O dia a dia socialista de um garoto órfão antes da guinada política que levou o Afeganistão rumo ao fundamentalismo
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Supo Mugnam Films/Divulgação
No Afeganistão socialista do fim da década de 1990, um garoto é detido e levado a um abrigo, onde vive junto de centenas de outros garotos, vai à escola e até viaja para a Rússia. Diferente da sinopse oficial, esta é uma descrição muito mais adequada a O Orfanato (Parwareshghah, Dinamarca/Luxemburgo/França/Alemanha/Afeganistão, 2019 – Supo Mugnam Films), longa de Shahrbanoo Sadat que estreou no início desse mês no Brasil.
O garoto em questão é Qodrat (Qodratullah Qadiri), e a trama, escrita por Sadat, acompanha ele e um conjunto de personagens menores numa representação do dia a dia. Qodrat joga bola, vai nadar e volta e meia se depara com uma realidade que transformava seu país: na época, o governo soviético estava em guerra com os combatentes Mujahidin, que eventualmente tomam o controle do país e o transformam na república fundamentalista que conhecemos hoje.
Embora conte com algumas decisões interessantes de mise-en-scène, desenvolvendo um estilo lavado e terroso, mas acalentador, O Orfanato é ofuscado por suas fragilidades. O filme é incapaz de contar uma história engajante por dois motivos: a narrativa é articulada de maneira ineficaz, sem um rumo constante ou até mesmo importante; e a representação dos acontecimentos é lenta e, por muitas vezes, sem substância. Ao repetir gags, justapô-las a momentos dramáticos e constantemente esquecer-se de suas cenas subsequentes, o longa se confunde e falha em interessar o espectador.
A história demora a engrenar porque somos expostos incessantemente à realidade dos meninos com pouco ou nenhum conflito narrativo. Quando dá esboços de direção, como um aparente amor à primeira vista de seu protagonista, o filme ignora a relação. A personagem pela qual Qodrat se apaixona nunca interage com ele, sendo que demora mais de vinte minutos para voltar a aparecer, quase como figurante.
Portanto, a inconsistência de O Orfanato resulta em uma experiência que decai conforme o filme avança. Com a ameaça constante de uma guinada política e sóbria que nunca se concretiza, esperamos uma história que nunca parece interessada em surgir.
Documentário convida o espectador a sentir a história do montanhismo paranaense por meio de íntimas texturas audiovisuais
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Cinema de Bolso/Divulgação
Dentro da história geral do nosso país, como é de se esperar, é possível enxergarmos diversas manifestações culturais e atividades específicas aos estados, regiões e cidades. O montanhismo paranaense é um movimento pouco conhecido, porém rico em relatos e conquistas, como mostra o documentário Marumbi: A Montanha por Dentro (Brasil, 2020 – Cinema de Bolso), disponível no Cine Passeio online até o dia 23 de dezembro – e, o melhor, de graça.
Com 32 minutos, o filme dirigido e escrito por Matias Dalla Stella acompanha figuras tradicionais do desbravamento das montanhas paranaenses, novas personalidades do cuidado e usufruto do Marumbi e uma historiadora, cada qual expondo sua relação peculiar com o rochedo. Contudo, o documentário se distancia de uma mera representação de entrevistas e constrói em si mesmo uma intimidade forte com a montanha.
É linda a maneira que Dalla Stella conduz essa experiência historiográfica, que faz com que o Marumbi não somente nos conte a história, mas convide a senti-la. Num jogo de texturas audiovisuais que emula a sensação de estar em meio à natureza, os contos dos feitos de Vitamina, Palmiteiro, Farofa e companhia são tocantes reflexos de uma tradição muito específica da região.
O curta-metragem ainda brinca com nosso senso de espacialidade com lindos planos, tanto de composições mirabolantes quanto de detalhes materiais de uma Curitiba que vem deixando de ser. No esforço de impedir seu esquecimento, o filme alça suas personagens à História.
