. Desta vez ele contou com David Goodier (baixo), John O’Hara (teclados), Scott Hammond (bateria) and Joe Parrish James (guitarra). Mesma banda que vem com ele ao Brasil, exceto o guitarrista Joe, substituído por Jack Clark. E, sim, eles vão tocar músicas do novo trabalho ao vivo.

Sete décadas em um concerto

Sete é rico em simbolismos. Sete são as notas musicais e as figuras de tempo na música. O número também é o símbolo da vida eterna no Antigo Egito; e, se a numerologia considera um número divino, a aritmética o considera feliz. Mas sete décadas é um número absurdo. Chega a ser até impensável o quanto o mundo mudou nesse tempo. Só para citar os suportes do mercado fonográfico: vinil, fita cassete, compact disc, DVD, MP3 player, pendrive, streaming… E o Jethro Tull tem a árdua missão de trazer um pouco dessas décadas de criação e ação em um só show. A vantagem é que suas músicas continuam a fazer sentido mesmo com toda a passagem de tempo. Por isso é excepcional quando uma banda que atravessou todo este período se apresenta nos dias de hoje. Não é só música, é História.

Books, Movies

Pobres Criaturas

Cineasta grego Yorgos Lanthimos retoma as provocações com uma espécie de Frankenstein feminista e Emma Stone em atuação magistral

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Se alguém ainda poderia ter dúvidas sobre esse cineasta nos últimos anos, Pobres Criaturas (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2023 – Fox/Disney) chega hoje aos cinemas brasileiros confirmando o que muita gente já tinha como certeza: Yorgos Lanthimos saiu da Grécia para chegar em Hollywood para perverter e perturbar. Depois de bem-sucedidos balões de ensaio, adorados pelos fãs de um circuito mais alternativo (Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, obras lançadas entre 2009 e 2017), ele foi alçado simultaneamente à condição de cult e pop com A Favorita, em 2018. Beliscou várias indicações durante as premiações principais da temporada e levou alguns Baftas para casa. Sua protagonista, Olivia Colman, arrebanhou não só o troféu britânico como também o Globo de Ouro e o Oscar de atriz principal.

Agora ele mete de vez o pé na porta com essa adaptação do romance de Alasdair Gray como ainda vem para bagunçar mais o coreto. A obra literária do controvertido escocês já é um primor ao recriar (ou melhor, perverter) o clássico gótico Frankenstein. Trazida para as telas, então, reforça ainda mais o caráter provocativo da trama acrescentando ritmo e imagens ainda mais perturbadores.

Um renomado cientista, cheio de si e nem aí para a ética em nome de pesquisas que podem mudar o curso da humanidade, decide reviver uma jovem grávida que acabara de se matar pulando no rio Tâmisa, em Londres. Sem perder muito tempo, ele tira o cérebro do bebê que ainda estava na barriga e o implanta na moça, a quem passa a chamar de Bella e tratar como filha. Em um corpo de adulto, ela passa a viver novamente mas tendo reações tipicamente infantis. Aos poucos ela precisa reaprender tudo: falar, comer, interagir com as outras pessoas. Tudo de acordo com o que manda a sociedade vitoriana do começo do século 20, com todos os seus absurdos patriarcais e machistas.

Como nada em Lanthimos é comum, ainda mais quando apoiada na fina ironia de Gray, o público pode esperar muitas quebras de paradigmas nesta relação entre Bella (Emma Stone) e o “pai” Godwin Baxter (Willem Dafoe). Para começar, a estética humana é justamente o oposto do que todo mundo aprende ainda criança sobre Frankenstein. A criatura representa a beldade enquanto o horror físico sobra para o criador (a quem ela chamada carinhosamente pelo apelido God – “Deus” em inglês), cujo rosto é todo marcado por grandes cicatrizes. Depois, a inteligência da jovem passa não só a se desenvolver de maneira rápida, como ainda questiona de modo pontiagudo comportamentos e dogmas sociais como também age quase instantaneamente para modificar o status quo do conformismo, da manutenção das elites e da submissão feminina.

Bella volta a se tornar “jovem”, já com desejos sexuais (mas que não cabem muito bem no papel social que todo mundo espera que ela passe a representar) e o desejo de conquistar o mundo para crescer ainda mais por dentro. Ela se casa com um nojento aristocrata (o advogado Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo) e parte em uma longa viagem de navio ao redor do Mediterrâneo. Começa por Lisboa, passa pelo norte africano e acaba em Paris, onde se livra do encosto marital para provocar uma fugaz revolução trabalhando como prostituta e mandando ver em discursos feministas e políticos.

O ritmo rápido e envolvente dado pela montagem e pelo roteiro divertem o público, que se rende ao encanto e talento de Emma Stone em sua atuação durante as várias etapas e facetas de Bella. Não à toa, a atriz é considerada a favorita para levar o Oscar em sua categoria e o filme somou ao todo 11 indicações para a estatueta mais comentada da indústria do cinema, perdendo em número apenas as 13 de Oppenheimer.

