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Baseado em Fatos Reais

Trama dirigida por Roman Polanski provoca tensão ao casar a discussão sobre a falta de inspiração criativa e a procura por uma identidade pessoal

baseadoemfatosreais2018

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Misturar realidade e ficção costuma ser um artifício bastante utilizado por escritores e roteiristas. Afinal, nada mais inspirador do que extrair do cotidiano – passado ou presente – informações importantes para se construir histórias. Basta usar o artifício de trocar nomes, locais e outras referências que podem soar um tanto quanto óbvias. Muitos autores, porém, vão além e adoram misturar-se com suas criaturas, mantendo inclusive o mesmo prenome e colocando em falas e diálogos opiniões pessoais a respeito de um determinado assunto.

Delphine de Vigan fez tudo isso. Em 2015, depois de enfrentar um bom tempo de vazio criativo provocado pelo transtorno de bipolaridade, ela lançou o livro Baseado em Fatos Reaisapropriando-se de sua própria experiência. Deu o próprio nome à protagonista e adicionou ao sofrimento pelo bloqueio pitadas extras que transformaram a história em um emocionante thrillerliterário. Agora, pouco tempo depois, o que está impresso nas páginas ganha uma versão cinematográfica, também devidamente alteradas pelos veteranos roteiristas Roman Polanski (também diretor do longa) e Olivier Assayas (que nos últimos anos ganhou projeção mundial com os filmes Depois de Maioe Acima das Nuvens. Adaptação esta que também é de tirar o fôlego.

Claro que muitos cinéfilos mais rígidos e insistentes vão reclamar que o Planski de Baseado em Fatos Reais(D’Après Une Histoire Vraie, França/Polônia/Bélgica, 2017 – Paris Filmes) nem de longe lembra o gênio de outrora (Repulsa ao Sexo, A A Dança dos Vampiros, O Bebê de Rosemary, Chinatown) ou mesmo o dos bons lampejos mais recentes (O Pianista, O Escritor Fantasma, Deus da Carnificina), embora seja sempre bom lembrar que um Polanski bem pouco inspirado (tal como outros grandes cineastas que insistem em continuar produzindo regularmente mesmo com a idade bem avançada), ainda assim, vale muito mais do que um Michael Bay em qualquer tempo ou situação. Claro que outros tantos, mais atentos à obra do mestre do suspense Stephen King, vão gritar que há semelhanças aqui, ali e acolá com uma de suas obras mais cultuadas,Louca Obsessão. Mas a história que envolve a doentia relação entre uma escritora perdida em seu próprio vazio (Delphine, interpretada por Emmanuelle Seigner, atual esposa de Polanski) e uma fã controladora, autoritária e possessiva (a ghostwriterElle, vivida por Eva Green cheia de caras e bocas e uma bela camiseta com o logo do álbum derradeiro de David Bowie) mostra ser muito capaz de ir além destas comparações superficiais e ainda suscitar boas doses de reflexão a respeito dos limites de até onde uma pessoa deve ir no trato com a outra mais próxima.

Limites na intimidade que incluem duas outras palavrinha que até provoca rima: privacidade e permissividade. Na ansiedade por sair do letárgico estado emocional em que se encontra, Delphine se encanta por Elle e, aos poucos, sem notar, dá espaço demais à outra para que ela a aprisione em sua própria vida. Já os limites a serem discutidos de acordo com as atitudes de Elle giram em torno da honestidade. Com que reais intenções ela se aproxima da escritora? O que a motiva? O que sua rotina de biógrafa ghostwriterpode indicar sobre a questão de se fazer passar por outra pessoa? Elle raramente se abre à sua interlocutora e, por isso mesmo, torna-se o grande mistério da parte inicial do filme.

A segunda parte começa quando, também, aos poucos, Delphine vai recobrando a consciência e a lucidez, mesmo com todas investidas escusas de Elle, e planeja o contrataque com segundas intenções não menos discutíveis. E começa o cabo de guerra com altas doses de suspense e o espectador perdido no meio do “tiroteio” entre as duas, sem saber qual lado escolher para torcer e ficar para se “proteger”.

Entre remédios ansiolíticos, venenos para ratos, respostas nada educadas de e-mails e anotações secretas em post-itse páginas de cadernetas e pernas quebradas, as duas se engalfinham psicologicamente e passam todo o desespero para quem nunca teve nada ver com isso e só está lá na frente, quietinho, sentado na poltrona do cinema. Tudo isso vem com minimalismo espacial (uma grande livraria, uma boate, um simpático bistrozinho parisiense, os apartamentos das duas, uma cainha de retiro no interior francês) e certa overdose cenográfica (na qual livros sempre brotam aos borbotões nos cenários e nunca param de transbordar pela tela).

Não dê bola para o mimimi de cinéfilos que sempre esperam a genialidade na próxima grande obra de um artista. Prefira a realidade do cotidiano de Delphine, que mostra o realmente pode acontecer no dia a dia de quem está sempre envolvido com a criação intelectual. Ali você se identifica com quem também é gente como a gente. Como os ávidos fãs-leitores que comram os livros de Delphine, aliás.

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