História da concepção do roteiro do cultuado filme Cidadão Kane mostra o diretor David Fincher longe de seus moldes e aquém dos melhores dias
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Netflix/Divulgação
Todo mundo concorda que Cidadão Kane é uma das maiores obras da história do cinema. Lançado em 1941, o filme, que conta a ascensão e queda de um magnata da imprensa, encabeçou diversas vezes a lista dos 100 melhores filmes do American Film Institute, bem como do British Film Institute. Muitos acreditam que nele há uma forte inspiração na trajetória de William Randolph Hearst. Em Mank (EUA, 2020 – Netflix), essa questão é extensamente debatida.
Isso porque o filme, o mais novo título de David Fincher desde Garota Exemplar (2014) e uns episódios de Mindhunter, conta a história da concepção deste roteiro pelo infame roteirista e crítico de teatro Herman Mankiewicz, que assina Kane. Com estrutura similar e diversas homenagens à obra de Orson Welles, a trama – criada pelo pai de Fincher, Jack, em sua estreia como roteirista – fica entre o processo de escrita do roteiro e flashbacks que definem as relações de Mank (Gary Oldman) com seu entorno.
Claro que, no universo que Mank orbitara em Hollywood, estavam a atriz e cantora Marion Davies (aqui interpretada por Amanda Seyfried) e seu esposo, o próprio Hearst (Charles Dance). Pouco a pouco, o longa deixa de importar-se com o roteiro de Cidadão Kane e redireciona sua atenção à relação de seu protagonista com Davies e seus ácidos, embora bem-humorados em sua maioria, embates com o milionário. Pincelando conflitos políticos e pessoais, a mão de Jack Fincher parece perder o rumo em algumas passagens destas, incerta de suas intenções e carregada de um quê de fanfiction cinéfila.
Contudo, esse não é o único sintoma de um filme aparentemente deslocado. Desde seu ponto de partida, o longa parece muito distante do cinema de David Fincher, preferindo uma estética biográfica que bem muito dos grandes filmes dos anis 1930 e 1940 ao suspense e densidade contemporânea com que o diretor costuma trabalhar. É nítida a melhora na linguagem em momentos de crise, quando sentimos seu clássico controle da mise-en-scène, porém sua mudança de tom não chega a prejudicar a estrutura de Mank – a obra não permitiria uma abordagem diferente.
Parte de sua funcionalidade tanto como entretenimento quanto discurso artístico (que são indissociáveis, claro) vem da atuação de estrelas consagradas e à beira da consagração. Oldman e Dance criam em cena sua própria dança (com o perdão do trocadilho!), enquanto Seyfried e Lily Collins demonstram extrema competência e se solidificam como capazes de transitar entre gêneros e tendências de Hollywood.
Portanto, embora pareça haver uma falta de sincronia entre direção e roteiro, é evidente que o filme funciona bem no que se propõe. Muito longe de desvendar a verdade sobre o processo de escrita de Cidadão Kane e o embate entre Mankiewicz e Welles por sua autoria, Mank parece preocupado em divagar sobre seu porquê, com as devidas romantizações e homenagens. E consegue, a contragosto de quem esperava um Fincher em seus moldes e melhores dias. Até porque só se frustra quem cria expectativas.
>> Mank concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em dez categorias: filme, direção, ator, atriz coadjuvante, fotografia, figurino, cabelo e maquiagem, design de produção, trilha sonora e som
Documentário acompanha três histórias distintas de brasileiros atuantes no serviço militar de outros países
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Bretz Filmes/Divulgação
Há filmes fortemente políticos cujo pano de fundo não é tão engajado. Há aqueles omissos a questões políticas, mesmo ao abordar temas nessa área. Por fim, existem filmes que abraçam seus temas fortemente políticos e incorporam o debate em seu discurso. Onde se encaixa, então, Soldado Estrangeiro (Brasil, 2020 – Bretz Filmes)?
O documentário brasileiro acompanha três histórias radicalmente diferentes envolvendo o serviço militar no exterior. Um quer entrar para a Legião Estrangeira, na França, outro atua pelo exército israelense nos conflitos de Gaza e Cisjordânia e o último é um ex-atirador da marinha estadunidense que serviu no Afeganistão. A narrativa episódica, escrita e dirigida por José Joffily e Pedro Rossi, isola seus personagens em uma estrutura parecida com a de três atos, o que prejudica o ritmo do filme – visto que as tramas são abruptamente encerradas e seu progresso parece “jogado fora”.
