Como instigar o diálogo e a reflexão em um ambiente de sororidade dentro de comunidade que incentiva a masculinidade tóxica
Texto por Taís Zago
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Em 2010, uma série de 151 estupros e abusos sexuais chocou o mundo em um assentamento menonita chamado Manitoba, na Bolívia. Os crimes foram cometidos por um grupo de nove homens, no qual a maioria era composta por integrantes da comunidade. Eles borrifavam pelas janelas das casas um spray narcótico à base de beladona e que servia de anestésico para animais antes da castração. Por deixarem as vítimas e suas famílias inconscientes e com perda de memória, seus crimes foram acobertados por algum tempo… até que dois desses homens foram pegos no ato. Após julgamento e prisão, a maioria deles ainda cumpre pena em um presidio perto da cidade de Santa Cruz.
Tendo essa ocorrência como base, a escritora canadense Miriam Toews, que também cresceu entre menonitas, escreveu seu romance parcialmente ficcional, Women Talking, publicado em 2018. Toews queria, por meio de seu livro, dar voz às mulheres da comunidade menonita, as quais quase sempre são silenciadas pelos homens que comandam a religião. No romance, a autora deixa em aberto a localização da comunidade e não expõe diretamente os crimes cometidos. Também dá a palavra para as mulheres e abre uma grande discussão sobre machismo, patriarcado e abuso.
Os menonitas são um movimento do cristianismo evangélico que surgiu na Alemanha do século 16, seu nome tem como origem o teólogo Menno Simons (1496-1561). Com o passar do tempo, a religião originou agrupamentos rurais fechados ao redor do mundo, onde se prega uma forma frugal de existência, longe de tecnologias, ciência e completamente dominada pelos homens. Algo bastante parecido com os amish, que formam umoutro grupo também originário do protestantismo alemão. Mais alguém por aí pensou em O Conto da Aia? Pois saibam que vocês não estão sozinhos: a escritora Margaret Atwood teceu enormes elogios à obra de Mirian Toews.
Com esse material em mãos, a atriz, diretora e roteirista Sarah Polley chamou um grupo estelar de atrizes mulheres para fazer exatamente o que o título diz: falar. Sarah roteirizou e dirigiu, enquanto Frances McDormand produziu e atuou em um modesto papel como a conformada Scarface Janz. O cenário é praticamente um só – o celeiro da comunidade, um ambiente soturno, sombrio, úmido e pouco acolhedor. Após a ocorrência dos abusos, as mulheres resolvem se reunir e decidir o que fazer dali para frente, enquanto os homens da comunidade haviam se ausentado, para justamente ir pagar as fianças dos estupradores. Caiu, deste modo, a última gota d’água em um barril transbordando abusos e agressões. Após uma votação dentre os presentes, duas das três soluções ofertadas (seguir como antes ou enfrentar ou fugir) acabaram empatando (ficar e enfrentar os homens ou fugir). Para decidir esse impasse foram selecionadas oito mulheres das famílias mais importantes da comunidade, entre elas Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Agata (Judith Ivey) e Greta (Sheila McCarthy). Por serem praticamente iletradas, essas mulheres convocaram August (Ben Whishaw) – um filho pródigo da comunicada que havia sido excomungado e que retornara para servir como professor dos meninos menonitas – para escrever a ata do encontro e fazer o registro que seria entregue aos homens quando voltassem da cidade.
Entre Mulheres (Women Talking, EUA/Canadá, 2022 – Universal Pictures) tem a dinâmica de uma peça de teatro: apenas uma locação, figurinos modestos e diálogos que beiram monólogos na penumbra. Com essa configuração fica complicado prender a atenção do espectador fora do palco e da proximidade que temos na dramaturgia teatral. Mas Sarah e o sensacional elenco conseguem esse feito. Women Talking é uma roda de discussão sobre todos os temas que afligem mulheres oprimidas ao redor do mundo. Somos expostos aqui a uma miríade de sentimentos que brotam dessas mulheres – medo, raiva, ira, rancor, culpa, arrependimento, negação, impotência, tristeza e mágoa. Cada uma tem sua história de sofrimento derivada da dominação masculina e da ausência de voz – enquanto uma lida com uma brutal violência doméstica, outra sofre as consequências de uma gravidez indesejada como fruto do estupro e outra encara após a violência à sua transexualidade. Estamos diante de todo o leque de difíceis temas discutidos pelo feminismo desde seu surgimento. Aqui isso se espelha dentro de uma sociedade paralela que simplesmente ignorou as mudanças dos tempos ao seu redor. Os menonitas, não raramente, são nômades, mudam de lugar conforme suas exigências arcaicas são questionadas pelas autoridades locais ou pela opinião pública. Esse tipo de dinâmica favorece a invisibilidade feminina e reforça as relações de codependência entre homens e mulheres.
Sarah Polley abre o filme com a frase “What follows is an act of female imagination” (O que vem a seguir é fruto de imaginação feminina, em português). É a síntese do exercício que Polley e Toews fizeram em suas respectivas obras: ambas ofereceram um microfone para os prováveis e necessários pensamentos que nunca tomaram forma concreta após a violência real sofrida pelas menonitas na Bolívia, assim como em várias outras culturas e grupos onde a masculinidade tóxica e a insegurança masculina forçam, ainda hoje, milhões de mulheres em uma caixinha com quase nenhuma autonomia onde são mantidas pequenas e “inofensivas”. Um adestramento monstruoso como forma de garantia da manutenção do poder patriarcal. Portanto, talvez o maior legado de Women Talking seja exatamente o de instigar o dialogo e a reflexão em um ambiente de sororidade.