Independentemente do que o filme levar para casa ou perder para a concorrência, uma coisa é certa. Seguindo o fluxo da comédia farsesca impresso de modo mais amplo em um filme seu desde A Favorita, Lanthimos se consolida de vez como um dos nomes a serem seguidos de perto pelos próximos anos. Já com o apoio e o reconhecimento de Hollywood e com apenas 50 anos de idade, ele ainda tem muita coisa para trazer às telas. E com certeza trazendo na esteira com muitas provocações, burburinhos e aplausos.

Movies

Vidas Passadas

Reencontro de sweethearts da adolescência após muitos e muitos anos derrete o nosso coração às vésperas do Oscar

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

In-Yun é um conceito coreano difícil de ser traduzido em poucas palavras. Basicamente, ele representa a idéia de que todo mundo que encontramos nessa vida já fez parte de nossas vidas passadas. Nas reencarnações seguintes reencontramos todo mundo, quer seja em laços fortes de conexão como família, amigos e relacionamentos ou simplesmente aquele estranho com quem cruzamos ao atravessar a rua e que tocamos levemente no braço sem querer. A existência terrena significa uma repetição de figuras em posições diferentes em novas reencarnações. É sobre encontros e desencontros, aproximações e afastamentos.

A roteirista coreana-canadense Celine Song debuta como diretora nos cinemas mundiais com um filme peculiar e encantador que se apropria desse conceito milenar para conta a história de um amor de infância e seus desdobramentos nos 24 anos que se seguiram na vida dos dois personagens centrais. Ele se chama Vidas Passadas (Past Lives, EUA/Coreia do Sul, 2023 – Califórnia Filmes).

Hae Sung (Teo Yoo) e Na Young (Greta Lee) eram sweethearts na suas infâncias na Coreia. Young cogitava inclusive casar um dia com Sung. Mas os pais artistas dela tinham outros planos – estavam decididos a migrar para o Canadá, onde as duas filhas teriam uma educação acadêmica ocidental. A despersonalização de Na já começa no momento em que seus pais pedem para que ela adote o nome Nora para facilitar sua integração no pais estrangeiro. Na, agora como Nora, segue o caminho padrão da educação norte-americana e, assim como seu pai, passa a fazer roteiros. Já Hae permanece na Coreia e se torna engenheiro. 

Após 12 anos sem contato, os dois jovens se reencontram online via Facebook e Skype e reatam uma conexão intensa de amizade, carinho e desejo. Porém, planos de se encontrarem nunca se concretizam e Na e Hae acabam por interromper este contato. Ela conhece Arthur (John Magaro) em uma oficina de artistas, os dois acabam se casando. Enquanto isso, Hae se muda para a China para estudar mandarim e, consequentemente, também inicia um longo relacionamento.

Mais 12 anos se passam e Sung, após o termino de seu namoro, decide que chegou a hora de finalmente encontrar Yung, partindo para uma viagem de busca do passado até Nova York, onde Nora (Na), vive com Arthur em uma relação calma e estável. Os encontros que ocorrem entre os dois são preenchidos de momentos de ternura, nostalgia, lembranças e uma intimidade que se comunica apenas por olhares e pelo silêncio. 

Celine Song busca inspiração direta em Amor à Flor da Pele (In The Mood For Love, 2000), a obra prima de Wong Kar-Wai. As cenas são longas e contemplativas, as luzes e as sombras refletem o desejo entre os dois personagens, mesmo diante da impossibilidade de voltar no tempo e viver a promessa do romance. Os diálogos curtos e pontuais são suficientes, a comunicação entre Na e Hae, desde sempre, transcende as palavras. As atuações de Greta e Teo são comoventes e impecáveis: nós sentimos tudo com eles. Tudo que nunca foi dito, os arrependimentos, o desejo, a racionalização do status quo, o conflito que rasga ambos quase-amantes por dentro. 

Vidas Passadas é mais uma obras produzida pelas mãos da excelente A24, que nos últimos anos vem se tornando um selo de garantia de qualidade no cinema ao quebrar paradigmas e clichês e nos oferecer algo novo, fresco, multifacetado e multicultural. É um filme que nos remete à trilogia Antes (1995-2013), de Richard Linklater, e a Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, que inclusive é citado por Nora em uma conversa com Hae. A criação de Song é uma pequena obra-prima do amor não consumado, da influência do tempo e do timing em nossas relações pessoais e do crescimento e amadurecimento dos personagens e suas mudanças. Quebra o nosso coração com o gosto agridoce do primeiro amor.

Esse longa-metragem deveria ter sido lançado no Brasil em agosto do ano passado, mas foi adiado para este mês de janeiro. Acaso? Claro que não. Estão de olho no Oscar. Como (admito!) é um dos filmes mais lindos a que assisti em 2023, as chances da obra abocanhar algum troféu na maior cerimônia da temporada do cinema é bem grande, visto o furor que causou após ganhar prêmios internacionais.