Dessa forma, Joffily e Rossi articulam cada um de seus protagonistas com a devida particularidade. Ao aspirante, a esperança e intimidade do primeiro plano. Com o soldado, o cuidado com o ambiente, sem adjetivá-lo por meio da linguagem. Para o atirador dispensado, o vazio e o trauma transparecem. Infelizmente, tal flutuação cria uma comparação interna às seções do filme. Ou seja, somos impelidos a confrontar histórias e personagens, que competem entre si e, evidentemente, uma parte sai prejudicada, vista como a “pior” entre as demais.
Ainda, o discurso parece incerto de sua posição frente aos conflitos políticos e morais que seus personagens enfrentam, seja o abandono, a censura ou o sacrifício de sua família. A opção dos diretores de manter distância dessa discussão cria um filme ambíguo que, para um espectador antibélico, com opiniões severamente contrárias à configuração das guerras e exércitos, trata com sutileza os defeitos que já conhecemos (ou imaginávamos) do sistema. Contudo, essa mesma sutileza não é suficiente para que qualquer pessoa, antibélica ou patriótica e armamentista, compreenda que, no fundo, a posição de Soldado Estrangeiro é contundente, mas não clara.
No entanto, no que tange à montagem contida em cada história, a sutileza política é transplantada ao tratar e conduzir a história. Com planos longos, retratos da convivência familiar de cada protagonista, o documentário nos explicita quem são, de fato, seus personagens, muito além da farda – bem como do fardo – que carregam.
Soldado Estrangeiro é um lançamento reflexivo, embora um tanto ambíguo, sendo definitivamente capaz de suscitar uma discussão política. Contudo, não comete o erro – muitas vezes cometido por aí – de agarrar-se ao tema e esquecer todas as possibilidades que a linguagem fílmica tem que ampliar a discussão. Uma sorte que, mesmo à despeito do episodismo, garante ao espectador algum tipo de debate pós-filme.
A mágica tarde que despertou o artilheiro adormecido italiano que transformou em pesadelo o sonho da seleção brasileira na Copa de 1982
Texto por Fábio Soares
Foto: Reprodução
Em matéria de ludicidade, o castelo da Copa do Mundo da Espanha, de 1982, já era mágico a partir de seu mascote. Naranjito (Laranjinha, em espanhol), era uma simpática figura onipresente nos boletins dos telejornais da época. Aliado a este fato, o futebol apresentado pela seleção comandada por Telê Santana, mesmo nos amistosos preparatórios, encantava dez entre dez torcedores da Amarelinha à época – sobretudo no amistoso contra a Alemanha Ocidental, em março do mesmo ano, em um Maracanã com mais de 150 mil espectadores.
A euforia era justificável. Ainda na ressaca da Era Pelé encerrada oito anos antes, o futebol praticado por aquela seleção aproximava-se, a olhos vistos, ao patamar de arte. Outro fato marcante com tamanha identificação daquele time junto a seu povo: numa época em que transferências milionárias estavam longe de estar em voga, 99% dos jogadores atuavam no Brasil sendo Paulo Roberto Falcão (no Roma, da Itália) a exceção à regra.
Junho de 1982 chegou e o picadeiro dos sonhos começava já estava armado com o início do espetáculo já na duríssima estreia contra a União Soviética, em Sevilla. Na minha casa, um particular ritual foi iniciado comigo (com seis anos de idade) e minha irmã (com cinco, à época): picar quilos e quilos de jornais velhos a serem atirados pela janela a cada gol do Brasil. Na partida inicial, as primeiras remessas de papel foram defenestradas durante o 2 a 1, após um inacreditável frango de Waldir Peres. No entanto, a vitória com uma bomba de Éder Aleixo aos 42 minutos do segundo tempo tirou o peso da estreia e renovou a esperança pelo tetra.
A atmosfera de sonho iniciou-se de verdade a partir da segunda rodada nos 4 a 1 sobre a Escócia. Atuação monstruosa do meio-campo protagonizado por Toninho Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Em casa, mais papel picado arremessado pela janela e festa na Avenida Paulista após o jogo. Euforia justificável que cresceu como uma tsunami na terceira rodada, nos 4 a 0 sobre a Nova Zelândia. Novo show da dupla Zico-Falcão com o tal do “futebol arte” finalmente materializado aos olhos de quem o assistia. Sevilla estava entregue aos pés da seleção de Telê, enebriada com o que tinha visto nas três partidas da equipe na cidade. Na imprensa espanhola não se falava em outra coisa. Mesma euforia que inundava os telejornais e mesas-redondas após as partidas. Já para as crianças, aquele desenho animado ao vivo divertia, encantava e despertava paixão com a alegria nas ruas.
Na fase seguinte, a Seleção despediu-se ovacionada pela Andaluzia e rumou ao norte da Espanha para a segunda fase tendo Barcelona como sede. Em um formato que ainda não contemplava o hoje tradicional mata-mata, um triangular seria disputado entre Brasil (favoritíssimo), Argentina (com Maradona em seu primeiro Mundial) e uma desacreditadíssima Itália, que só se classificou na bacia das almas após ridículas atuações na primeira fase (só com empates contra Camarões, Polônia e Peru, apenas dois gols marcados e dois sofridos). A descrença era tanta que até a imprensa italiana virou as costas para seu escrete que chegou ao Mundial abalado pelo escândalo das loterias do calcio, deflagrado em 1980.
O triangular teve início na capital da Catalunha com um surpreendente 2 a 1 da Itália sobre os argentinos, últimos campeões. O caminho das pedras? Simples: colar o carrapato Gentile em Diego Maradona até quando ele fosse ao banheiro. Com sua principal estrela anulada, os portenhos foram pressionados à segunda rodada para o embate contra o Brasil. Confiança? Nenhuma. Os argentinos sabiam da tempestade que estava por vir. E ela veio em forma de um rolo compressor.
O Brasil x Argentina daquele 2 de julho eternamente permanecerá no panteão afetivo da memória de quem o assistiu. Impecável jogo coletivo do escrete de Telê, com atuação estratosférica de Falcão e com um gol de Júnior após passe milimétrico, genioso e genial de Zico. Muitos podem depreciar o feito ligando-o à expulsão de Maradona após criminosa entrada em Batista, mas o fato é que nem dois Diegos atrapalhariam a seleção naquela esplendorosa tarde barcelonense. Um alinhamento de planetas que alçou aquele time ao inevitável patamar de maior favorito a conquistar a Copa. Mais três espetáculos aconteceriam e o título era apenas uma questão de tempo. Na minha casa, eu e minha irmã sabíamos que toneladas de jornais velhos nos esperavam para serem picadas. Mas nenhum dos dois reclamou.
O 5 de Julho nasceu carrancudo e nublado naquele inverno paulistano. Nada, no entanto, que atrapalhasse o clima de euforia na cidade. Ninguém dormiu direito naquela noite devido à adrenalina acumulada pelas quatro primeiras partidas. A contra a Itália, segunda e última daquele triangular trazia um ingrediente a mais de certeza pela classificação: um simples empate bastaria para a equipe avançar às semifinais. Mas quem queria saber de empate? O DNA ofensivo daquele time tornara impensável qualquer mudança tática a fim de preservar uma igualdade classificatória. Telê jogaria para a frente e pronto! Ninguém questionou isto na véspera. Contrastando com o dia nublado paulistano, um sol catalão apareceu com toda a sua força sobre o Estádio Sarriá. Cenário perfeito para mais um show brasileiro, certo? Errado. O clima já estava estranho na véspera, com Zico “baleado” após o jogo contra a Argentina, tornando-se dúvida para o embate e tendo sua escalação confirmada somente após teste físico nos vestiários. Pelo lado italiano, a guerra entre time e imprensa persistia. Ninguém botava fé naquele setor ofensivo que não marcava gols. A falta de fé, no entanto, despertou um gigante até então adormecido na Copa.
Estrela da Juventus, Paolo Rossi chegava desacreditado à Espanha após cumprir suspensão de dois anos por suposto envolvimento no escândalo das loterias, em 1980. E a falta de confiança do atacante refletiu-se em campo: zero gols marcados nas quatro primeiras partidas. Nem o papa João Paulo II apostaria suas fichas em Rossi contra o Brasil. E talvez, nem o próprio Rossi.
O jogo teve início ao meio-dia mas eu e minha irmã já estávamos de pé desde as oito para picar papéis, naquela doce rotina de Copa. Na escalação, o verdadeiro quadrado mágico (este sim, verdadeiro; não aquele embuste de 2006) estava confirmado: Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates abasteceriam Serginho Chulapa e Éder na frente. Nada poderia dar errado em campo. Mas deu! Justamente no setor defensivo. Setor este que viu em Paolo Rossi a caricata figura de uma “besta-fera”. Logo aos cinco minutos, uma marcação frouxa permitiu que Cabrini, com muito espaço, cruzasse na altura da marca do pênalti e encontrasse Rossi, livre de marcação para vencer Waldir Peres inapelavelmente num cabeceio na diagonal. O artilheiro dos gols perdidos finalmente acordara. E agora? Sete minutos depois, porém, Zico mostrou que sua escalação foi mais que acertada: drible de calcanhar desconcertante e passe açucarado para Sócrates executar o goleiro Dino Zoff! 1 a 1. Eu e minha irmã em festa na janela com a volta da atmosfera de sonho. Nada atrapalharia a classificação, certo?
A segunda etapa chegou como um doloroso teste cardíaco: um pênalti claro de Luisinho em Paolo Rossi não marcado. Apesar da partida pegada e sem a fluidez dos embates anteriores, veio um momento de redenção: Aos 23 minutos, Júnior foi da lateral à intermediária, passou por Conti e, de trivela, encontrou Falcão próximo à meia-lua. Às suas costas (e como um foguete), Cerezo tornou-se opção de passe mais do que óbvia. Mas o Rei de Roma mudou de ideia, puxou para a perna esquerda e acertou uma bomba no ângulo direito de Zoff. Um golaço digno de Copa! Em casa, eu e minha irmã jogamos quase todo o estoque de papel picado pela janela. Enquanto isso, meu irmão gritava o provável maior “PUTA QUE PARIU” de sua vida. Euforia evidenciada pelas veias saltadas no pescoço de Falcão durante a comemoração. Enfim, faltavam apenas 22 minutos para a classificação e desta vez, nada mais sairia errado, certo?
Errado! Pela terceira e última vez. Seis minutos depois, após o escanteio italiano, Sócrates atrapalhou Oscar ao tentar afastar a bola, que caiu nos pés de Tardelli num arremate de pé esquerdo. O que se tornaria uma defesa fácil para Waldir Peres encontrou um Paolo Rossi livre na pequena área, girando com a crueldade de grande carrasco para marcar o terceiro gol. O drama virara pesadelo e os minutos derradeiros machucaram corações em verde e amarelo ao redor do planeta, sobretudo após o milagre operado por Zoff após a cabeçada à queima-roupa de Oscar. O gigante goleiro, à época com 40 anos, pôs ponto final a toda e qualquer tentativa de reação da equipe de Telê.
Após o apito final, silêncio, lágrimas e incredulidade. Paolo Rossi vestiu-se da figura de morte para nos assombrar. O artilheiro que nunca fazia gols marcaria ainda por três vezes naquela Copa: duas contra a Bélgica, nas semifinais, e mais uma sobre a Alemanha, na final em Madrid. Assim como Maradona em 1986, ele fora determinante na glória italiana de 1982. Anos mais tarde, numa entrevista, confessou toda a sua admiração pelo nosso time. “O Brasil de 1982 era de outro planeta. Os melhores que vi jogar mas o que vocês queriam? Que eu não fizesse os gols?”, declarou da forma mais sincera possível.
Paolo Rossi nos deixou nesta última quarta-feira (9 de dezembro), aos 64 anos de idade, vítima de um câncer no pulmão. Para nós, foi um carrasco a ceifar nosso sonho. Mas era um carrasco longe de ser odiado. Fez pelo seu país, afinal, o que cada um de nós faria pelo nosso. E tornou-se um personagem a orbitar em nossas perturbadas cabeças e corações nos últimos 38 anos.
Voltando à minha casa, naquele 5 de julho de 1982, eu e minha irmã ainda quisemos arremessar pela janela a última remessa de papel picado. Meu irmão não permitiu, entretanto. Na hora não entendi, mas hoje o compreendo muito bem. Afinal, papéis picados foram feitos para ornamentar sonhos felizes.